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Consulado dos Estados Unidos em Salvador foi decisivo para implantar ditadura em Sergipe. Veja a lista dos primeiros nomes alvos do golpe de 1964

CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo

Tanto no golpe jurídico-midiático do ano de 2016, que derrubou a presidente do Brasil Dilma Rousseff, quanto na Operação Lava Jato, que resultou na prisão do presidente Lula em 2018, a interferência do Governo dos Estados Unidos nos destinos nacionais foi mais uma vez vista na história. Entretanto, essas participações estadunidenses não são novas e estão em quase todas as ditaduras na América Latina.

No ano de 1964, por exemplo, o Governo dos Estados Unidos agiu fortemente no Brasil. No caso de Sergipe, um grupo do consulado estadunidense em Salvador foi deslocado para monitorar estudantes, políticos e trabalhadores no menor estado do país, além de orientar sobre quais ações de repressão deveriam ser adotadas.

O Consulado dos Estados Unidos em Salvador produziu dossiês que resultaram na prisão de 150 sergipanos, a maioria levada para o 28º Batalhão de Caçadores. Temas como corrupção, prisão, cassação do governador Seixas Dória e opinião pública foram considerados como “problemas” a serem enfrentados e contornados para garantir o golpe de 1964 e a ditadura em Sergipe, que o consulado chamou de “revolução”.

Mangue Jornalismo publica hoje mais um texto editado a partir do relatório final de trabalhos da Comissão da Verdade do Estado de Sergipe (CEV/SE), organizado por Andréa Depieri e Gilson Reis. A comissão sergipana trabalhou de 2016 a 2019 e contou com o apoio e colaboração de várias pessoas e entidades. Esta é a quarta reportagem dessa série especial que a Mangue publica. As anteriores estão com link ao final do texto.

Exército foi orientado pelo Consulado dos EUA em Salvador (Foto Arquivo MS)

AI-1: investigações, prisões e cassação de mandatos

Assim que o golpe de Estado civil-militar depôs o então presidente João Goulart, em 1º de abril de 1964, inicia-se um período de ditadura, inclusive com a decretação de Atos Institucionais (AIs), ou seja, um conjunto de normas jurídicas produzidas em regime de exceção que foram utilizados para legitimar o golpe e a ditadura.

Entre os anos de 1964 e 1969 foram expedidos 17 Atos Institucionais e 104 Atos Complementares que, progressivamente, alteraram a Constituição Federal de 1946 até que, em 1967, foi promulgada uma nova Constituição, desenvolvida sob arbítrio do governo autoritário.

Esta nova Lei Maior, somada aos AIs, que continuaram sendo editados, desarticulou o sistema pluripartidário e abriu precedentes para a perseguição sistemática de opositores políticos ao regime constituído. Em suma, o Estado democrático, moldado pela Constituição de 1946, foi desconfigurado.

Logo após o golpe de 1964, a presidência da República foi assumida interinamente pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Pascoal Ranieri Mazzilli. Entretanto, quem mandava mesmo era uma junta de três ministros militares autodenominada de “Comando Supremo da Revolução”, formada pelo vice-almirante Augusto Rademaker Grünewald, da Marinha; o tenente brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, da Aeronáutica; e o general Arthur da Costa e Silva, da Guerra, responsável pelo Exército.

Nos dias que sucederam ao golpe, os militares fizeram milhares de prisões arbitrárias, criando um cenário de medo generalizado. O Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade indica que foram efetuadas em torno de 20 mil prisões por todo o país.

Segundo o historiador Ibarê Dantas, os números em Sergipe não são precisos e podem ter variação entre 70 e 1000 pessoas presas ou detidas para “averiguações”.

Além das prisões, a publicação do primeiro Ato Institucional, redigido pelo jurista Francisco Luiz da Silva Campos e publicado pelo “Comando Supremo da Revolução” no dia 9 de abril estabeleceu a investigação sumária de servidores públicos e abriu precedentes para que o governo pudesse cassar mandatos legislativos e suspender direitos políticos de qualquer cidadão. Dessa forma, buscou-se desarticular a oposição e neutralizar qualquer possível resistência civil ou institucional.

