ANDERSON BARBOSA, especial para a Mangue Jornalismo
(@andersonbarbosajor)

Quando os primeiros raios rompem a escuridão da madrugada surge uma cidade desconhecida pela maioria dos 600 mil habitantes de Aracaju. Nela, dezenas de pessoas fazem das calçadas na região central da cidade camas de cimento forradas com papelão, um modo de mascarar o chão gelado do período mais frio do ano.
É nesse cenário que buscam o descanso necessário para enfrentar a luta diária pela sobrevivência e visibilidade que não chega. Esse é o começo, meio e fim de uma população estimada em 1.078 pessoas na capital sergipana, segundo o levantamento do mês de junho passado do Cadastro Único (CadÚnico) do Governo Federal.
Para a população em situação de rua, o despertador diário tem formato de uma cidade dura e insensível. O som do relógio que indica que estão vivos é o barulho do vai e vem dos caminhões repletos de mercadorias que chegam no Centro e dos passos apressados dos trabalhadores. Na medida em que o sol vai chegando mais forte e as lojas começam a levantar suas portas, é hora de desparecer ou pelo menos sumir dali para não atrapalhar o comércio.
O número 1.078 de pessoas em situação de rua em Aracaju é resultado de subnotificação. Esse dado é do CadÚnico, mas apenas registra os que têm documentos apresentados aos órgãos públicos. A Pastoral Povo da Rua, da Arquidiocese de Aracaju, acredita que o número oficial de pessoas vivendo nestas condições na capital é pelo menos o dobro do informado pelo Governo Federal.
Curiosamente, para essa população em situação de rua largada por todos, até foi criado um dia no ano para que ela fosse vista. Isso mesmo, existe uma lei municipal em Aracaju que estabeleceu o dia 19 de julho como o Dia do “Morador de Rua” de Aracaju (Lei 3.945/2010). Quem sabe não recebam uma sopa reforçada e um cobertor?
Tendo ou não sopa e cobertor, tudo voltará a ser como foi ontem e todos os dias anteriores, no mesmo horário e no ritmo já conhecidos dos invisíveis. Quem sabe disso é o maruinense Luiz Carlos Barreto, 51 anos, e seus companheiros de calçada de uma agência bancária na Praça General Valadão, no Centro da cidade.
“Aqui o pessoal passa e dá comida, dá sopa, café e me pego com Deus. Banheiro tem no mercado. Banho, tomo todos os dias. Tem um lugar que eu pego água”, conta Luiz, que afirma ter problemas de saúde e completará dez anos de vida nas ruas em 2024.

Um grupo de homens e mulheres que passa a noite no alto de uma escadaria na Avenida Barão de Maruim nem tinha levantado ainda quando Everton Luiz Alves, de 44 anos, já se preparava para a corrida de 10 km até a Orla da Atalaia, Zona Sul da cidade. Correr? Que corrida é essa de um ser humano em situação de rua?
Everton inicia o percurso com o estômago vazio, mas na medida em que vai correndo vai também vencendo a fome, vai parando nas latas de lixo no caminho e se alimentando com as sobras de comida que encontra.
“Quatro horas da manhã já saio pra pagar o material reciclável dos lixeiros, antes que os garis retirem. Daí eu tenho que correr e passar em todas as praças até chegar na praia. Ao final do dia tenho uns dois saquinhos cheios e consigo vender por uns R$ 12, R$ 15. É assim que me sustento”, explica Everton, que é garçom desempregado há dois anos e nasceu em Simão Dias, no interior do estado.

