A Mangue Jornalismo fez um raio X dos gastos dos oito deputados federais por Sergipe com cotas parlamentares entre janeiro e setembro de 2023. Em alguns casos, há indícios pontuais de irregularidades na contratação de empresa fantasma para aluguel de carros, de pagamento por serviços que não existiram ou que não são contemplados por lei e que, juntos, custaram aos cofres públicos R$ 2.287.244,19 até 26 de setembro deste ano.
As cifras brutas e o Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) dos prestadores de serviços pagos com cota parlamentar foram coletadas pela reportagem a partir de dados de acesso gratuito disponíveis no site oficial da Câmara dos Deputados.
Adotou-se a mesma classificação de despesas usada pela Câmara dos Deputados na discriminação dos valores aplicados. Vale ressaltar que a inexistência de registro no site da Câmara dos Deputados não significa a inexistência da despesa, pois pode ter havido, por exemplo, atraso na inserção de notas fiscais, recibos ou outros documentos comprobatórios.
Mais de R$ 181 mil gastos com divulgação
Dos dados levantados até 26 de setembro deste ano, destacaram-se os gastos com “divulgação de atividades parlamentares”, ou seja, contratação de empresas de publicidade e marketing, pagamento para veiculação na mídia de informações sobre os deputados (estações de rádio e sites, por exemplo) e confecção de materiais como outdoors. O deputado federal Ícaro de Valmir (PL) teve o maior valor total de gastos nesta categoria: R$181.800,00.
Outra despesa digna de nota é a de “aluguéis de veículos”. O deputado federal João Daniel (PT) lidera a lista dos que mais gastaram nesta categoria, alcançando a cifra de R$101.600,00. Logo atrás e empatados estão a Delegada Katarina (PSD) e Fábio Reis (PSD), cujo valor gasto por cada um até o momento foi de R$ 88.900,00.
Paralelo ao aluguel de veículos está o consumo de combustível, que variou bastante, indo de R$ 0,00 informado por Gustinho Ribeiro (Republicanos) – apesar de ter pago R$ 38.100,00 com aluguéis de veículos – até R$ 56.920,00 despendidos pela deputada Delegada Katarina.
Confira no gráfico abaixo a evolução mensal de todas as despesas dos deputados federais sergipanos pagas por cota parlamentar até 26 setembro de 2023:
Ícaro de Valmir: indício de despesas “fantasmas” na divulgação
Aos 22 anos, Ícaro de Valmir (PL) foi o mais jovem deputado federal sergipano a se eleger em 2023 e gastou em divulgação mais da metade de todo o valor de cota parlamentar que aplicou até setembro deste ano. Mais de R$ 180 mil de dinheiro público foram gastos com pagamentos a 13 pequenos veículos de comunicação da capital e do interior do estado para divulgar suas atividades parlamentares. A média de gasto mensal com esses serviços ficou em R$ 22 mil.
A Mangue Jornalismo questionou o deputado sobre os critérios para uso da cota parlamentar. Sua resposta se apossou do discurso institucional divulgado pela Câmara dos Deputados para justificar os gastos. Segundo Ícaro em resposta por e-mail, “Lá [no Ato da mesa 43/2009] estão todos os gastos que o parlamentar pode realizar e, em seguida, após um criterioso procedimento de apresentação de notas e análise documental, receber o ressarcimento”.
O que o congressista não contemplou em sua resposta foi que, mesmo com a apresentação de notas e recibos, há indícios de “serviços fantasmas” em sua prestação de contas.
O principal caso que pode sugerir “publicidade fantasma” paga pelo parlamentar envolve a Mira Empreendimentos e Marketing, registrada em uma residência no município de Tobias Barreto, região centro-sul de Sergipe. Foram emitida este ano duas notas fiscais em nome da Mira, uma em maio no valor de R$ 5 mil e outra em setembro no valor de R$ 3 mil. O serviço prestado teria sido a divulgação das atividades do deputado no site “Na Mira da Notícia Brasil”.
Uma busca simples pelos termos “Ícaro”, “Icaro”, “Ícaro de Valmir” ou “Icaro de Valmir” na página da internet registrada com o domínio www.namiradanoticiabrasil.com.br revela que não há qualquer publicidade referente ao mandato do deputado. A dita contrapartida prestada pela Mira, ao que se constatou na pesquisa, não teria sido executada.
Contatada pela reportagem por telefone, Sandra Dantas da Silva, registrada como sócia-administradora da Mira, respondeu positivamente ao nosso primeiro questionamento sobre se a empresa prestava serviços de divulgação, e então não retornou mais às nossas mensagens.
Todos os outros sete deputados foram contatados para explicarem quais critérios utilizam na contratação de serviços pagos por cota parlamentar. Além de Ícaro, o deputado Thiago de Joaldo (Progressistas) foi o único que retornou os contatos da reportagem.
Quanto à contratação de serviços de divulgação de atividade parlamentar, o deputado Thiago explicou por email que “a escolha pela contratação se dá seguindo alguns critérios, dentre eles, e principalmente, a capacidade técnica e qualificação profissional, uma vez que é preciso tornar público as ações do mandato, bem como a atuação do parlamentar em âmbito federal. Para além da capacidade técnica, também é levado em consideração o local sede desses profissionais, pois o deputado [Thiago de Joaldo] tem uma atuação forte nas regiões Sul e Centro-Sul do Estado, e uma equipe nessa localidade facilita todo o processo de comunicação.”