Com o AI 1: investigações e prisões sumárias (Foto Arquivo MD)


A lista dos primeiros nomes alvos da ditadura em Sergipe

Com a publicação dos atos, inúmeras pessoas sofreram punições políticas em todo o país ao longo do período ditatorial. Entre os punidos estavam lideranças políticas de destaque no cenário político nacional, a exemplo dos ex-presidentes João Goulart e Juscelino Kubitschek.

Com esse mesmo objetivo (deter, prender e punir), o 28º BC (Exército em Sergipe) produziu uma listagem endereçada ao secretário do Conselho de Segurança Nacional com o nome de 58 sergipanos para indiciamento. A CEV/SE constatou que as pessoas arroladas como indiciadas sofreram sanções políticas durante o regime militar.

Lista de indiciados em Sergipe dois dias depois do AI-1 (Relatório final CEV/SE)

Esse documento apresenta nomes que poderiam representar alguma resistência à consolidação do golpe militar.

Como se vê no texto do Ofício nº 48/CS69, expedido pelo Comandante da Guarnição Federal de Aracaju e do 28º BC, major Francisco Rodrigues da Silveira, e endereçado ao general secretário da Segurança em 11 de junho de 1964, os nomes foram inclusos na lista de indiciados do quartel do Exército em Sergipe de acordo com os seguintes critérios:

(I) “envolvidos em atividades contrárias aos interesses da nação, sejam por corrupção, subversão, peculato, estelionato ou ainda por acordos com elementos comunistas”;

(II) “por serem comunistas atuantes”;

(III) “por serem comunistas atuantes, fichados na 2° Secção desta unidade e na Secretaria de Segurança Pública do Estado”;

(IV) “por terem tido seus mandatos de Prefeito cassados pelas Câmaras de Vereadores de seus respectivos municípios, por ação subversiva contrária à Segurança Nacional”.


Políticos influentes não perderam seus direitos políticos

Dentre os indiciados que não tiveram seus direitos políticos suspensos estão nomes conhecidos e influentes no cenário político sergipano à época, como o deputado federal José Carlos Teixeira e os ex-governadores Leandro Maciel e Lourival Batista.

Esta circunstância causou algum incômodo, de tal modo que, anos depois, em maio de 1969, o Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica (SISA) produziu um informativo que demonstra preocupação com a não punição de políticos indiciados, como se vê no recorte a seguir:

Trecho do informativo da SISA acerca da situação de não punição. (Relatório final CEV/SE)

A ação em Sergipe do Consulado dos Estados Unidos em Salvador

Os impactos do golpe civil-militar e as consequências decorrentes da aplicação do AI-1 em Sergipe são cuidadosamente avaliados em um amplo relatório produzido pelo Consulado dos Estados Unidos em Salvador e direcionado ao Departamento de Estado/Escritório de Negócios Interamericanos, em 15 de julho de 1964. O governo estadunidense estava interessado em saber como o golpe havia se consolidado em Sergipe.

O relatório mencionado avalia o estado após os três primeiros meses da “revolução”. Temas como corrupção, prisão, cassação de Seixas Dória e opinião pública foram considerados como problemas a serem enfrentados e contornados para garantir a “revolução”.

O documento citado destaca como principal consequência do golpe civil-militar em Sergipe a rápida prisão e encarceramento do governador Seixas Dórea e avalia que o novo governador, Sebastião Celso de Carvalho, e o presidente da Assembleia Legislativa de Sergipe, Fernando Prado Leite, seu substituto legal, são amigáveis quanto aos Estados Unidos.

O relatório produzido pelo cônsul dos Estados Unidos indica a prisão de cerca de 150 pessoas no primeiro momento, dentre as quais 30 ainda permaneciam presas na data de envio do documento. As demais haviam sido soltas com restrições quanto a deixar Sergipe sem permissão dos militares. Relata também que, naquele momento, José Rosa de Oliveira Neto, chefe da Casa Civil do governo Seixas Dória, permanecia preso.

As renúncias de José Rosa e de Luiz Rabelo Leite da Secretaria da Educação e Saúde também são consideradas no relatório do Consulado. Nos termos relatados, segundo Prado Leite, os conselhos de José Rosa teriam levado Dória para o mal caminho. Prado Leite, inclusive, surpreendentemente, expressara publicamente seu respeito por Dória. Isso levou à inferência (constante do relatório em apreço) de que Prado Leite, assim como outros, subscrevia a tese de que o radicalismo de Dória vinha sendo imposto pela necessidade de suporte do Governo Federal deposto.

