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Governo de Sergipe é denunciado por censurar e torturar jornalistas, operários e estudantes. Relatório revela histórias quase invisíveis dos anos 50

CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo

Depois do caso Anísio Dário, um carpinteiro negro e comunista que foi barbaramente assassinado em 1947 no Centro de Aracaju pelas forças policiais do Governo de Sergipe, a Mangue Jornalismo continua a publicar (compromisso com o direito à verdade e à memória) parte do relatório final de trabalhos da Comissão da Verdade do Estado de Sergipe (CEV/SE), divulgado em 2020.

Hoje, trazemos os casos de perseguição, prisões, censura e torturas determinadas pelo Governo de Sergipe contra jornalistas, operários e estudantes nos anos 1950. Vale destacar que o Brasil ensaiava um período democrático a partir da Constituição de 1946, mas em Sergipe, a repressão vinda do Estado Novo se mantinha e preparava o terreno para a chegada da ditadura civil-militar nos anos 1960.

Os diversos processos-crime em Sergipe que a CEV/SE teve acesso permitem afirmar que, a partir dos anos 1950, houve uma dura e difusa repressão política: mais de 100 pessoas foram detidas, presas, indiciadas e processadas. A longa série de prisões e coações entre 1950 e 1953 indicam ter sido esse o período de mais dura repressão política em Sergipe.

Neste contexto, a repressão política alcançou especialmente gente mais simples, que vinha conhecendo e partilhando as ideias do comunismo: trabalhadores, artesãos, costureiras, gente simples, majoritariamente pessoas negras.

A maioria das informações aqui publicadas está no relatório final da CEV/SE, organizado por Andréa Depieri e Gilson Reis. Além disso, contribui decisivamente com esse texto o pesquisador e escritor Gilberto Francisco Santos (Gilfrancisco), que também foi membro da CEV/SE, assumindo a presidência em alguns momentos. Entre os anos de 2016 a 2019, a Comissão Estadual da Verdade “Paulo Barbosa Araújo” contou com o apoio e colaboração de várias pessoas e entidades.

Por conta da “Guerra Fria” e do forte alinhamento do Governo do Brasil com o dos Estados Unidos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) colocou na ilegalidade, em 7 de maio de 1947, o Partido Comunista (PCB), que era visto como peça central da engrenagem para o avanço do comunismo no Brasil. O Governo Dutra (1946-1951) operou o controle sobre a dissidência política alinhada com a ideologia comunista.


Dura repressão e censura em Sergipe

Em Sergipe, o governador do Estado, José Rollemberg Leite, fez cumprir os termos da Instrução do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Várias instruções foram emitidas através de Portarias do ministro Benedito Costa Neto e enviadas a Leite para garantir o efetivo fechamento do PCB com a consequente perseguição e desarticulação de sua militância.

Na correspondência trocada entre o chefe de Polícia do Departamento de Segurança Pública, Paulo Xavier de Andrade Monte, e o desembargador do Tribunal de Justiça, Hunald Santaflor Cardoso, fica evidente que o Governo do Estado de Sergipe não só tinha conhecimento, como atuou diretamente para o fechamento das células da seção Sergipe do Partido Comunista Brasileiro, conforme documentos dos dias 9 e 12 de maio de 1947.

O Governo do Estado de Sergipe foi responsável também pela instauração de mecanismos de censura aos órgãos de imprensa, vez que, ao proceder a reabertura dos órgãos de veículos de imprensa que haviam sido fechados (Constituição de 1946), impunha, seguindo recomendação federal, critérios sobre o que podia ser publicado.

Em 14 de maio de 1947, na cidade de Aracaju, o Jornal do Povo, de propriedade do jornalista Manuel Francisco Oliveira, foi obrigado a encerrar as suas atividades por ordem do chefe de polícia, Paulo Xavier de Andrade Monte. Para tentar conter o fechamento do jornal, o advogado Carlos Garcia impetrou habeas corpus em favor dos jornalistas e operários para que pudessem ter acesso à sede do jornal e produzi-lo.

