Pesquisar
Close this search box.

Sergipe é o 4° estado no Nordeste em violações contra pessoas em situação de rua

A Mangue Jornalismo publica a quarta e última reportagem da série sobre população em situação de rua. No texto de hoje, a temática é a violência física. Somente entre abril e julho deste ano, três homens que viviam nas ruas foram assassinados.

Marina e Leonardo sobreviveram a duas tentativas de homicídio. (Foto: Anderson Barbosa)

Bem próximo do Centrode Referência Especializado à População em Situação de Rua (Centro POP) em Aracaju, Marina Alves Santos, 45 anos, e Leonardo Santos do Nascimento, 30 anos, exibem um cartaz feito com um pedaço de papelão, o mesmo sobre o qual passaram a noite anterior.

A frase no papelão é um pedido de socorro. A “ajuda” não é só para matar a fome, mas também uma forma de clamar por segurança. Marina, Leonardo e toda a população em situação de rua são vítimas permanentes de violências físicas. A grande maioria carrega no corpo essas marcas.

“Estava dormindo e acordei com as facadas. O SAMU me socorreu e levou para o Hospital Nestor Piva onde fiquei um mês. As facadas afetaram meu baço. Foi Deus que me livrou”, conta Leonardo, atribuindo a continuidade da vida a um milagre.

Esse crime aconteceu faz três meses quando o casal ainda dormia perto do mercado municipal, no Centro de Aracaju. Hoje, Leonardo, Marina e o animal de estimação buscam proteção em um canteiro próximo a uma igreja. Entretanto, lá também não estão totalmente protegidos.

Faz 15 dias que Marina foi dominada por uma outra pessoa em situação de rua e jogada em uma fogueira, o que provocou queimaduras em suas pernas. “Eu estava morando ali e sempre ajudava uma pessoa e ela até me chamava de mãe. De repente, essa pessoa levou meu dinheiro e fez isso comigo. As feridas estavam piores”, relembra Mariana do que episódio que ela considera traição.

“Durmo pelo dia e passo a noite toda acordado. Nem Deus agradou todo mundo, né? Então, se foi difícil para Deus, imagina para o homem da rua. Não dá pra confiar, né?”, conta Rodrigo Silva (nome fictício), 34 anos.

Marina foi jogada dentro de uma fogueira. Foto: Anderson Barbosa

As violências recorrentes sofridas por Leonardo, Marina e Rodrigo em Aracaju não são casos isolados. O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), por meio do painel Disque 100, registrou aumento de 24% nas violações contra pessoas em situação de rua nos primeiros quatro meses de 2024, quando atingiu 6.177 registros.

Os dados do painel se agravaram no final do primeiro semestre deste ano. Até 5 de agosto foram 12.533 registros, quase a soma de todos os casos do ano passado, 12.979. Os estados de São Paulo (653), Rio de Janeiro (250) e Minas Gerais (191) lideram os registros no país.

No Nordeste, o estado de Sergipe é o terceiro da região, com 24 casos oficiais, ficando atrás da Bahia (137), Pernambuco (59) e Ceará (46). Os registros em Sergipe são superiores aos do Rio Grande do Norte (23); Piauí (21), Alagoas (17), Maranhão (13) e Paraíba (13).

As violações registradas pelo Disque 100 envolvem violência física (exposição de risco à saúde, maus tratos, abandono e agressão física) e psíquica (tortura psicológica e constrangimento).

Risco à saúde, maus tratos, abandono, agressão física e tortura (Foto: Anderson Barbosa)

A Mangue Jornalismo já revelou que Sergipe é o estado nordestino em que a violência contra pessoas em situação de rua mais cresceu. Os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) mostram que essa violência saltou de cinco registros em 2015 para 34 em 2022, um crescimento de 580% enquanto a média no Nordeste foi de 50% no mesmo período.

Tanto os dados do Disque 100 quanto os do Sinan permitem constatar que as principais vítimas são homens negros e jovens. Crianças e adolescentes entre 10 e 19 anos representaram 14% das vítimas e as pessoas idosas correspondem a 6%. Em 2022, 14% das vítimas possuíam algum tipo de deficiência ou transtorno. O Sinan revelou ainda que as mulheres transexuais representavam a identidade de gênero mais frequente entre as vítimas.

