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Municípios de Sergipe receberam mais de R$ 133 milhões via Emenda Pix de deputados federais e senadores. A falta de transparência é regra nos repasses

ANA PAULA ROCHA e CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo

Entre os anos de 2020 e 2022, deputados federais e senadores de Sergipe despejaram mais de R$ 133 milhões nos cofres de 69 prefeituras no estado. Apenas seis municípios sergipanos não receberam essas verbas do orçamento federal que chegaram via “Emenda Pix”, modalidade de transferência de recursos feita diretamente, sem exigência da assinatura de convênios, sem apresentação prévia de projetos ou anuência do Governo Federal.

Com exclusividade, a Agência Mangue Jornalismo mapeou e divulga os valores destinados aos municípios de Sergipe pelos parlamentares do estado através dessas transferências diretas. Saiba quanto cada deputado federal e senador usou desse expediente e quais os municípios beneficiados.

Nós entramos em contato com os deputados, ex-deputados, senadores e ex-senadores, bem como entrevistamos pesquisadores sobre orçamento público, além dos responsáveis por órgãos que representam os interesses de municípios. Também contatamos gestores municipais para entendermos como funciona do processo de pedido por emendas até a confirmação do recebimento do dinheiro e o uso desses recursos.

Dinheiro público repassado por parlamentares: simples como fazer um Pix

Sob o argumento de agilizar a transferência de recursos federais a municípios, estados e Distrito Federal, a deputada federal Gleisi Hoffman (PT-PR) propôs o que veio a ser a Emenda Constitucional nº 105/2019, que teve relatoria do também deputado federal Aécio Neves (PSDB-MG), ferrenho opositor do PT. Por conta dessa emenda, passou-se a registrar uma nova opção de alocação de recursos da União, a chamada “transferência especial”.

Não demorou e, por meio da EC 105/2019, já a partir de janeiro de 2020, milhões de reais começaram a cair diretamente nas contas de prefeituras, governos estaduais e do Distrito Federal. Devido à extrema facilidade com que são concedidos recursos públicos por este dispositivo, a emenda passou recebeu a alcunha de “Emenda Pix”.

O que chama atenção é que, para além da falta de especificação de finalidade das verbas liberadas, um ponto incluído pela deputada Gleisi Hoffman, mas suprimido completamente pelo deputado Aécio Neves no texto final da EC 105/2019, deixou as movimentações envolvendo a Emenda Pix ainda mais opacas: a definição sobre os mecanismos de monitoramento e fiscalização da aplicação dos recursos.

A Ong Transparência Brasil rastreou os valores, os destinatários e os parlamentares que alocaram recursos federais por meio de transferência especial. O resultado desse levantamento foi relatório publicado no final de maio no qual consta que, de 2020 a 2022, mais de R$ 5,97 bilhões foram empenhados por meio desta modalidade, sendo que R$ 5,55 bilhões tiveram como destino final prefeituras espalhadas por todo o país.

A Transparência Brasil registra ainda que a cifra prevista na Lei Orçamentária Anual (LOA) para as transferências especiais em 2023 é de R$ 6,75 bilhões, podendo chegar a R$ 7 bilhões, segundo dados do Sistema Integrado de Orçamento e Planejamento (SIOP) consultados em maio deste ano.

Dentre os problemas identificados, o documento ressalta a “desobrigação de prestação de contas pelos beneficiados”, o que contribui para a falta de clareza sobre o real uso dos valores recebidos. Virtualmente, o dinheiro pode ter bancado qualquer coisa, ainda que a emenda especifique os casos nos quais é vedado o uso dos recursos de transferência especial, explicitando que só podem ser aplicados em investimentos e custeio.

Em março deste ano, o TCU decidiu que a fiscalização sobre a aplicação das transferências especiais “é de competência do sistema de controle local”. Ocorre que muitos desses órgãos, a exemplo do Tribunal de Contas Estadual (TCE) e do Ministério Público Estadual (MPE), possuem como funcionários familiares e amigos de gestores públicos e dos parlamentares. 

Mais de R$ 133 mi chegaram aos municípios de Sergipe

A reportagem da Mangue Jornalismo constatou que, fora algumas exceções, a dinâmica de escolha dos municípios beneficiados em Sergipe pelos deputados federais e senadores obedeceu aos interesses diretamente relacionados aos parlamentares.