Fábio Reis: indício de gastos com empresa “fantasma” na locação de veículos
No caso do deputado federal Fábio Reis (PSD), os indícios de contratação “fantasma” foram encontrados pela reportagem nas notas da locadora de automóveis JI Veículos (nome fantasia), da cidade de Lagarto, para o aluguel de uma Toyota Hilux SW4 SRX 2.8 AT6 4X4 de 2021 e um carro modelo Corolla A XEI 2.0 AT 2022/203 ao custo mensal de R$ 6.700,00 e R$ 6.000,00, respectivamente.
As notas fiscais mensais emitidas pelo serviço estão no nome da locadora. Contudo, o endereço registrado no Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral da empresa sedia, na verdade, a AutoCred Veículos e Financiamentos. Curiosamente, o sócio-administrador da AutoCred, Marcos Vinícius de Oliveira Nascimento, é irmão dos sócios-administradores da JI Veículos, Isadora Maiara de Oliveira Nascimento e João Marcos de Oliveira Nascimento.
A Mangue Jornalismo verificou que a sede física da JI Veículos não existe há anos no endereço informado. Já no endereço da AutoCred registrado no Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral – portanto, o endereço oficial da empresa – não há nada.
Os dados sugerem que o deputado Fábio Reis teria supostamente contratado uma locadora de veículos que não possui sede física há anos e ainda assim emite notas fiscais mensais no valor total de R$ 12.700,00 referentes ao aluguel de dois veículos, sendo que no endereço do que seria a locadora há, na verdade uma empresa de consórcio e financiamento de carros fundada em 2020.
Em 2021, Fábio e outros 27 deputados e ex-congressistas eram investigados pelo Supremo Tribunal Federal por irregularidades no uso da cota parlamentar no que era então “uma das investigações com maior número de parlamentares envolvidos, ao lado do chamado inquérito das fake news”, como informado pelo Congresso em Foco.
Questionado por email sobre os critérios que adota para a aplicação da cota parlamentar e para quais fins os veículos foram alugados, o deputado não se manifestou até a publicação da reportagem.
Gustinho Ribeiro contratou empresa de ex-secretário de comunicação de Lagarto
O deputado federal Gustinho Ribeiro (Republicanos), eleito em 2022 para seu segundo mandato consecutivo, contratou por meio de cota parlamentar a empresa G2 Comunicação, da qual um dos sócios-administradores é Rafael Galvão Fonseca, ex-secretário de comunicação de Lagarto em 2020 durante a gestão da prefeita Hilda Ribeiro (Solidariedade), com quem Gustinho é casado.
A empresa recebeu quatro pagamentos no valor de R$ 15 mil nos meses de maio, junho, julho e agosto, totalizando R$ 60 mil reais em serviços que variam da produção de stories e postagens para redes sociais a matérias sobre as atividades parlamentares do deputado.
No relatório de atividades do mês de julho deste ano, a G2 relata ter produzido o texto “Autor da denúncia caluniosa contra a prefeita Hilda Ribeiro não sustenta acusação no MP”, distribuído para a imprensa. Por lei, a cota parlamentar só pode ser aplicada em gastos diretamente relacionados à manutenção e divulgação do trabalho dos parlamentares.
Não é a primeira vez que a Mangue Jornalismo identifica favorecimentos por parte do deputado federal Gustinho Ribeiro à gestão de sua esposa usando expediente federal. Reportagem publicada com exclusividade pela Mangue em junho revelou que o deputado destinou mais de R$ 11,4 milhões via transferência especial – uma modalidade de transferência de emendas parlamentares – para Lagarto.
Para 2023, o deputado havia alocado mais de R$ 10,7 milhões para a cidade administrada pela esposa. Conhecidas também como “emendas Pix”, as transferências especiais são amplamente criticadas por pesquisadores em gestão pública por deixar livre aos congressistas a destinação das verbas sem definição de prioridades e com rala fiscalização da aplicação do dinheiro.
O deputado foi contatado pela reportagem em duas ocasiões diferentes ao longo da última semana, mas não respondeu aos questionamentos.
O que são as cotas parlamentares?
Oficialmente denominada como Cota para Exercício da Atividade Parlamentar (CEAP), ela foi instituída em 2009 “destinada a custear gastos exclusivamente vinculados ao exercício da atividade parlamentar, observados os limites mensais” que são estipulados de forma fixa para cada estado brasileiro variando conforme a distância do domicílio eleitoral do parlamentar em relação à capital federal. O quadro abaixo lista os valores determinados para cada deputado federal segundo a unidade federativa:
De forma resumida, “o valor mensal do benefício deve ser utilizado pelo deputado para custear despesas típicas do exercício do mandato parlamentar, como aluguel de escritório de apoio ao mandato no estado, passagens aéreas, alimentação, aluguel de carro, combustível, entre outras”, como informado pelo site da Câmara dos Deputados.
Sobre a prestação de contas, o Ato da Mesa Nº 43 de 21 de maio de 2009, documento que cria a CEAP e estabelece suas regras, esclarece que “Admite-se a comprovação da despesa por meio de cupom fiscal ou nota fiscal simplificada quitada, mesmo que o documento não contenha o campo próprio destinado ao nome do beneficiário do produto ou serviço.”
No ano passado, o site Congresso em Foco lançou o Cartão da Transparência, iniciativa que permite a qualquer cidadão monitorar em tempo real os gastos com cotas parlamentares de um ou mais deputados, senadores e até mesmo presidente. A pessoa cadastra, por e-mail, o nome de um congressista ou presidente em exercício e recebe notificações toda vez que o político monitorado fizer uso da CEAP.
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