Vale aqui citar os nomes de todos que foram censurados e perseguidos: os jornalistas João Batista de Lima e Silva (editor do Jornal do Povo) e Manuel Francisco Oliveira; o redator-chefe Márcio Rollemberg Leite; o secretário Walter Sampaio; os redatores auxiliares Carlos Garcia e Aloisio Sampaio; o repórter Nelson Araújo; o gerente Francisco Xavier; o auxiliar de gerência José Ribeiro de Moura.

Jornalista Márcio Rollemberg Leite (Foto Arquivo de Gilfrancisco)

O habeas corpus também era em favor dos operários gráficos Joaquim Alves, Manuel Barroso, José Osvaldo, Othoniel Santos, José Donato, Jorge Almeida, Manuel Santana, José Crispiano, Elisaldo Barbosa, José Augusto, José Matos, João Carlos e Francisco Santos.

Um telegrama de José Waldson de Oliveira Campos, jornalista, diretor do A Verdade e membro da Associação Sergipana de Imprensa (ASI), enviado à Associação Brasileira de Imprensa (ABI), dava conta do ataque sofrido pelo seu jornal, em 9 de maio de 1951. Segundo Waldson Campos, o periódico foi alvo da truculência da polícia, que invadiu o espaço e impôs o seu fechamento. A abordagem policial terminou com a destruição e o incêndio da oficina.

Jornalistas Zitelmann de Oliva, João Batista e Luis Henrique (Foto Arquivo de Gilfrancisco)



Sequestro e tortura contra o jornalista Fragmon Borges

Outro episódio que demonstra a arbitrariedade do Governo de Sergipe foi o sequestro e espancamento sofrido por Fragmon Carlos Borges, jornalista, comerciante, editor do jornal Folha Popular e membro do Comitê Estadual do PCB.

O Termo de Declarações do dia 4 de maio de 1949 descreve que, no dia 29 de abril de 1949, às 10h20, Fragmon Borges estava próximo à farmácia Santa Cruz, localizada no centro de Aracaju, quando foi abordado e levado por investigadores de polícia. O destino desta condução foi a região da Atalaia Velha, mais precisamente no Mosqueiro, região litorânea de Aracaju, onde foi brutalmente espancado.

Segundo o pesquisador Gilfrancisco, Fragmon Carlos Borges foi orador e jornalista do extinto jornal do Partido Comunista Brasileiro, A Verdade (SE), dirigido por José Waldson Campos. Ele foi secretário de divulgação e propaganda do partido durante vários anos. Estudioso da questão agrária, o sergipano de Frei Paulo destacou-se como quadro do PCB de Pernambuco tendo se tornado pessoa chave na direção do semanário Novos Rumos (RJ) depois de 1959. Morreu em São Paulo nos anos setenta, vítima de um infarto fulminante, ao qual certamente não estiveram alheias as tensões da clandestinidade impostas pelo regime militar de 1964.

Veja o texto Espancado um jornalista, em Sergipe, publicado no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 3 de maio de 1949:

“O jornalista sergipano Fragmon Carlos Borges, após ter sido preso por ordem do secretário de Segurança Pública e conseguir sua liberdade por intermédio do advogado Carvalho Neto, foi novamente preso na sexta-feira última. Os policiais sequestraram o jornalista, conduzindo-o em um automóvel à distante localidade de Mosqueiro, onde dentro de uma mata o espancaram com uma borracha de pneu de automóvel e outros instrumentos. Banhado de sangue, o Sr. Fragmon foi abandonado como morto no local do espancamento. Recuperando os sentidos e vendo que os seus agressores já haviam partido, conseguiu alcançar a cidade próxima, onde pessoas amigas o socorreram. Sábado, o advogado Carvalho Neto requereu exame de corpo de delito na pessoa do agredido, o que foi feito perante o juiz da vara criminal. Ferimentos e equimoses foram fotografadas e ainda no sábado a vítima, acompanhada do seu colega Paulo Costa, compareceu à Assembleia Legislativa, exibindo aos deputados presentes o seu corpo coberto de ferimentos”.