Veja aqui os valores totais repassados pelos
deputados federais e senadores por Sergipe

Raros foram os casos nos quais o parlamentar registrou o destino de aplicação do repasse via Emenda Pix na plataforma Transfere.gov, na qual devem constar as informações sobre as emendas parlamentares. Também foram praticamente nulos os municípios que preencheram o relatório de gestão e anexaram os documentos comprovando as ações. A Prefeitura de Estância foi a única que se aproximou de preencher satisfatoriamente a plataforma, não tendo registrado a aplicação de apenas um repasse.

Relações familiares na cidade de Lagarto

O município sergipano mais beneficiado com recursos via Emenda Pix foi Lagarto, que recebeu mais de R$ 11,4 milhões entre 2020 e 2022. O montante chama a atenção não somente por ser alto ao ser comparado com o recebido pela segunda colocada da lista, a cidade de Itabaiana (mais de R$ 4,89 milhões), como também pelo fato de que 98% do valor de Emenda Pix veio de um único autor, o deputado federal Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE), que é casado com a prefeita do município, Hilda Ribeiro.

Além da esposa, a sobrinha de Gustinho, Rafaela Ribeiro, também trabalha na Prefeitura de Lagarto, ocupando o posto de Secretária-Chefe de Gabinete. A irmã do deputado federal, Polyana Ribeiro, foi Secretária de Saúde durante a gestão da cunhada, e a tia, Acácia Ribeiro, foi Secretária-Adjunta da Assistência Social do município até seu falecimento, em abril de 2021. O pai do deputado, Luiz Augusto Ribeiro, é conselheiro do TCE-SE e foi presidente do órgão entre 2020/2021.

Apesar do montante milionário enviado para Lagarto, o deputado Gustinho Ribeiro não registrou na plataforma Transfere.gov quais as áreas de políticas públicas nas quais os recursos deveriam ser aplicados. No “Relatório de Gestão”, a Prefeitura de Lagarto também não inseriu informações sobre as atividades realizadas com o dinheiro das transferências especiais nem documentos comprobatórios das ações, mesmo decorridos três anos do primeiro empenho feito por Gustinho, no valor de R$ 1 milhão. No relatório da Transparência Brasil, Lagarto foi citada como exemplo de falta de transparência no preenchimento da plataforma.

Questionada pela Mangue Jornalismo sobre se a relação de parentesco com o deputado federal do Republicanos foi fator determinante para a alocação dos recursos e em que eles foram aplicados, a prefeita de Lagarto e esposa de Gustinho, Hilda Ribeiro, não respondeu aos nossos contatos até o fechamento da reportagem.

O deputado federal também não se pronunciou sobre a falta de finalidade dos recursos na plataforma Transfere.gov e qual o critério que usou para destinar o equivalente a 68,6% de todo o valor que empenhou por transferência especial no período para o município onde a esposa é prefeita. Gustinho é presidente do colegiado da CPI das Americanas, que investiga os fortes indícios de corrupção na rede varejista. A Mangue Jornalismo continua aberta à manifestação dos dois.

Para 2023, já consta como “ciente” um empenho de Gustinho Ribeiro no valor de mais de R$ 10,7 milhões para Lagarto, o maior dentre todos os repasses já recebidos por cidades sergipanas via Emenda Pix.

Ampla pulverização e forte concentração

O caso de Lagarto é extremo, mas não é o único entre parlamentares sergipanos que exemplifica a concentração de repasses maiores para cidades relacionadas ao congressista que realizou a alocação do recurso.

O ex-deputado Bosco Costa (PL), por três vezes eleito para a Câmara dos Deputados, cujo mandato mais recente foi de 2019 a 2023, foi o parlamentar sergipano que mais recursos empenhou de 2020 a 2022. Foram mais de R$ 22,4 milhões. Os dois maiores valores foram justamente para a cidade natal do político e para o município do qual ele foi prefeito, respectivamente Itabaiana e Moita Bonita. O restante do dinheiro foi, em sua maioria, pulverizado em doações menores que R$ 1 milhão dentre outras 23 prefeituras por ele favorecidas.

De todos os mais de R$ 22,4 milhões em empenhos repassados por Bosco Costa, nenhum teve definição de área declarada na plataforma Transfere.gov e apenas R$ 1,5 milhão teve relatório e documentos comprobatórios anexados pelas prefeituras beneficiadas. Entre os maiores empenhos do então deputado federal para o ano de 2023, ele destinou R$ 2,5 milhões para Muribeca (cujo prefeito também é do PL) e o mesmo valor para Malhada dos Bois. As duas cidades juntas não superam 11,4 mil habitantes e não registraram qualquer relatório ou documentos sobre o uso dos empenhos recebidos nos anos anteriores. Bosco Costa foi procurado e não respondeu às tentativas de contato da reportagem.