Governador Celso de Carvalho era considerado amigável aos EUA (Foto Arquivo MD)


Consulado dos Estados Unidos monitorava a vida pública em Sergipe

As novas coligações e ajustes na governança, bem como na política local, são detalhadas nesse documento dirigido ao Departamento de Estado estadunidense, com destaque para os apoiadores do governo e da “revolução”. Pedro Barreto de Andrade, suplente do deputado cassado Baltazar Francisco do Santos, aparece como líder da maioria da Assembleia Legislativa.

O documento avalia que a “revolução” havia conseguido parar, ao menos temporariamente, “atividades radicais”, dentre elas:

1 – o Exército removera, com sucesso, camponeses das imediações da Leste;

2 – Um interventor fora nomeado para controlar o jornal a Gazeta porque Orlando Dantas, seu editor, era apoiador do governador Seixas Dória;

3 – O grupo de teatro do Movimento de Cultura Popular fora dissolvido;

4 – O arcebispo Dom José Vicente Távora, embora tivesse afirmado que continuaria a educar a população rural quanto à necessidade de reformas radicais, se mantinha em relativa inatividade.

Major Silveira, comandante do 28º BC, adotando uma linha dura, teria desdenhado de uma “revolução” que acaba depois de dois meses sem derramamento de sangue. Ainda segundo o mesmo documento, Silveira considerava infrutífero caçar subversivos em Sergipe já que, se existisse algum, certamente estaria escondido. O comandante do Exército em Sergipe teria manifestado ainda inconformismo com o fato de Seixas Dória não ter seus direitos políticos suspensos.

Após relatar os acontecimentos dos três meses posteriores ao golpe, o cônsul dos Estados Unidos, Harold Midkiff, tece comentários sobre a percepção local relativa à “revolução” que, no seu entender, era vista com desilusão, ceticismo e persistente esperança, muito embora, as duas primeiras superassem a última.

Tradução livre do texto: AEROGRAMA – USO OFICIAL LIMITADO
Objeto: Sergipe: Três meses depois da Revolução
RESUMO

Na segunda semana de julho, de forma conservadora, o governo tinha sido completamente restaurado em Sergipe. Embora permaneça algum entusiasmo limitado pela Revolução, este é superado pelo ceticismo, particularmente no que diz respeito à guerra contra a corrupção, e pela desilusão, principalmente por parte da linha-dura. O oficial responsável pelo relatório encontrou pouco rancor ou má vontade, por outro lado palavras bastante gentis foram dedicadas a Seixas Dória, por parte de políticos agora no comando e seus apoiadores, não há uma grande esperança pelos esforços de Castelo Branco, segundo um deputado estadual deposto.


Ditadura implantadas de forma relativamente tranquila

Segundo o relatório final da CEV/SE, o golpe civil-militar de 1964 foi instaurado em Sergipe de forma relativamente tranquila. A oposição foi prontamente neutralizada a partir de uma onda de prisões, cassações, demissões e aposentadorias. O novo governo se consolidou sem maiores dificuldades.

O fato é que a classe política em Sergipe se reinventou a partir de novos arranjos, as elites locais permaneceram com seus privilégios, a corrupção não foi realmente enfrentada, as instituições se adaptaram à nova legalidade e os poucos que se levantaram contra o golpe, ou que simplesmente questionavam as injustiças sociais, foram sistematicamente enquadrados pela repressão.


O texto que você leu é o quarto dessa série. Os outros dois foram:

1º) Você conhece a história de Anísio Dário? Esse operário negro foi morto pela Polícia de Sergipe em 1947 e até hoje o Estado não foi responsabilizado

2º) Governo de Sergipe é denunciado por censurar e torturar jornalistas, operários e estudantes. Relatório revela histórias quase invisíveis dos anos 50

3º) Os primeiros dias do golpe e da ditadura de 1964 em Sergipe. Registros de perseguições, prisão do governador, cassação de deputados e resistências

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