Desenho de Fragmon Borges (reprodução do Arquivo de Gilfrancisco)

Política de repressão se mantinha e ação dos EUA

Entre 1951 e 1955, ocorreram em Sergipe violações sistemáticas aos direitos humanos decorrentes especialmente de perseguição de natureza política. Estiveram à frente do Governo do Estado, sucessivamente, João Dantas Martins dos Reis (1951), Edézio Vieira de Melo (1951) e Arnaldo Rollemberg Garcez (1951–1955).

Neste período, há uma série de ações repressivas tanto contra militantes e simpatizantes de uma forma geral, operários de indústrias do setor têxtil, principalmente da Fábrica Confiança e da Sergipe Industrial; como também contra todos e todas envolvidos nas publicações da imprensa local, como o Jornal do Povo, A Verdade, Imprensa Popular, Voz Operária e Classe Operária. Esse acontecimento dava sinais de que os anos vindouros não seriam dos mais democráticos. Durante o terceiro mandato de Getúlio Vargas (1951–1954) foram intensificadas as relações do Brasil com os Estados Unidos. O interesse comercial estadunidense na exploração dos campos de petróleo pela empresa Standard Oil elevou ainda mais as tensões entre Vargas e seus opositores, que o acusavam de ser “entreguista”.

Governadores de Sergipe na repressão: João Dantas Martins dos Reis, Edézio Vieira de Melo e Arnaldo Rollemberg Garcez (Foto Arquivo)


Documento produzido por Fragmon Borges mostra que, também aqui, a entrega do petróleo produzido em Sergipe à Standard Oil elevou a tensão política. Além da discordância quanto à política do petróleo, o envio de soldados brasileiros à Guerra da Coreia (1950–1953) também desagradava, ocasionando manifestações.

Neste mesmo contexto político, em 1952, Sergipe recebe a visita do Departamento Federal de Investigação dos Estados Unidos (FBI) e da Comissão do Serviço Secreto da 6ª Região Militar. Segundo Fragmon, o encontro foi agendado por major Prado, considerado pelas células do PCB/SE como um verdadeiro integralista. A veiculação de ideias consideradas subversivas – “propaganda vermelha” – através de panfletos, livros de filosofia, boletins e pichações foi o argumento encontrado para enquadrar criminalmente os opositores do Governo Federal com base na Lei de Segurança Nacional (LSN) então vigente.

Gilfrancisco ainda lembra o nome do advogado e jornalista Carlos Garcia que chegou a ser preso ainda nos anos 1930 quando era estudante de Direito. “Foi preso, mas não registram sua prisão na delegacia, que era uma praxe. O irmão dele, Luiz Garcia (futuro governador) era deputado e fez pronunciamento na Assembleia cobrando da polícia o paradeiro de Carlos”, informa o pesquisador. Carlos Garcia também chegou a ser preso mais uma vez e foi advogado dos operários da fábrica têxtil.

O pesquisador também lembra de outros comunistas presos, a exemplo do alfaiate Osório Ramos de Araújo, depois juiz; do jornalista Austrogésilo Santana Porto; do médico, jornalista e escritor Renato Mazze Lucas; do jornalista Nelson Correa de Araújo; do militar Agliberto Azevedo; de José Nunes da Silva.

Austrogésilo Porto, Renato Lucas e Agliberto Azevedo (Fotos Arquivo de Gilfrancisco)


Prisões de estudantes Otávio Dantas e Antônio Melo

O episódio da prisão de Otávio de Melo Dantas e Antônio Correa de Melo, conhecido como Tonico Alfaiate, ilustra como se dava o enquadramento dos supostos militantes na Lei de Segurança Nacional.

