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Idosos em situação de rua em Sergipe revelam descaso do poder público

A Mangue Jornalismo publica a terceira reportagem da série sobre a população em situação de rua em Sergipe, desta vez tratando dos idosos nessa condição. “A vida que eu vivo não é de um ser humano”, desabafa Genivaldo Souza, 64 anos, que vive em situação de rua em Aracaju há 15 anos.

Você já se perguntou como gostaria de chegar aos 60, 70, 80 anos? Certamente na segurança de uma casa, com saúde, mobilidade e bem perto da família.

Infelizmente essa não é a realidade de cerca de 130 idosos em Sergipe, que estão em situação de rua, e esse número pode ser maior. “A vida que eu vivo aqui não é de um ser humano, não”, desabafa Genivaldo Ferreira Souza, 64 anos e em situação de rua em Aracaju há 15 anos.

O que mais comove na história de seu Genivaldo é que ele passa dias e noites num barraco de papelão, lona e lixo erguido em um canteiro em frente ao Cemitério da Cruz Vermelha, no bairro Getúlio Vargas, próximo do Centro da capital.

Genivaldo também não esperava chegar aos 64 anos vivendo em condições de fome, pobreza extrema, abandono e num barraco em frente ao cemitério. “Queria uma aposentadoria e uma casa para dormir, para morar, não é? Tem dias que não tenho forças e fico o tempo todo deitado”, conta.

Não é difícil entender a agonia de seu Genivaldo. Para completar, na madrugada anterior, a chuva torrencial tinha deixado o barraco em situação ainda pior. Estava quase tudo destruído, molhado, inclusive os restos de colchão e uma mala que ele guarda com carinho. Com ela, fazia viagens para matar a saudade. “Queria ver meus filhos, só isso. São três e faz uns dez anos ou mais que não encontro eles”.

Engolindo um pastel com suco que ganhou, ele disse que, com o fim do casamento, caminhou por dois meses e 15 dias de Itabuna (BA) até chegar em Aracaju, 630 km. Ele pensa em retornar para reencontrar os filhos, mas não tem a menor condição humana. Hoje, equilibra-se com o apoio de uma bengala improvisada com um cabo de vassoura retirado do lixo.

A memória de Genivaldo também apresenta sinais de cansaço. As falhas são recorrentes e as histórias se repetem. “E eu já falei isso? Estou ficando meio esquecido. Estou com um problema de demência”, pede desculpas.

Esquecido pelas políticas públicas do Estado brasileiro, seu Genivaldo e muitos outros idosos sequer estão relacionados entre as mais de 300 mil pessoas registradas oficialmente no Cadastro Único (CadÚnico) como população em situação de rua que recebem algum tipo de benefício público. O dado é do mês passado.

Os que têm mais de 60 anos e vivem em situação de rua somam cerca de 30 mil em todo país. Em Sergipe, estima-se a existência de 130 pessoas nessa condição. Entretanto, esses dados são estimativas. Não há estatística confiável sobre a real situação dessa população. O fato é que a existência de idosos abandonados e sobrevivendo em ruas e praças é uma denúncia permanente do descaso das políticas públicas.

A assistente social e voluntária na Associação Católica Bom Pastor, Rosivânia Ramos Barbalho, também acompanha a situação dos idosos nas ruas e chama a atenção da dependência do álcool/drogas e a convivência com doenças como a tuberculose. “Essas pessoas com tuberculose na rua não aceitam ir para abrigo, para um asilo ou receber outro tratamento. Por conta do vício, resistem e ficam nas ruas”, observa.

Rosivânia conta ter visto vários idosos chegando ao final da vida em situação de negligência, entregues ao abandono e sem forças para mudar o rumo da história.

“Morrem como indigentes, como pessoas que não existem. Foram vários que a gente acompanhou no cemitério colocando o nome como eram conhecidos. Eles não sabiam quem era a família. É uma situação muito negligente, degradante, que não deveria existir. O Estado e o Município não fazem um acompanhamento completo de saúde, de propostas de uma vida diferente, de compreensão, de abertura de um espaço digno para eles ficarem, mesmo que não consigam permanecer por muito tempo”, analisa a assistente social.