O relatório da Comissão Arns sobre as violações contra as mulheres em situação de rua no Brasil, apresentado à Organização das Nações Unidas (ONU), mostra que, mesmo sendo minoria nesta população (15%), elas representam 40% dos casos graves de violência psicológica, sexual e física.

Um dos relatos mais dramáticos obtidos pela equipe da Comissão Arns é de uma vítima diante de uma escolha cruel. “A mulher que mora na rua precisa escolher seu estuprador, seu agressor, que vai defendê-la de outros agressores e estupradores”. A Pastoral Povo da Rua, da Arquidiocese de Aracaju, tem relatos de mulheres que ficam sujas de fezes e urina para evitar a aproximação de homens.

Leonardo carrega as marcas das facadas (Foto: Anderson Barbosa)

Três assassinatos contra homens em situação de rua

Em 2024, a Secretaria da Segurança Pública de Sergipe (SSP/SE) divulgou informações sobre três homicídios contra a população em situação de rua no estado.

A cronologia das mortes começa em 23 de abril em Propriá, 100 km de Aracaju. Um homem em situação de rua, que não teve o nome informado pela polícia, dormia na arquibancada de um estádio de futebol quando foi surpreendido por um grupo de homens com socos, pauladas e várias perfurações de faca.

Gravemente ferida, a vítima foi levada ao hospital da cidade onde morreu em 9 de maio. Dias depois, a Polícia Civil prendeu preventivamente três dos quatro suspeitos, moradores da região, sendo que um deles foi preso no mesmo local do crime.

No dia 2 de julho, embaixo do viaduto da BR-101, em Nossa Senhora do Socorro, na Grande Aracaju, moradores encontraram o corpode um homem em situação de rua com ferimentos semelhantes aos provocados por uma arma de fogo. Pouco se sabe sobre o crime e a polícia pede a colaboração das pessoas pelo Disque Denúncia pelo número 181.

O terceiro caso envolveu o senhor José dos Santos na cidade de São Cristóvão, também na Grande Aracaju. Os criminosos jogaram um produto químico na vítima e atearam fogo. As queimaduras de 2º grau atingiram 35% do corpo do homem. Socorrido, ele foi levado ao hospital da cidade e em seguida transferido para o Hospital de Urgência de Sergipe (HUSE), onde chegou no dia 11 de maio já entubado.

Seu José passou dois meses internado passando pela Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ), Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e enfermaria. Diante da gravidade, ele acabou morrendo no último dia 16 de julho, três dias antes de completar 55 anos.

Os suspeitos ainda não foram identificados e o crime só virou caso policial no dia 6 de junho após divulgação do crime pela imprensa. A investigação apontou que a violência pode ter sido praticada meses antes em Aracaju e seria a segunda vez que a vítima apresentou queimaduras semelhantes.

A SSP informa não registrar em um campo específico que a vítima de violência está em situação de rua. Os dados são apenas de “vias de fato, lesão corporal, homicídios, etc.” A Guarda Municipal de Aracaju (GMA) também não tem registros deste tipo de violência nos chamados da corporação em 2024.

José dos Santos foi incendiado e acabou morrendo. Foto: SSP/SE

Cultura racista e punitivista de extermínio

Dois acontecimentos nacionais marcam a violência contra a população em situação de rua. Em 1993, seis crianças e adolescentes, além de dois jovens, foram assassinados por policiais nos arredores da Igreja Candelária, Centro do Rio de Janeiro. Eles dormiam com um grupo de mais de 40 pessoas em situação de rua quando foram atingidos pelos disparos.

Entre 19 e 22 de agosto de 2004 foi registrada a Chacina da Sé, no Centro da cidade de São Paulo. Sete pessoas que se abrigavam na Praça da Sé, próximo da catedral que dá nome à área, foram assassinadas e outras oito ficaram feridas. O 19 de agosto ficou definido como o Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua. 

O sociólogo do Movimento Nacional da População de Rua Matheus Barros analisa que essa população acaba tendo uma certa visibilidade, mas dentro de uma cultura racista e punitivista. “Para os aparelhos de vigilância do Estado, como a segurança pública, esse capital imagético da pessoa em situação de rua sempre ganha notoriedade. No fundo, determinados setores da sociedade e de instituições do Estado elegem por meio dessas premissas os corpos passíveis de sofreram sanções violentas”, diz o sociológico.