Grávida de 4 meses, Charlene Pereira dos Santos, 37 anos, pensa em largar as ruas e voltar a estudar para ser professora. O que falta a ela é oportunidade para conquistar a estabilidade que buscava há 10 anos, quando saiu de Penedo (AL). “A gente tem que correr atrás dos nossos sonhos. Preciso de dinheiro pra cuidar do meu filho, arrumar um trabalho, dar as condições e o carinho que não dei aos meus outros dois filhos que moram com minha família em Alagoas”, justifica.
Grande parte das pessoas em situação de rua circula pelo Centro da cidade e nas suas proximidades, região mergulhada em um processo de degradação dos prédios particulares, públicos, das ruas e praças. Um dos exemplos desse abandono é a antiga sede da Prefeitura de Aracaju e da própria Secretaria da Assistência Social, dois prédios históricos. Reformados, poderiam ser casas para abrigar os habitantes das calçadas.
Faz quatro anos que Daniel Cordeiro dos Santos, 46 anos, saiu das calçadas e ocupa uma dessas casas. “Não tomam conta. Aí quando a gente invade, logo chega o dono botando a gente pra fora, com aquela ignorância toda. Mas eu tô aí com uma casa que até agora, graças a Deus, tá me ajudando”, conta aliviado.
Quem e quantos são os Luízes, Evertons, Danieis?
O Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua (OBPopRua/POLOS-UFMG) realizou levantamento inédito com o perfil nacional dessa população. Os dados são do CadÚnico do mês de junho e foram divulgados na semana passada, quando o Brasil bateu a marca de 300.868 pessoas em situação de rua. Em maio eram 293.807.
O coordenador do Observatório, André Luiz Freitas Dias, explica que esse aumento expressivo nos registros tem vários fatores como “o fortalecimento da base de dados vindos do Programa Bolsa Família, do Benefício de Prestação Continuada e outros. Também revela a ausência e/ou insuficiência de políticas públicas estruturantes de moradia, trabalho e educação voltadas para essa população, majoritariamente negra e historicamente vulnerabilizada”.
O perfil traçado pelo OBPopRua/POLOS-UFMG se assemelha com os observados nos estados e municípios: 85% da população em situação de rua no Brasil são do sexo masculino e 15% feminino; 87% deles estão na faixa etária de 18 a 59 anos. As crianças e adolescentes (0 a 17 anos) aparecem com 3%; os idosos, 10%; pretos e pardos somam 69%; e as pessoas com algum tipo de deficiência são 14%.
O levantamento mostrou ainda que 85% sobrevivem com renda mensal de até R$ 109,00. No quesito educação: 42% têm o ensino fundamental incompleto; 19% ensino médio completo; 13% ensino fundamental completo; 11% ensino médio incompleto; 2% ensino superior completo/incompleto; e 11% são analfabetos.

Famílias desestruturadas e desemprego
O Observatório Nacional dos Direitos Humanos (ObservaDH), plataforma do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), aponta os três principais problemas que levaram essas pessoas às ruas: conflitos familiares (44%); desemprego (38%); e o uso de álcool/drogas (28%).
Carlos Roberto Lima, 46 anos, vive em um abrigo do Estado. Ele já teve sua carteira assinada e trabalhou em 1997 na função de serviços gerais. No currículo, ele carrega experiência de servente, eletricista e pintor, mas nada disso tem ajudado nesse momento para ser recolocado no mercado de trabalho. Toda semana ele bate ponto na sede da Fundação Municipal de Formação para o Trabalho (Fundat) em busca das vagas de emprego e nada!
“Aí vou para a entrevista e dizem que vão me chamar. Eles perguntam qual o meu endereço, e digo que estou na Casa de Passagem. Acho que é por isso que não me dão uma oportunidade. Quero mudar de vida, quero ser como qualquer um, mas como? Como se não dão oportunidade à gente?”, pergunta Carlos.

Sem qualquer oportunidade no mercado formal, resta às pessoas em situação de rua o trabalho como catador de material reciclável. Esse é o caso do verdureiro Rodrigo (nome fictício), de 34 anos, natural do município de Itabaiana. A família dele não sabe que o rapaz vive em Aracaju em situação de rua.
“Uma vez o rapaz me perguntou: ‘falta o quê para você?’ Se eu tivesse oportunidade, estava na minha cidade e não na dos outros. Tem que gerar emprego pra gente. Não é dar benefício, não, quero emprego de verdade”, desabafa, enquanto desmonta luminárias que ele encontrou no lixo.
Descaso: equipamentos ineficientes
O Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situação de Rua (Centro Pop), previsto no Decreto 7.053/2009, deve funcionar no mínimo cinco dias por semana, oito horas diárias oferecendo uma série de serviços e contando com uma equipe capacitada para atender essa população. O período de atendimento até pode ser ampliado para feriados, finais de semana e períodos noturnos. Tudo isso, na lei.
“Na vida como ela é”, o Centro Pop de Aracaju, localizado na Rua Laranjeiras, é um caos. “O descaso é muito grave, porque fecham [às] 11 horas e a gente tem que ficar aqui na rua, aguardando dar o horário de reabrir. Era uma hora, agora é duas. Quando a gente chega está tudo sujo. A limpeza quando vem acontecer já é depois da alimentação. Eles têm que ver que estão lidando com ser humano”, denuncia a usuária Patrícia Maria Santos.
O coordenador estadual do Movimento Nacional da População de Rua – Sergipe (MNPR-SE), Alisson Oliveira, conta que o equipamento social continua com um déficit de alimentação. No Centro Pop de Aracaju várias pessoas ficam sem almoçar de segunda a sexta-feira.
“Ouço dos usuários com mais de 10 anos de rua que o Centro Pop já foi muito melhor. Com a pandemia, a presença dessas pessoas nas ruas aumentou 400% (passou de 300 para 1200 pessoas). É a mesma gestão municipal e o problema não foi resolvido. Falta vontade política”, acredita Alisson.