No percurso pela capital, a Mangue Jornalismo encontrou Suzana Silva (nome fictício). Ela já ultrapassou os 60 anos e não quer muita conversa. Disse que já perdeu a confiança nos órgãos públicos, cujas sedes ela observa diariamente enquanto vive em um banco da Praça Fausto Cardoso, no Centro, bem próximo dos prédios do Tribunal de Justiça e da Assembleia Legislativa.

“Quero falar, não. Não é nada com você, mas estou cansada de falar, falar. Toda eleição eles vêm aqui, prometem e a gente continua da mesma forma ou pior. Não adianta a gente falar”, reclama, com razão, dona Suzana após beber uma dose de cachaça para, quem sabe, animar a ênfase contra o descaso e as falsas promessas.

Outra idosa tem uma faixa amarrada em uma das pernas, uma proteção contra os ferimentos aparentes. E sobre aparência, ela dava sinais de algum transtorno psiquiátrico. Na noite anterior, de fortes chuvas, conseguiu se abrigar numa das coberturas da Universidade Tiradentes, no Bairro Farolândia. Não quis dizer seu nome, não quis qualquer conversa e imediatamente saiu pelas ruas sem destino.

Das latinhas de seu Ari ao mestrado do seu Henrique

O cansaço do corpo e da alma também é notório em José Ari Correia e suas mais de sete décadas de vida. Sentado no centro da Praça Hilton Lopes, entre os mercados municipais, ele usa um dos sacos repletos de latinhas de alumínio como almofadas.

Quem interrompe aquele descanso entra em um labirinto de devaneios e para não transformar a conversa em monólogo precisa falar mais alto, em função da surdez. “Tenho 71 anos de idade. Nasci em Boquim no dia 15 de novembro de 1940”, afirma sem perceber a traição da memória. Pela data informada, ele teria 84 anos e não 70 e poucos. Isso pouco importa.

Seu José garante que passa o dia nas ruas e à noite se abriga em uma casa alugada. Sem aposentadoria, precisa trabalhar para comer. “Minha missão é ‘ressuscitar’ latinhas. O povo gosta de mim como orador. Orador é um homem profeta, fiel, sem fumar, sem beber. Até aqui Jesus me libertou da maldição. Graças ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo. Porque Ele me deu vida e saúde”, prega.

Outro caso curioso é de José Henrique da Conceição, 65 anos. O título de mestre em Teoria Literária pela Universidade de Brasília (UnB) e a experiência como professor universitário em instituições particulares de Aracaju não evitaram a situação de rua por mais de uma década.

Ele passou uma parte da vida nas calçadas e nos bancos da Praça Fausto Cardoso, no Centro da cidade. Ali foram espaços de abrigo e até de difusão do conhecimento. Sim, na praça, em condição de rua, o professor chegou a orientar uma doutoranda e viveu a difícil experiência real da anulação do ser humano.

“Seja mestre, doutor, seja um zé-ninguém, todos estão no mesmo barco. Portanto, o que está fora das normas torna-se um problema a ser enfrentado pela normatividade e, ao mesmo tempo, expressa o principal efeito de enquadramento normativo. É o pessoal que está vivo, não é a vida, mas o seu estatuto ontológico aberto à apreensão. É mestre, mas bebe. É mestre, mas está em situação de rua. É mestre, mas é negro”, ensina seu Henrique.

José Henrique entende que a apartação social é uma forma afrontosa e devastadora imposta pela sociedade contra as pessoas em condição de invisibilidade social. “Sendo a forma intolerante que a elite dominante brasileira utiliza de manipular a sociedade contra essas pessoas, passando a vê-las como problema e não as políticas públicas para erradicar essa desproteção social. Quando as políticas provocam uma repercussão positiva são seguidas também pela negação e essa posição negacionista produz a apartação”, pontua.

Depois de 27 anos de contribuição social, ele finalmente conseguiu se aposentar e deixar as ruas. Agora, mora em um cantinho alugado. “Se não tivesse contribuído para o INSS, não teria obtido uma aposentadoria minimamente razoável. Agora mesmo, o pai dos pobres disse que o aumento do salário-mínimo para 2025 será de R$ 80 reais a mais, vai tornar mais gordo e robusto. De qualquer forma, é sempre bom saber que é certo que não podemos fazer um novo começo. Todavia, nunca é tarde para construirmos um novo fim”, filosofa o mestre.

