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Policiais de Sergipe matam três vezes mais que a média nacional. O estado é o 3º mais letal do país, Itabaiana e Lagarto se destacam e justificativa é sempre “confronto”

WENDAL CARMO, da Mangue Jornalismo (@euwen.dal)

A cada ano, a polícia de Sergipe se destaca entre as mais letais do Brasil. Enquanto ao menos quatro estados do Nordeste reduziram seus índices de mortes decorrentes de intervenções policiais, Sergipe se consolidou no ranking das unidades da federação com a maior letalidade policial, com 10,4 óbitos por 100 mil habitantes, mais do que o triplo da taxa nacional. O menor estado brasileiro é o 3º no país onde a polícia mais mata.

Quase que diariamente, os veículos de imprensa de Sergipe divulgam informações repassadas pela Secretaria da Segurança Pública (SSP) dando conta que policiais entraram com conforto com “bandidos” e os “criminosos” foram mortos revidando a ação dos agentes. Raramente estes noticiários contestam ou duvidam dessas ações.

Sobre essas mortes, não se discute a implementação de uma política permanente do estado de execução, tampouco se observa uma rotina de investigações que esclareçam, comprovem e informem a população sobre as circunstâncias desses óbitos. Para o governo do estado, o fato de não possuir casos de ‘morte a esclarecer’ pelas mãos policiais, “demonstra a integridade e a transparência” da segurança pública e justifica a ausência de investigações sobre as circunstâncias dos óbitos.

Somente no último ano, 229 pessoas foram alvejadas e mortas por armas de fogo em ações dos agentes públicos do Estado, segundo dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Trata-se de um aumento de 30% em relação ao total de mortes registradas em 2022, quando policiais civis ou militares executaram 176 sergipanos em supostos “confrontos”.

No dia 24 de janeiro deste ano, a Mangue Jornalismo já havia antecipado o número de 229 pessoas mortas pela polícia no ano de 2023. Juntando-se a letalidade policial em Sergipe desde o ano de 2020, são 810 vidas perdidas em “confronto”. Leia: Polícia matou 810 pessoas em Sergipe nos últimos quatro anos. O primeiro ano do Governo Mitidieri foi o mais letal nesse período, com 229 vítimas.

O crescimento em 30% de 2022 para 2023 impactou a taxa de letalidade policial do estado, que saltou dois pontos percentuais, ocupando a posição que era do Rio de Janeiro há um ano. Hoje, de acordo com o estudo, Sergipe fica atrás apenas da Bahia (12,0) e do Amapá (23,6), que possui a polícia mais violenta do Brasil, com um patamar cerca de 661 vezes maior do que a média nacional.

Pela primeira vez, os pesquisadores do FBSP destacaram a proporção de mortos por agentes do Estado em relação às mortes violentas intencionais (homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte). O objetivo era comparar se mais pessoas morrem em decorrência da criminalidade ou em casos de intervenção policial nos municípios com mais de 100 mil habitantes.

Mais uma vez, a menor unidade da federação se destaca negativamente: das dez cidades com maior letalidade policial, duas estão em Sergipe. É o caso de Itabaiana, no agreste sergipano, onde 63% do total de pessoas mortas no ano passado foram alvejadas pelos ‘homens da lei’. A outra é Lagarto, localizada a 75 km da capital Aracaju, que aparece em nono lugar no ranking com uma taxa de 54,3% de óbitos resultantes da ação policial. Tanto em Itabaiana quanto em Lagarto quem mais mata é a polícia.

O estado governado por Fábio Mitidieri (PSD) apresenta ainda a segunda maior proporção de mortos pela polícia entre o total de mortes violentas, com 33,3%. Ou seja, três em cada dez assassinatos registrados no ano passado resultaram da ação policial. Neste quesito, Sergipe perde para o Amapá por apenas 0,4 pontos percentuais de diferença.

Cores e rostos da violência

O cenário descrito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, contudo, não é novidade. Os dados apenas ilustram uma realidade sentida diariamente pela população negra e periférica, e denunciada há tempos pela Mangue Jornalismo. Não à toa, as chances de uma pessoa negra morrer em uma intervenção policial é 3,8 vezes superior ao de um branco, de acordo com o estudo.

Entre os ‘alvos’ da polícia, há ainda um predomínio de gênero (99,3% são homens) e de faixa etária, já que 71% das pessoas executadas pelos agentes do Estado possuíam entre 12 e 29 anos.

Um dos inúmeros episódios em que jovens negros foram mortos “em confronto” com a polícia aconteceu em dezembro passado. Na ocasião, três suspeitos – Daniel Santos e os irmãos Marcos e Marcelo Lima – acabaram baleados e mortos após reagirem à ação de agentes do Departamento de Narcóticos (Denarc) durante operação para reprimir o tráfico de drogas na zona norte de Aracaju.