Barros observa comportamento semelhante com os outros públicos historicamente vulnerabilizados e defende a resolução dessa questão pelo viés da política social. “Infelizmente, temos vivido uma crescente moral onde a escolha metodológica de abordar tais questões sociais perpassa por uma política da eliminação, quando não o encarceramento em massa. Diversos movimentos sociais apontam para um genocídio de populações específicas, fundamentalmente ligadas a grupos racializados, como o caso da população de rua”, disse.

População de rua é vítima de cultura racista e punitivista de extermino (Foto: Anderson Barbosa)

Em dezembro do ano passado, o Governo Federal lançou o Plano Ruas Visíveis para monitorar a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPSR) em sete eixos: Assistência Social e Segurança Alimentar; Saúde; Violência Institucional; Cidadania, Educação e Cultura; Habitação; Trabalho e Renda; e Produção e Gestão de Dados.

No quesito violência, o plano garante que responderá “a todas as pessoas covardemente assassinadas pelo ódio ou que sofreram com a violência contra o povo da rua com mais direitos, mais respeito e mais democracia”.

O plano também se compromete com o “protocolo para enfrentamento à violência institucional contra a população em situação de rua, além da atualização do Decreto da PNPSR para incorporar as novas soluções que o Plano traz, e a regulamentação da Lei Padre Júlio Lancellotti, que veda o uso da arquitetura hostil que dificulta a presença das pessoas em situação de rua”.

Proteção que cabe ao Estado

A implantação do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Pública Estadual para a População em Situação de Rua (Ciampe/PSR) em Sergipe é uma determinação do Decreto Federal 7.053 de 2009. A Secretaria de Estado da Assistência Social, Inclusão e Cidadania (Seasic) reforça que é uma das maneiras de fazer o enfrentamento à violência contra essa população.

O Ciampe é uma das ações para a garantia de direitos da Diretoria de Inclusão e Direitos Humanos, por meio da Coordenadoria de Políticas Públicas para as Pessoas em Situação de Rua.

De acordo com a secretaria, Sergipe trabalha o Plano Estadual de Apoio Técnico aos Municípios para a capacitação de trabalhadores da Assistência Social e do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) que atuam com Proteção Social Especial (PSE), visando aprimorar a prestação de serviços à população em situação de rua.

Também há o “encaminhamento à Delegacia de Atendimento a Grupos Vulneráveis (DAGV) com posterior tensionamento com o abrigo protetivo de mulheres para casos de violência física/moral/emocional/sexual, encaminhamento ao setor de violência sexual na Maternidade Nossa Senhora de Lourdes (para mulheres, crianças adolescentes vítimas dessa violência), acionamento do Centro de Referência Especializado em Assistência Social (Creas)”.

Em Aracaju, existe o Consultório na Rua, um equipamento que integra a Política Nacional de Atenção Básica fundamental para identificar as violências sofridas nas ruas. A Secretaria da Saúde de Aracaju explica que os casos de violência interpessoal que chegam ao Consultório de Rua são notificados no Sinan. As vítimas passam pela avaliação multiprofissional e são encaminhadas à urgência nos casos de politraumatismo/violência física.

Órgãos públicos garantem que atuam com população em situação de rua (Foto: Anderson Barbosa)

As reportagens da Mangue sobre o assunto

Desde 16 de julho, a Mangue vem publicando reportagens sobre população em situação de rua. Acesse abaixo as três primeiras matérias:

1 – A vida que ninguém quer enxergar do morador em situação de rua em Aracaju. A Mangue Jornalismo revela um quadro crônico de negação de direitos básicos

2 – “Não sonho em ser nada, não, moço. Não tem nada que eu quero ser”. Crianças em situação de rua em Aracaju é tema da segunda reportagem da Mangue

3 – Idosos em situação de rua em Sergipe revelam descaso do poder público

Loading spinner

Compartilhe:

Isso aqui é importante!

Fazer jornalismo independente, ousado e de qualidade é muito caro. A Mangue Jornalismo só sobrevive do apoio das nossas leitoras e leitores. Por isso, não temos vergonha em lhe pedir algum apoio. É simples e rápido! Nosso pix: manguejornalismo@gmail.com

CATADO DA MANGUE

Receba de graça as reportagens

Pular para o conteúdo