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A longa batalha dos Fulkaxó pelo retorno à terra em Sergipe. Após 18 anos de luta, a comunidade indígena é a segunda a recuperar parte de sua terra tradicional

CRISTIANO NAVARRO e TAUÃ FERREIRA, da Mangue Jornalismo

Depois de 32 anos de apagamento e invisibilidade, Sergipe teve a sua segunda terra indígena reconhecida. No último dia 26 de junho, a comunidade indígena Fulkaxó celebrou um marco histórico. Depois de 18 anos de luta, ela finalmente recuperou de forma definitiva parte de sua terra tradicional.

O território de cerca de 45 hectares foi conquistado por meio da aquisição da Fazenda Soloncy Moura, localizada no município de Pacatuba, no litoral norte do estado, a cerca de 100 km de Aracaju.

Após muita luta dos Fulkaxó, o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE) processou a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) requerendo a aquisição de terras em Sergipe para criação do território indígena reivindicado. Assim, a Funai comprou a Fazenda Soloncy Moura junto ao Governo de Sergipe e a propriedade foi transferida para comunidade no formato de Reserva Indígena.

Previstas na Constituição, as Reservas Indígenas são terras doadas por terceiros ou adquiridas e desapropriadas pela União que se destinam à posse permanente dos indígenas. Já as Terras Indígenas tradicionalmente ocupadas são bens da União, no qual os indígenas têm a posse permanente reconhecidos pelo artigo 231 da Constituição Federal.

No entanto, o importante reconhecimento do direito territorial é apenas o primeiro capítulo vitorioso de uma longa luta que teve início em 2006. Luta esta que deve continuar pelos próximos anos, até a homologação integral dos cerca de 806 hectares reivindicados pelo povo Fulkaxó.

A reivindicação da comunidade foi feita quando as etnias Kariri-Xocó e Fulkaxó perceberam a necessidade de ampliação da área onde viviam, localizada no município de Porto Real do Colégio, em Alagoas. O pedido foi entregue à Funai como uma medida para viabilizar a autonomia econômica dos grupos, evitando assim conflitos fundiários internos.

O território Fulkaxó vem de uma conquista ancestral e familiar onde as práticas, as ideias e as construções são pautadas no lema da ancestralidade com muita sabedoria. (Foto: Acervo Funai)

A escritora Kawany Fulkaxó, uma das principais vozes do seu povo, conta que, em sua origem, os Fulkaxó são formados pela união de três povos indígenas do sertão nordestino que compartilham fortes laços religiosos e culturais: os Fulni-ô, Kariri e Xocó˜.

Em um estado onde poucas são as referências oficiais sobre a história indígena, a conquista dos Fulkaxó é celebrada pela escritora como uma vitória de todo movimento indígena local.“Em Sergipe onde a presença dos nossos ancestrais indígenas que aqui viviam foram pujantes, a própria história Fulkaxó faz justiça a todos os ancestrais indígenas. Hoje podemos afirmar que fazer jus a nosso povo é dar a eles liberdade e condições de vida de viver em harmonia com nosso povo”, acrescenta a escritora.

Pelo banco de dados de terras divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em Sergipe, os povos Kaxagó (no município de Pacatuba) e Xocó-Guará (no município de Gararu) ainda seguem com seus processos de reconhecimento e demarcação territorial ainda sem nenhuma providência por parte da União.

Kawany explica que a resistência Fulkaxó pela terra se pauta pela a ancestralidade e a autonomia econômica instituídas no fortalecimento ˜dos cantos, danças, artes, alimentação, agricultura de subsistência, cultivo de ervas e plantas medicinais, resgate de nascentes hídricas, da pesca e caça ritualizada.”

Um histórico de lutas

Em meio à luta pelo direito de existir como comunidade, em 2007, os Fulkaxó foram informados pela Funai que as primeiras providências para a concessão de um novo território estavam sendo avaliadas. No entanto, no ano seguinte, a Fundação decidiu que a remoção dos indígenas só seria possível com a comprovação de “fatos de extraordinária gravidade”.

Diante dessa exigência, o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE) solicitou a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, órgão que avalia temas relacionados a povos indígenas e minorias étnicas, a realização de um laudo antropológico que comprovasse a necessidade de ampliação das terras para evitar conflitos entre os povos que ocupavam o território alagoano.

O laudo requisitado pelo MPF/SE confirmou a existência de graves tensões entre as duas etnias, evidenciando a necessidade de remover a comunidade Fulkaxó para um território em que pudessem preservar e desempenhar as suas tradições e costumes. Esta medida é fundamentada no artigo 20, parágrafo 1º, do Estatuto dos Povos Indígenas, que prevê a intervenção da União quando não houver outra solução para esses conflitos.

Dentro do contexto histórico que envolve o povo Fulkaxó, Daniela Oliveira da Silva, indigenista do Cimi Nordeste, reforça a importância do realocamento determinado pelo relatório do MPF.