A ex-senadora Maria do Carmo Alves (PP) e o ex-deputado federal Valdevan Noventa (PL) também separaram para 2023 valores consideráveis – os maiores em seus históricos – para cidades a eles diretamente relacionadas. Cedro de São João, cidade natal daquela que é a única mulher a ocupar por três vezes uma cadeira por Sergipe no Senado, recebeu R$ 4,3 milhões.

Valdevan destinou R$ 5 milhões para Ribeirópolis, cidade cujo prefeito é do PP, partido que apoiou a candidatura de Bolsonaro (PL) à reeleição. O ex-deputado teve o mandato cassado em 2022 por abuso de poder econômico. Em seu lugar, assumiu Márcio Macêdo (PT), cujos repasses alocados em 2022 só foram recebidos em 2023 e somam R$ 2,75 milhões para sete municípios.

As informações sobre a área de destino e gestão dos recursos recebidos entre 2020 e 2022 são nulas por parte de Maria do Carmo e Valdevan. Eles também não responderam às tentativas de contato da Mangue Jornalismo.

Deputado por Sergipe mandou dinheiro para Santa Catarina

O deputado federal reeleito João Daniel (PT-SE), além de ter empenhado valores para 26 cidades sergipanas sem especificar para nenhuma delas as ações nas quais o dinheiro seria aplicado, também alocou R$ 250 mil para o município de Jupiá, em Santa Catarina, seu estado natal.

O deputado faz parte do grupo de 13 parlamentares que destinaram, entre 2020 e 2022, valores para municípios de estados que não são seu domicílio eleitoral. Contatada, a assessoria de João Daniel informou que ele “está participando de uma missão oficial internacional entre os dias 10 e 21 deste mês [junho]” e que só conseguirá “encaminhar as informações posteriormente”. A reportagem será atualizada assim que recebermos os esclarecimentos do deputado.

O ex-deputado federal Fábio Henrique (União Brasil) e o deputado federal Fábio Reis (PSD) não deram resposta aos questionamentos da Mangue Jornalismo sobre os critérios de escolha de beneficiados com transferências especiais até a publicação da reportagem.

A assessoria do ex-deputado federal e atual governador de Sergipe, Fábio Mitidieri (PSD), confirmou o recebimento das questões apresentadas, mas também não respondeu. O ex-deputado federal e atual senador Laércio Oliveira (PP) não retornou nossos contatos.

Para todos, a Mangue Jornalismo continua aberta a receber os esclarecimentos e publicará, atualizando a reportagem, assim que as manifestações chegarem. Importante, todos os questionamentos foram encaminhados com ampla margem de antecedência para esta publicação.

A Federação dos Municípios do Estado de Sergipe (FAMES) e a Confederação Nacional de Municípios (CNM) foram indagadas, por e-mail, sobre como avaliam os três primeiros anos de aplicações via Emenda Pix e se dão algum tipo de orientação aos municípios quanto à prestação de contas. Apesar de terem confirmado o recebimento, não responderam antes do fechamento da reportagem.

Um verdadeiro nó no investimento em municípios

Em artigo publicado no ano passado, o advogado e especialista em orçamento público Romero Oliveira Arruda explica que os defensores da Emenda Pix argumentam que ela oferece “celeridade ao financiamento de obras e serviços, por meio da redução dos processos burocráticos que compõem os convênios públicos e outros instrumentos de repasse.”

Este ponto foi ressaltado pelo senador Rogério Carvalho (PT) em entrevista à Mangue Jornalismo. Candidato ao governo de Sergipe no pleito passado, o congressista destaca que antes da aprovação da EC 105/2019, “as transferências com finalidade definida implicavam em um custo operacional para as prefeituras, e os recursos eram liberados em parcelas, o que acarretava em atrasos em obras e melhorias”.

O senador Alessandro Vieira, que anunciou este mês saída do PSDB para o MDB, segue a mesma linha do colega de Senado. Para a Mangue Jornalismo ele disse que “os times técnicos de análise de projetos dos Ministérios são pequenos e com altas demandas de todo o país, o que gera, em alguns casos, morosidade para o recurso chegar na ponta”, afirmou.

