Não é novidade que as polícias de Sergipe estejam entre as que mais matam no Brasil. A Mangue Jornalismo já publicou diversas vezes reportagens com dados e casos dessa letalidade. Em todas, a justificativa para as mortes é uma palavra apenas: “confronto”, o que é fortemente contestada por especialistas.
Agora, um estudo produzido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) escancara mais essa realidade, tornando-a muito dramática.
Sergipe apareceu no topo do ranking dos estados brasileiros que possuem a maior proporção de mortes provocadas por policiais quando se compara o total de óbitos violentos de crianças e adolescentes.
O estado comandado pelo governador Fábio Mitidieri (PSD) possui uma taxa de 36,9% (quase o triplo da média nacional) de mortes violentas contra pessoas que tinham de 10 a 19 anos de idade. Ou seja, são 36,9 mortes para cada 100 mil habitantes. A média no Brasil é de 18,2.
Abaixo de Sergipe estão os estados do Amapá (32,2%) e a Bahia (31,4%). Na outra ponta, isto é, onde há baixa letalidade policial contra crianças e adolescentes estão o Maranhão (3,6%), Rondônia (2,6%) e Alagoas (2,1%). Veja o gráfico abaixo.
A primeira edição do estudo foi publicada em 2021, construída através de dados obtidos via Lei de Acesso à Informação. Os pesquisadores do Unicef e do FBSP utilizaram esse indicador para dimensionar a letalidade das forças de segurança, já que uma análise isolada dos dados tende a esconder determinados padrões. Na prática, o método atende a um objetivo: comparar se mais crianças e adolescentes morrem em decorrência da criminalidade ou em casos de intervenção policial.
Em números absolutos
Em 2023, os agentes da segurança pública em Sergipe executaram 24 pessoas com idade que variava entre 10 e 19 anos. Um ano antes, foram 18 mortes. O ano passado só não foi mais letal que 2021, quando a polícia estava sob o comando de Belivaldo Chagas (Podemos), quando 27 crianças ou adolescentes morreram em supostos confrontos. Confira aqui a íntegra do estudo Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil (UNICEF/FBSP).
Um dos inúmeros episódios em que jovens negros foram mortos “em confronto” com a polícia aconteceu em dezembro passado. Na ocasião, três suspeitos – Daniel Santos e os irmãos Marcos e Marcelo Lima – acabaram baleados e mortos após, segundo a própria polícia, “reagirem” à ação de agentes do Departamento de Narcóticos (Denarc) durante operação para reprimir o tráfico de drogas na zona Norte de Aracaju.
Todas essas execuções parecem não existir para os veículos tradicionais de imprensa de Sergipe que, dia após dia, divulgam informações repassadas pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) dando conta de que as mortes ocorreram depois que os suspeitos “reagiram à ação policial”. Não há questionamentos sobre a existência de uma política permanente de morte em um país cuja penalidade não existe.
Em abril deste ano, a Mangue Jornalismo contou em detalhe a morte do jovem Alassy Fael Silva Soares na reportagem as dores de Sandra e Adalto não saem no jornal. A história de mais um jovem da periferia de Aracaju morto pela polícia sob alegação de confronto. O jovem teve morte física, morte moral ao ser associado a tráfico e morte de esquecimento e impunidade porque “ficou por isso mesmo”, apesar dos apelos e acompanhamento dos familiares.
No final de julho, o FBSP já havia divulgado dados que colocam a polícia sergipana no topo do ranking de letalidade no país. Foram 229 mortes no ano passado, um aumento de 30% em relação ao número de homicídios cometidos pelos agentes da lei em 2022 (naquele ano, 176 pessoas morreram pelas mãos dos policiais). Com esse salto, o menor estado do Brasil ocupou uma colocação que era do Rio de Janeiro.
A Mangue Jornalismo já havia antecipado esse número no início do ano. Juntando-se a letalidade policial em Sergipe desde o ano de 2020, foram 810 vidas perdidas em “confronto”. A acesse a reportagem Polícia matou 810 pessoas em Sergipe nos últimos quatro anos. O primeiro ano do Governo Mitidieri foi o mais letal nesse período, com 229 vítimas.
Das dez cidades brasileiras com maior letalidade policial, duas estão em Sergipe. É o caso de Itabaiana, no agreste sergipano, onde 63% do total de pessoas mortas no ano passado foram alvejadas pelos ‘homens da lei’. A outra é Lagarto, localizada a 75 km da capital Aracaju, que aparece em nono lugar no ranking com uma taxa de 54,3% óbitos resultantes da ação policial. Tanto em Itabaiana quanto em Lagarto quem mais mata é a polícia. Sobre esses dados leia a reportagem da Mangue:Policiais de Sergipe matam três vezes mais que a média nacional. O estado é o 3º mais letal do país, Itabaiana e Lagarto se destacam e justificativa é sempre “confronto”.