Otávio e Antônio eram estudantes da Faculdade de Direito de Sergipe; o primeiro havia, inclusive, sido vereador em Maruim/SE. Em agosto de 1952, por ordem do capitão e 2º delegado Manoel Vicente Ferreira, foi determinada a busca e apreensão de todo o material encontrado em um dos quartos do prédio onde moravam, situado na rua João Pessoa, região central de Aracaju.

João Marques Guimarães, promotor público, ao realizar suas alegações finais no processo criminal instaurado contra Otávio Dantas e Tonico Alfaiate, pediu a condenação de ambos por ato de propaganda comunista. A expressão “propaganda” compreendida, neste contexto, como o ato de espalhar e difundir, proclamar ou propalar, dispersar, distribuir ou transmitir. Eles foram condenados a dois anos de prisão.

Assim, as Leis de Segurança Nacional (nas suas diferentes versões) serviram de instrumento legal para enquadrar criminalmente e mandar para a prisão vários operários, industriais, estudantes, médicos e advogados que mantinham um pensamento contrário ao Governo e eram tachados como subversivos e enquadrados na LSN.

Relatório produzido pela Secretaria de Segurança Pública e divulgado em 9 de dezembro de 1952, assinado pelo 1º delegado de Polícia, Rosalvo Vieira de Melo, descreve como ocorreram as ações para desarticulação das células do PCB. Estas informações constam do Inquérito Civil e do Inquérito Policial Militar, abertos no dia 30 de agosto de 1952.

Uma grande operação foi conduzida pelo Governo do Estado contando com a participação de diversos órgãos ligados à segurança pública para condução das investigações, diligências e prisões dos investigados. A Capitania dos Portos de Sergipe foi representada por capitão de corveta Antônio Maria Nunes de Souza; 3º sargento Nicanor Rabelo de Morais, cabo José Alves da Silva Daltro, soldados José da Hora Costa, Francisco Mendes de Carvalho, Waldir Miranda de Almeida, Joaquim Soares de Carvalho e José Carvalho da Silva.

A Polícia Estadual de Sergipe foi representada por: 1º tenente Roque Simas; 2º tenente Maurilio Rodrigues Figueiredo; os aspirantes Teófilo Correia Dantas e José Astério Feitosa e sub-tenente João Francisco Guimarães Filho. Colaborou também o 28º Batalhão de Caçadores representado pelo 2º sargento Edgard Menezes e pelo 3º sargento Orlando de Oliveira. Pela Divisão de Polícia Política e Social (DEOPS) colaborou o investigador Euclides Batista dos Santos; pela Polícia Fiscal do Tesouro do Estado, participou Wilson Pizzi Gomes. Participaram também as funcionárias públicas do Estado Yara Lúcia de Almeida e Valdete Vieira da Silva.

Segundo o relatório final da CEV/SE, a primeira organização de jovens em Sergipe era designada, em 1952, de União da Juventude Comunista. Ela tinha três células identificadas: Escola Técnica de Comércio, Colégio Estadual de Sergipe e Escola Industrial de Aracaju. Participam entre outros Nelito Nunes de Carvalho, Cleon Santos Pinto e Hélio Nunes da Silva.

Em 17 de novembro de 1952, o então juiz de Direito da 1ª Vara da Comarca de Aracaju, Benedito da Silva Cardoso, decretou a prisão preventiva de Filemon Franco Freire Oscar Guimarães Mota, Antônio Alves Santana, Manuel Vicente, José Honorato Lima, João Lima dos Santos, Fragmon Carlos Borges, Nelito Nunes de Carvalho, Lídio Santos, João de Matos, Hélio Nunes da Silva, Antônio Correia, Gilberto Queiroz e Antônio Lisboa. Na ocasião, foi revogada a prisão de Waldemar Freire de Carvalho.

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