No mês de abril, o Centro Pop foi alvo de uma vistoria realizada pelo Ministério Público de Contas do Tribunal de Contas do Estado (TCE) e da Defensoria Pública do Estado de Sergipe (DPE/SE). Após a visita, o espaço passou por uma reforma, mas apenas para tapear, como denuncia o líder do MNPR-SE.
“Consertaram as torneiras, colocaram tampas nos vasos sanitários, mas deixaram os banheiros sem as portas e não reformaram o banheiro para deficientes. Também não fizeram o sistema de esgoto. Chove dentro do Pop na área onde é dada a alimentação. A galera fica sentada, deitada nos papelões e nos colchões colocados nos corredores do equipamento”, enumera Alisson.
A Secretaria Municipal da Assistência Social encaminhou nota confirmando que o local passou por reforma nas dependências físicas e que existem tratativas para a construção de uma nova sede. Disse também que os recursos financeiros para construção estão garantidos, mas não comentou sobre os outros problemas denunciados.
Durante a pandemia da Covid-19, a Prefeitura de Aracaju transformou a Escola Municipal Freitas Brandão em abrigo para a população em situação de rua. Essa transformação da escola em abrigo seria uma ação emergencial, pontual, mas acabou se tornando uma atividade permanente e sem os ajustes necessários.
O local já abrigou 70 pessoas e agora atende 50. A estrutura, localizada ao lado da Igreja Nossa Senhora do Carmo, no bairro Suíça, parece um presídio, e os tapumes tiram a visão da rua. Quem passa na calçada nem percebe a presença dos usuários. Talvez esse seja o objetivo.
A administração municipal explicou que a Casa de Passagem Freitas Brandão, que é uma unidade de Alta Complexidade da Proteção Social Especial, “será transferida provisoriamente para outra estrutura física, com o objetivo de que o espaço em que hoje se encontra passe por uma grande reforma. A transferência tem como objetivo ofertar um serviço de qualidade e de proteção aos assistidos que demandam por acolhimento institucional”.
O MNPR-SE também observa problemas no Restaurante Popular Padre Pedro, administrado pelo Governo do Estado. Ele está localizado no antigo Clube do Vasco, na Avenida Antônio Cabral, próximo dos mercados centrais e do terminal de ônibus do mercado. Pela manhã, a fila se estende pelo quarteirão, onde a população vulnerável permanece por horas até a entrega das quentinhas. Dentro da unidade há uma quadra coberta que daria mais conforto. Confira o vídeo gravado pelo MNPR-SE:
Por nota, a Secretaria de Estado da Assistência Social, Inclusão e Cidadania (Seasic) explicou que existem “horários determinados para o início da entrega das refeições pela manhã, a partir das 10h, e pela tarde, a partir das 15h30. A Seasic reforça o compromisso em atender a todos que chegam no restaurante com o máximo de agilidade”.
De um lado, negação de direitos humanos básicos, falta de assistência mínima e equipamentos sociais desestruturados. Tudo isso envolvendo a população em situação de rua. Entretanto, do outro, a farra de gastos de dinheiro público com shows que ultrapassaram R$ 27 milhões somente no Arraiá do Povo, segundo o Sistema de Compras e Licitações do Governo de Sergipe. Os gastos da Prefeitura de Aracaju com festas e cachês de artistas nacionais também são milionários. Dinheiro existe – e muito.
“Para que isso tudo? Aí é patrimônio da cidade, né? Eu queria que ele olhasse pela sociedade também, né? Não é só olhar para os turistas, não. Por dentro da cidade, esse caos é horrível. Quero é moradia”, observa o verdureiro Rodrigo.