No estudo do Unicef e do FBSP, as mortes por intervenção policial estão em segundo lugar entre as causas de mortes violentas contra crianças e adolescentes – só perde para os casos de homicídios dolosos (quando há intenção de matar). Os dados mostram que a taxa de letalidade provocada pelos agentes do Estado entre adolescentes de 15 a 19 anos é 113,9% superior ao índice verificado entre adultos.
O nível mais alto de participação das forças de segurança nos óbitos de crianças e adolescentes no Brasil foi registrado no ano passado, com 18,6% em relação ao total de casos. Significa dizer que um a cada cinco integrantes da faixa etária entre 15 e 19 anos foi assassinado por policiais – um dado alarmante porque, neste mesmo período, a taxa de homicídios diminuiu significativamente.
Dados de violência sexual também são preocupantes
Nos últimos três anos, Sergipe também assistiu a um salto no número de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, segundo o estudo. Foram 583 estupros reportados em 2021, número que subiu para 771 no ano seguinte e para 779, em 2023.
Dos 165 mil casos registrados no Brasil no período analisado, quase 64 mil são referentes ao ano passado. Ou seja: em 2023, um criança ou adolescente foi vítima de estupro a cada oito minutos. As meninas formam a ampla maioria das vítimas, mas os meninos não passam ilesos a este tipo de violência. Ao todo, mais de 20 mil crianças e adolescentes foram estuprados no país nos últimos três anos.
A Mangue Jornalismo também já publicou várias reportagens sobre esse tema e uma das últimas foi de junho deste ano. Leia: Sergipe lidera no Nordeste o número de estupros contra crianças e adolescentes. Também são graves os dados de pornografia e exploração sexual infantil.
O menor estado brasileiro liderar os registros de estupro e estupro de vulnerável no Nordeste e superar a média nacional. Sergipe chegou a ter 40,1 casos por 100 mil habitantes, superando o Piauí (38) e o Maranhão (33,5). Na outra ponta regional está a Paraíba com 13,7 casos por cada grupo de 100 mil pessoas.
Ao final do estudo, o Unicef e o Fórum apresentaram algumas recomendações para pôr fim ao cenário hostil às crianças e adolescentes. Há menções, por exemplo, à adoção de câmeras corporais nos uniformes dos policiais, ao controle do uso da força nas abordagens e à capacitação dos agentes que atuam com este público. O texto ainda defende maior vigilância quanto ao uso das armas de fogo por civis.
Como mostrou a Mangue Jornalismo, a mais recente tentativa de endurecer o acesso ao armamento na Câmara dos Deputados foi barrada com o aval de quase toda a bancada sergipana. Os parlamentares analisaram uma emenda que, uma vez aprovada, poderia aumentar os impostos para armas de fogo e munições. O texto foi rejeitado por 316 votos a 155. Dos oito deputados de Sergipe, apenas João Daniel (PT) votou contra. Leia a reportagem sobre esse assunto publicado pela Mangue.
SSP: “Contato prematuro” de crianças e adolescentes com o crime organizado
Procurada pela Mangue, a Secretaria de Segurança Pública de Sergipe (SSP) disse ter preocupação com os dados e afirmou que o fato de mais de 90% das mortes ocasionadas por ação policial do levantamento da Unicef envolver pessoas entre 16 a 19 anos demonstra “um contato prematuro e lamentável de jovens com o crime organizado”.
“A Secretaria destaca ainda que, diante desse cenário, o primeiro contato desses jovens com o poder público muitas vezes ocorre através da segurança pública, via internações, prisões e ações policiais, quando o ideal seria que outras políticas públicas interviessem antes que a criminalidade os alcançasse”, diz a nota.
Sobre os números de vítimas de violência sexual, a pasta pontuou que tem feito ações operacionais e de conscientização em parceria com outros órgão. “Esse trabalho tem gerado maior conscientização sobre a importância de procurar as autoridades competentes para denunciar e investigar casos de violência sexual”, segue a SSP.
O aumento das denúncias em Sergipe, acrescentou a Secretaria, se dá em razão das medidas implementadas até o momento. “A SSP ressalta a gravidade desses crimes e reforça seu compromisso em atuar de forma integrada com outras instituições para proteger crianças, adolescentes e mulheres em Sergipe, assegurando que seus direitos sejam respeitados e garantidos”.
SUPERVISÃO: Cristian Góes
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