Subnotificação não humaniza a vida nas ruas

A ausência de um censo da população em situação de rua (a promessa é que Aracaju deverá fazer um levantamento no mês de setembro próximo) dificulta a execução das políticas públicas para esta parcela da população. Na condição de indocumentados, essas pessoas não conseguem acessar benefícios básicos e comuns à idade e muito menos contribuir com a Previdência Social.

“Eles não recolhem INSS, são integralmente dependentes do serviço público de saúde e segurança. Esse processo de envelhecimento sem a cobertura dos agentes públicos torna o quadro de vulnerabilidade dessa população ainda pior. É um quadro delicado e que exige atenção”, destaca o demógrafoKleber Oliveira, professor do Departamento de Estatística e Ciências Atuariais da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

O professor não entende o motivo da ausência de relatórios confiáveis no Brasil com a radiografia das ruas, facilitando o diagnóstico e o monitoramento por parte dos governos. “Variações do número de pessoas em condição de rua não necessariamente significa melhoria ou piora das condições. Nesse caso, o sub registro é muito grande. Além disso, existe o caráter difuso dessa população. Nela estão pessoas com afecções psicossociais, transtornos mentais, desempregados e pobres”, elenca o pesquisador.

Diante do dado difuso, Kléber Oliveira acredita ser fundamental estabelecer uma política de profundo conhecimento sobre o tema. “As assistentes sociais possuem grande vivência nessa questão, mas isso não é suficiente para os gestores maiores. Não conhecendo o fator gerador do problema não é possível tratar adequadamente”, avalia.

Um importante marco legal para ajuda na luta pela dignidade das pessoas que chegaram aos 60 anos é o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741, de 1º de outubro de 2003), “destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 anos”, um instrumento para cobrar a execução de ações e políticas públicas em uma das fases mais vulneráveis do ser humano.

O termo “idoso em situação de rua” não aparece no Estatuto, o que não exclui o grupo dos direitos assegurados pelo documento. O artigo 2º do documento, por exemplo, garante que “a pessoa idosa goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhe, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, para preservação de sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”.

No artigo 3º do Estatuto consta: “é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária”.

O documento prevê a prática de abandono como crime de seis meses a três anos de detenção e multa. Já o artigo 99 é mais incisivo: “Expor a perigo a integridade e a saúde, física ou psíquica, da pessoa idosa, submetendo-a a condições desumanas ou degradantes ou privando-a de alimentos e cuidados indispensáveis, quando obrigado a fazê-lo, ou sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado”. A depender da gravidade, a reclusão vai até 12 anos.

Um projeto de lei que institui o Estatuto da População em Situação de Rua, o Fundo Nacional da População em Situação de Rua e o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, criminaliza a aporofobia (PL 1.635/2022) está no Senado. Se aprovado, pode ser também um marco na efetivação dos direitos de pessoas em situação de rua.

Vulnerabilidades de idosos em situação de rua

Os transtornos mentais são uma realidade entre esses idosos e necessitam de atenção. O Observatório Nacional dos Direitos Humanos (Observa DH) aponta que 18% das pessoas em situação de rua no Brasil desenvolvem essa condição.

O psicanalista Jorge Broide, mestre em Psicologia Clínica (PUC–Campinas) e doutor em Psicologia Social (PUC-SP), um dos precursores da psicanálise de rua, enxerga o idoso em situação de rua como resultado de um abismo de pobreza, violência e desamparo.

Com o corpo mais fragilizado, essa condição só piora exponencialmente pela rotina nada saudável dessas pessoas. Diante do histórico de vida, o espaço urbano é onde depositam o que há de mais importante e significativo. “Essa é a razão pela qual a população em situação de rua tem uma ligação tão forte com a calçada e o que ela significa”, explica em um dos seus artigos.

Broide visualiza uma dupla dependência de “projetar nas calçadas e abrigos os laços conscientes e inconscientes anteriores à vida nas ruas e que foram rompidos; e a fragilidade física e psíquica decorrente do envelhecimento. Ambas as situações se potencializam, aumentando o desamparo vivido pelo sujeito”.

A geriatra Isabele Lisboa explica o envelhecimento como um processo natural e não pode ser confundido com doença. É um período que reforça a necessidade dos cuidados preventivos para ter o corpo e mente saudáveis, mas para os idosos em situação de rua esta é uma realidade bem distante.