No mês de fevereiro, a DPE/SE e o Ministério Público Federal (MPF SE) estiveram na Casa de Passagem Estadual (Travessa Adolfo Rollemberg, n° 40, Bairro São José), e elaboraram um relatório pedindo providências para melhorar no espaço. O documento entregue à Secretaria de Estado da Assistência Social, Inclusão e Cidadania também pedia a oferta de cursos de capacitação e profissionalização para os acolhidos.
A sede provisória tem capacidade para 34 pessoas, podendo permanecer até 90 dias, oferta de dormida, assistência psicossocial, orientações, escuta qualificada. São três refeições diárias e lanches todos os dias da semana. O coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de Sergipe, Sérgio Barreto Morais, falou sobre o trabalho realizado com esta população.
A Secretaria de Estado da Assistência Social, Inclusão e Cidadania explicou que a Casa de Passagem “retornará ao endereço antigo quando a reforma do prédio for finalizada, seguindo os trâmites de conclusão da obra. O projeto está sendo readequado, com previsão de ampliação do número de pessoas a serem atendidas no novo espaço”.
Subnotificação e urgência do censo da população em situação de rua
O planejamento para atender a demanda em Aracaju, crescente desde a pandemia, evitaria muitas dessas situações. Mas como planejar se não existem dados reais? O problema é que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) não realiza a contagem das pessoas vivendo em situação de rua.
As informações utilizadas pelos gestores públicos são do CadÚnico, onde só aparecem pessoas documentadas. Nos 75 municípios de Sergipe eram apenas 1.368 cidadãos vivendo em situação de rua até o mês de junho. A Pastoral Povo da Rua também acredita que o número real é o dobro dessa contagem.
A Prefeitura de Aracaju tem números de atendimentos bem menores ainda, disponibilizados na internet. São apenas de pessoas que acessam o Serviço Especializado em Abordagem Social (Semfas) formado pelo Centro Pop e pelos Centros de Referência e Assistência Social (CRAS): 421 em 2023; e em 2024 (de janeiro a abril) apenas 46. Somando os outros perfis de usuários são 1.032 nos dois anos.
O Censo da População em Situação de Rua é uma determinação do Decreto 7.053/2009. Em Aracaju, a metodologia do Censo Municipal está em fase final e tem previsão de ser executada no mês de setembro.
Para o Censo, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) no final de 2022 por meio da Rede Municipal de Atenção Psicossocial. Ele é formado pelas secretarias da Saúde e da Assistência Social, Movimento Nacional da População de Rua em Sergipe (MNPR-SE), Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE), Universidade Federal de Sergipe (UFS), Pastoral Povo da Rua e Associação Católica Bom Pastor.
Por nota, a Secretaria Municipal da Assistência Social de Aracaju disse que conhecendo o perfil atual dessas pessoas será possível “traçar ações mais assertivas no atendimento às demandas, garantindo também uma melhor aplicação dos recursos públicos em prol da população em situação de rua”. No levantamento feito pela secretaria, em 2007 eram 384 pessoas em situação de rua ou 0,76% do total da população de Aracaju. Em 2021, no mês de outubro eram 478 pessoas.
Na avaliação do sociólogo Matheus Barros, o censo é fundamental para conhecer a realidade e promover as modificações necessárias na efetivação dos direitos civis dessas pessoas.

“O atributo científico do censo direciona-se para instrumentalizar o poder público, movimentos sociais e a sociedade civil sobre os aspectos inerentes à realidade dessas pessoas. Em última instância, esse atributo científico pretende colaborar para a produção de políticas públicas e na qualificação das políticas já existentes”, pontua Matheus.
“É a partir desse resultado que o MPF e outras instituições de defesa de direitos humanos vão poder melhor fiscalizar, por exemplo, a suficiência dos serviços públicos especializados para essa população, e quais são as ampliações e melhorias que necessitam ser implementadas em termos de direito à alimentação, saúde, trabalho, educação, moradia e tantos outros”, afirma a procuradora regional dos Direitos do Cidadão do MPF/SE, Martha Figueiredo.
Uma resposta
A fabricação dos invisíveis na história do Brasil (e de Sergipe), como bem cita Cristian Góes em seu livro Quem somos nós na fila do pão? Esse é o resultado do capitalismo perverso, produzindo egoísmo e descaso com os mais pobres…