A Mangue Jornalismo também revelou o caso de Alassy Fael Silva Soares, filho de Sandra e Adalto Soares, que tinha acabado de completar 21 anos quando foi morto pela polícia. Ele morava no Lamarão, na zona norte de Aracaju, e acabara de iniciar um trabalho como motorista de aplicativo. “Não houve confronto. Não houve troca de tiros. Além de executar de forma covarde, ainda temos que lidar com a perversidade da mentira sobre armas e drogas”, desabafa Adalto. Leia a reportagem sobre esse caso AQUI.

Tayrlan Dinoral, articulador do Fórum Popular de Segurança Pública de Sergipe, diz considerar que o racismo estrutural contribui para a alta taxa de letalidade policial e defende a revisão das práticas das forças de segurança. “Os números demonstram a necessidade de câmeras de monitoramento nos uniformes dos policiais, a necessidade das ouvidorias externas, de uma corregedoria independente, de capacitação antirracista e de promoção de uma cultura de respeito aos direitos humanos das forças policiais”, acrescenta.

Letalidade policial no Brasil subiu quase 190% na última década

No Brasil, corpos e mais corpos são empilhados diariamente à luz de uma suposta guerra às drogas que tem alvos pré-definidos. Prova disso é que, segundo o Anuário, o número de óbitos por intervenções policiais cresceu 188,9% na última década, na contramão das mortes violentas que vêm caindo desde 2018.

Ao todo, as forças de segurança brasileiras foram responsáveis por 13,8% de todas as mortes violentas intencionais no país no último ano. Só entre 2017 e 2023, o total de pessoas executadas pelos agentes do Estado em supostos confrontos subiu 23,4%. Neste mesmo período, o número de mortes violentas registrou uma queda de 27%.

Especialistas afirmam que as taxas de letalidade policial são preocupantes e devem servir de ponto de partida para um debate sobre como garantir políticas de segurança pública efetivas e com respeito aos direitos humanos. Além disso, afirmam que as mortes em ações policiais não podem ser utilizadas como justificativa para combater a criminalidade.

Na avaliação de David Marques, coordenador de projetos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os governos estaduais têm recorrido ao uso ostensivo da força policial quando se veem acuados por crises na segurança e com objetivo de demonstrar “capacidade de controlar” o crime organizado.

Isso, contudo, não tem resolvido o problema e alimenta um círculo vicioso de violência. “O estado precisa ser mais inteligente, precisa qualificar suas estratégias de enfrentamento ao crime, pensando em qualificar a investigação criminal para desmobilizar essas redes e reduzir a violência que as organizações criminosas”, explica o pesquisador.

O diretor-presidente do FBSP, Renato Sérgio de Lima, vai na mesma direção e arrisca um caminho a ser seguido: “É preciso avançar na discussão sobre como reprimir o poder bélico, territorial e financeiro do crime organizado de forma mais eficiente, e isso não passa pelo incentivo à letalidade policial, como alguns governantes, da esquerda à direita, têm feito”.

 “A polícia está produzindo um nível de violência que é uma opção, que eles entendem aparentemente como legítima para controlar o crime. Se metade das mortes foi a própria polícia que produziu, tem alguma coisa errada, sobretudo no Brasil, que não tem pena de morte”, emendou à reportagem na última sexta-feira (19) Samira Bueno, executiva do FBSP.

Ao justificar dados, SSP fala em “intensos enfrentamentos com grupos criminosos”

Procurada, a Secretaria de Segurança Pública de Sergipe (SSP-SE) disse em nota que a taxa de letalidade policial indicada pelo Anuário é resultado “dos intensos enfrentamentos com grupos criminosos organizados que atuam no tráfico de drogas e roubos”.

“Os serviços de inteligência policial desempenharam um papel crucial ao identificar e monitorar essas organizações criminosas. A partir dessas informações, foram desencadeadas operações que resultaram em confrontos e prisões de criminosos”, acrescentou a pasta, ressaltando o número de prisões em Lagarto e Itabaiana no último ano – as duas cidades aparecem entre as dez com as polícias mais letais do Brasil.

Além disso, a SSP afirmou que as ações dos policiais sergipanos estão dentro da lei. O objetivo da pasta, segue a nota enviada à reportagem, é cumprir o que determina a legislação brasileira: realizar prisões em flagrantes e cumprir os mandados de prisão expedidos em investigações do Poder Judiciário.

“No entanto, durante as ações visando prender investigados com base em provas técnicas e decisões judiciais, alguns optam por resistir à ação policial, colocando em risco a segurança dos servidores e da população, como em confrontos armados com as equipes policiais”, pontuou a pasta.

A Mangue Jornalismo também questionou a secretaria sobre procedimentos internos abertos para apurar as circunstâncias de mortes decorrentes de ações policiais. Em resposta, a SSP informou que, como registra o estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Sergipe não possui casos de ‘morte a esclarecer’.

Esse dado, disse a pasta, “demonstra a integridade, a confiança e a transparência dos números da segurança pública” do estado. A nota ainda pontua que “a transparência adotada em Sergipe é reconhecida pelos pesquisadores do Fórum com nível 1 de confiabilidade, demonstrando que os números produzidos aqui são credíveis e auditados”.

A íntegra do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024 pode ser acessada AQUI.

Cristian Góes, supervisão
Cristiano Navarro, edição

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