“Esse reconhecimento como reserva indígena está previsto nos ritos da Constituição. E, pensando que estes povos foram expulsos de seus territórios e forçados a viver em aldeamentos e missões sob vários conflitos devido a falta do território, então se entende o motivo de procurarem essa migração de volta para o território de Sergipe. Porque ali, em Pacatuba, existe a história dos Fulkaxó”, afirma Daniela.

Após anos de idas e vindas e pressão dos Fulkaxó e do MPF SE, enfim a reivindicação por terra foi atendida em dezembro de 2023, quando foi aprovada por unanimidade na Assembleia Legislativa de Sergipe o Projeto de Lei 534/2023, concedendo 44,84 hectares da Fazenda Soloncy Moura, comprados no valor de R$ 1,6 milhões, à 90 famílias da etnia.

Embora essa conquista tenha representado um importante passo para a comunidade Fulkaxó, a luta pela pela terra ainda não terminou.

Mesmo sendo apenas cerca de 5% da terra integral identificada pela Funai, Kawany destaca que a Reserva atende inicialmente a urgência da situação. “Dentro do processo de subsistência necessária aos povos indígenas de uma forma geral, a criação da reserva dará ao povo Fulkaxó  a condição de buscar a sua autonomia econômica, social e espiritual”.

Seguimos o legado deixado pela anciã Dona Ivete Cruz e Antônio Cruz, sendo esse legado a terra sem conflitos. (Foto: Reidison Tononé)

Cícero Albuquerque, coordenador da Funai Regional Nordeste, avalia que para além da disputa legal envolvendo ministério público e gabinetes políticos, o território em Pacatuba “é uma conquista do povo Fulkaxó, fruto de uma longa e brava luta. Sem a luta desse povo a presente conquista não teria se realizado”.

A Mangue Jornalismo publicou uma série de reportagens sobre a história dos povos indígenas no estado. Por exemplo, pouco se sabe que Sergipe é terra indígena lavada em sangue e esquecimento. Como a elite local apagou da história as resistências e os genocídios dos povos originários. Leia AQUI.

Para Kawany os principais desafios enfrentados durante os anos de luta pelo território foram a morosidade e burocracia dos órgãos do Estado. (Foto: Marcelo Bráz)

A decisão da Funai na escolha pela compra da Fazenda Soloncyo Moura está baseada  no Relatório de Constituição de Reserva Indígena, produzido em 2018 por uma equipe de estudos multidisciplinares. Ainda de acordo com a Funai, a criação de reservas indígenas não deve ser tomada como uma alternativa às demarcações previstas na Constituição Federal. As reservas atuam como um instrumento de proteção para populações indígenas em vulnerabilidade social e territorial, especialmente para as que não estão em posse de seu território tradicional.

O documento produzido pela Funai delimitou que uma área de três propriedades públicas nos municípios de Neópolis e Pacatuba, totalizando 806 hectares, seria o suficiente para a reprodução física e cultural da comunidade indígena Fulkaxó. A Fundação também ressalta que já está prevista a aquisição de mais 550 hectares na fazenda Cadoz de Cima, em Pacatuba.

Uma conquista em tempos de Marco Temporal

A conquista Fulkaxó se torna mais relevante nos tempos atuais em que se discute na suprema corte e no parlamento a tese jurídica do Marco Temporal – em quel os povos indígenas teriam direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal.

Albuquerque critica a tese do Marco Temporal avaliando como uma tentativa de barrar as conquistas dos povos indígenas. “Só a organização e a mobilização dos povos indígenas e de seus poderão evitar que essa barreira se efetive. Direito não se ganha, direito se conquista.  Os povos indígenas têm 500 anos de resistência e luta no Brasil. Eles conhecem o caminho das conquistas”, afirma o coordenador da Funai.

“O processo que institui o chamado ‘Marco Temporal´ o qual chamamos de ‘Marco da Morte’, traz forte impacto sobre a vida de todos os povos originários, impactando nos processos demarcatórios em curso e até nos que já foram concluídos levando risco e insegurança a diversas comunidades indígenas, conclui Kawany.

A Mangue Jornalismo fez algumas reportagens sobre o Marco Temporal. Leia:

– Veja os seis deputados federais por Sergipe que votaram contra os indígenas. Eles ajudaram a aprovar um grave retrocesso para os povos originários. Leia AQUI.

Povos Xokó, Fulkaxó e Kaxagó em Sergipe estão ameaçados com marco temporal. Especialista em direito indígena diz que projeto viola a Constituição. Leia AQUI.

Assista na Mangue Jornalismo o documentário “Desmascarando o Marco Temporal. Os Laklanõ Xokleng e a repercussão geral”, de Carlos Pronzato. Veja AQUI.

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