Como a avaliação da viabilidade dos projetos e liberação dos valores era feita via Caixa Econômica Federal – que viveu intenso processo de desmonte durante o governo de Michel Temer (MDB) – a operação se tornou bastante lenta e era onerosa para as prefeituras, que pagavam uma taxa administrativa à Caixa. “Para se ter uma ideia, encerrei meu mandato de deputado federal em 2015 e até hoje existem parcelas sendo pagas de emendas parlamentares feitas por mim, daquela época!”, complementa o senador Rogério Carvalho. 

Segundo dados do IBGE divulgados em 2021, cerca de 70% de todos os 5.570 municípios brasileiros possuem não mais que 20 mil habitantes. Em Sergipe, por exemplo, das 69 cidades beneficiadas com recursos via transferência especial, 45 fazem parte desse grupo. Esses municípios apresentam baixa arrecadação local e grande dependência de verbas federais, particularmente do Fundo Participativo Municipal (FPM), muitas vezes insuficiente para custear os gastos da máquina pública e ainda executar investimentos, como pavimentação de estradas, construção de escolas e realização de projetos culturais de longo prazo.

A transferência especial, portanto, seria uma solução para impulsionar a efetivação de políticas públicas principalmente no nível municipal, atendendo as cidades mais desassistidas financeiramente.

Contudo, como as emendas parlamentares impositivas (das quais fazem parte tanto a modalidade transferência especial como a transferência com finalidade definida) oferecem ao parlamentar grande liberdade na escolha de quem será favorecido, “o autor [do repasse] fica totalmente livre e à vontade para escolher os beneficiários como bem queira”, sublinhou Arruda em artigo. Além disso, a determinação da aplicação dos repasses não está, por lei, atrelada a planos de trabalho maiores, vinculados a iniciativas do poder executivo estadual e federal.

Emenda Pix e o esvaziamento das políticas públicas

Uma vez que não se sabe com certeza no que foram aplicados os recursos e de que forma eles foram executados, não é possível medir o efetivo impacto dos repasses por Emenda Pix na concretização de melhorias para a população.

Perguntada pela Mangue Jornalismo sobre os problemas intrínsecos às transferências especiais do ponto de vista das boas práticas em políticas públicas, a pós-doutora em Administração (FGV/RJ) e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane Pinto citou texto de sua autoria no qual afirma que “a execução das emendas parlamentares é marcada […] pela descontinuidade nos serviços públicos, haja vista a falta de critérios que priorizem as obras já em andamento e os projetos inscritos no planejamento das políticas públicas.”

O senador Alessandro Vieira esclareceu que, para fazer da destinação de todos os seus repasses por emendas parlamentares algo eficaz e colocar para a sociedade a decisão de como aplicá-los, lançou já em seu primeiro ano de mandato, em 2019, o Programa de Emendas Participativas, também adotado por outros parlamentares, como os deputados federais Glauber Braga (PSOL-RJ), Túlio Gadêlha (Rede-PE) e Marina Helou (Rede-SP). Por meio de edital aberto, os municípios sergipanos inscrevem propostas de projetos para receberem os recursos federais.

“O edital determina alguns critérios como: impacto social e/ou ambiental, relevância e aderência com a realidade local. Na segunda fase do Programa, com votação popular, a escolha é feita pela sociedade. Em 2022 mais de 65 mil sergipanos e sergipanas votaram e escolheram os projetos que este ano estão sendo beneficiados com nossas emendas”, explicou o senador. O próximo edital será lançado em julho deste ano.

A inscrição no projeto implica o aceite da prefeitura em relação ao “monitoramento que é feito pelo nosso mandato, incluindo o contato periódico com o executor, análise de documentos e visita técnica.” Ainda assim, algumas das cidades beneficiadas pelo senador via Emendas Pix em 2022 e este ano não constam como contempladas nos resultados dos respectivos editais.

Em março deste ano, uma portaria interministerial apoiada por Alessandro Vieira passou a exigir definição prévia de áreas de aplicação no sistema Transfere.gov para aprovar alocações via transferência especial. Com a aproximação das eleições municipais de 2024, as emendas parlamentares, particularmente a modalidade transferência especial, podem ser decisivas para o avanço ou encolhimento do poder de grupos políticos na esfera estadual e federal.

Veja os valores por município da Emenda Pix
enviadas pelos parlamentares entre 2020 e 2022

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