“Começa pelo fato de não terem abrigo adequado, ficam muito expostos a condições climáticas adversas (frio, calor extremo, chuvas) o que aumenta o risco de doenças respiratórias. Tem também a questão da alimentação inadequada e a dificuldade de acesso à água potável, que vai contribuir para uma desnutrição, para uma desidratação. E a desnutrição e desidratação acabam agravando outras doenças crônicas como diabete e hipertensão”, elenca a geriatra.

Para Lisboa, é fundamental o envolvimento da sociedade e das autoridades públicas na mobilização e oferta de soluções para a garantia de um mínimo de dignidade e bem-estar. “Tem a questão também da falta de acesso aos serviços de saúde, medicamentos e a tratamentos regulares. Em muitas condições crônicas a gente precisa de tratamento e acompanhamento contínuos”, alerta a especialista.

A presidente do Conselho Municipal da Pessoa Idosa, Maria José Matos, é uma defensora dos direitos dessa população ao longo de mais de 30 anos de militância. “Vinte e um anos depois da chegada do Estatuto da Pessoa Idosa os desafios ainda são enormes, mas fico feliz em saber que o Conselho Municipal tem respaldo em Aracaju e além-fronteiras, isso por causa do nosso trabalho. Estamos celebrando uma parceria com o Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe para fazer a mediação de conflitos de pessoa Idosa”, revela a presidente.

A Mangue Jornalismo procurou a Coordenação de Políticas Públicas em Defesa dos Direitos das Pessoas em Situação de Rua do Estado de Sergipe, unidade da Secretaria de Estado de Assistência Social e Cidadania (Seasic).

Por nota, a secretaria disse ser comprometida com o Estatuto do Idoso através da Diretoria de Inclusão Social e Direitos Humanos e que a Coordenadoria da Pessoa Idosa atua no fortalecimento do controle social, oferecendo apoio técnico às equipes municipais na implementação de políticas públicas específicas, além de trabalhar no fortalecimento e articulação da rede de proteção.

“Também desenvolve campanhas educativas contra a violência contra o idoso, faz diagnóstico das Instituições de Longa Permanência (ILPIs) em parceria com o Conselho Estadual dos Direitos e Proteção da Pessoa Idosa (CEDIPI) e promove o Edital de Chamamento Público do Fundo Estadual da Pessoa Idosa (FUNDPROI), que destina recursos financeiros às ILPIs e organizações que trabalham com o desenvolvimento da pessoa idosa”.

Ainda segundo a nota, a secretaria informa que desenvolve de forma contínua e em parceria com o Conselho Estadual da Pessoa Idosa (CEDIPI) capacitação continuada de conselheiros internos e dos conselhos municipais. Já nos equipamentos ‘Cuidar Bugio’ e ‘Santa Maria’ são desenvolvidas atividades físicas e lúdicas com foco na pessoa idosa, assim como a confecção da Carteira de Identidade Nacional.

Dentro das ações voltadas às pessoas com 60 anos ou mais, Aracaju disponibiliza duas Casas Lares, unidades da Alta Complexidade da Proteção Social Especial mantidas através da Secretaria Municipal da Assistência Social. Cada uma acolhe dez idosos em situação de vulnerabilidade e/ou risco social com vínculos familiares rompidos. Elas contam com uma equipe multiprofissional com assistente social, psicólogo, cuidador social e educador social.

O funcionamento da Casa Lar segue os moldes de uma residência com cuidadores sociais ofertando alimentação, medicamentos, banho, entre outras funções. Além disso, existem atividades com trabalhos manuais, ações culturais, recreação, lazer, passeios externos e atividades físicas.

Em Sergipe, uma pequena parcela desses idosos está em abrigos administrados pelo Estado e Município. Na “Casa de Passagem Freitas Brandão” da Secretaria da Assistência Social de Aracaju, dos 50 acolhidos, apenas cinco são idosos. Já na Casa de Passagem da Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania (Seasic) são 34 acolhidos; desses, quatro são idosos.

Na busca para que essa população tenha acessos aos benefícios legais, no próximo 20 de agosto será realizada uma grande ação social envolvendo diversas organizações sociais, jurídicas e outros voluntários. O evento é em alusão ao 19 de agosto – Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua. A data relembrar o assassinato de sete pessoas enquanto dormiam na Praça da Sé, em São Paulo. Essa chacina ficou conhecida como o Massacre da Sé.

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