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Governo de Sergipe não assinou contrato com pareceristas da Lei Paulo Gustavo. As denúncias de irregularidades são graves e podem comprometer a LPG

ANA PAULA ROCHA, da Mangue Jornalismo
(@anapaula._.rocha)

A situação que envolve a gestão e execução dos editais da Lei Paulo Gustavo (LPG) pelo Governo de Sergipe, através da Fundação de Cultura e Arte Aperipê de Sergipe (Funcap), é grave.

As denúncias de irregularidades são tantas que todo o processo de seleção de realizadores de cultura e arte pode parar no Ministério Público e na Justiça Federal, em razão de que os recursos da LPG são da União.

O fato é que, desde a primeira metade de janeiro deste ano, quando o Governo de Sergipe divulgou o resultado preliminar dos editais, uma série de dúvidas sobre como funcionou o processo de avaliação surgiu entre os proponentes.

A fundação não esclareceu publicamente os questionamentos dos artistas, como por exemplo o porquê da disparidade de notas e existência de itens zerados, e insinuou que o atraso no resultado (que era para ter sido divulgado em dezembro) era de responsabilidade dos pareceristas.

A Mangue Jornalismo entrevistou quatro profissionais da cultura credenciados pela Funcap como pareceristas. Eles avaliaram projetos inscritos nos dois editais realizados com recursos da LPG.

Por receio de represálias, três dos quatro entrevistados pediram para manter o anonimato. Devido à gravidade das informações repassadas e checadas pela Mangue, serão publicadas duas matérias sobre o tema.

No texto de hoje, os entrevistados denunciam que até agora sequer assinaram o contrato para prestação do serviço, o que é grave irregularidade na gestão pública.

Eles também relataram desrespeito por parte da Funcap e evasivas sobre quando ocorrerá o pagamento pelo trabalho realizado. “Eu estou tendo crises de ansiedade por essas questões todas”, disse à Mangue Jornalismo uma das pareceristas.


Ausência de contrato

Em 06 de dezembro do ano passado, o Diário Oficial do Estado de Sergipe divulgou o nome dos pareceristas credenciados para trabalhar na avaliação dos projetos culturais inscritos nos editais Tarcísio Duarte (audiovisual) e Ilma Fontes (demais linguagens artísticas).

Os dois editais seriam executados com recursos disponibilizados pelo Governo Federal às cidades e estados brasileiros via Lei Paulo Gustavo, sancionada em 2022 “para garantir ações emergenciais ao setor cultural”.

Com prazo apertado por falta de planejamento para cumprir as etapas de execução da LPG antes da data limite até aquele momento (31 de dezembro de 2023, depois estendida pelo Ministério da Cultura para 31 de dezembro de 2024), a Funcap, responsável pela gestão de cultura na esfera estadual sergipana, enviou aos pareceristas selecionados os projetos que deveriam avaliar apenas dois dias após a divulgação dos credenciados no Diário Oficial do estado.

Tudo isso foi feito sem que qualquer um dos mais de 50 profissionais assinasse o contrato de serviço de avaliação dos projetos, algo obrigatório. “[A Funcap] fez a convocação dos pareceristas e depois sumiu. Quando iniciaram as análises, tínhamos prazo curto – de 20 dias. [E a fundação] sempre com a desculpa de que o contrato estava sendo preparado para disponibilizar para assinatura”, relatou uma parecerista que será identificada pelo nome fictício de Olga*.

Print de storie publicado na conta oficial da Funcap no Instagram atribuindo aos pareceristas o adiamento – pela segunda vez – do resultado preliminar dos editais da LPG. (Imagem: Reprodução/Instagram Funcap)

No Edital de Chamamento Público para Credenciamento de Pareceristas divulgado pela Funcap, o item 5.8 afirma que: “Após processo de seleção e credenciamento […] serão solicitados documentos relacionados à regularidade jurídica e fiscal e outros que serão necessários para assinatura do contrato de prestação de serviços”.

Os pareceristas entrevistados afirmam que entregaram todos os comprovantes solicitados, mas ainda aguardam os contratos.

Ao não emitir esse documento, a fundação teria descumprido a obrigatoriedade por ela mesma reconhecida, inclusive com a inclusão, ao final do edital, do Anexo V – Minuta Contrato de Prestação de Serviços. Bastaria que o órgão preenchesse o documento com os dados de cada um dos credenciados.

O parecerista Gustavo de Paula Mineiro, que atende pelo nome artístico Kalyell Ventura, reforça as afirmações das colegas: “Não houve nenhum processo de contratação, apesar de todos os documentos terem sido enviados. Não emitiram nem os contratos, nem os certificados de serviço, mas foi pedido um atesto [para] que a gente atestasse as notas que emitimos.”

Kalyell Ventura é graduado em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e mestre em Políticas Públicas pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper).


Ausência de comunicação

A Funcap iniciou as tratativas com os pareceristas selecionados primeiro por meio de um email geral, depois em uma reunião virtual na qual alguns detalhes sobre como funcionaria o processo foram informados.

“Nesse início, o que é que a Funcap tentou demonstrar? Uma disponibilidade para a conversa. Eu elogiei muito”, disse uma parecerista que será identificada nesta reportagem como Laura*

Ela explica que “vinha de um processo muito complicado” na prestação de serviço como avaliadora cultural para outro estado, então a aparente disponibilidade da Funcap para o diálogo foi um alívio. “Só que isso foi por pouquíssimo tempo.”

Após a primeira e única reunião virtual, toda a comunicação da Funcap com os pareceristas se deu majoritariamente por meio de um grupo de WhatApp – mas não diretamente. A fundação contratou duas pessoas para repassar informações aos pareceristas e levar ao órgão as demandas destes profissionais.

Cerca de três reuniões virtuais chegaram a ser marcadas e contariam com a presença da diretora-presidente da Funcap, Antônia Amorosa Menezes. Contudo, elas foram desmarcadas de última hora, a mais recente delas já com os pareceristas presentes na chamada de vídeo.


Pagamento só com assinatura do “atesto”

Kalyell Ventura revela que recentemente a Funcap exigiu de todos os pareceristas “um atesto [para] que a gente atestasse as notas que emitimos.”

O “atesto” ao qual ele se refere é um documento individual emitido para cada parecerista com as notas atribuídas pelo profissional aos projetos. Segundo determinação da Funcap, cada projeto avaliado corresponde a uma página do atesto, e todas elas deveriam ser assinadas.

De acordo aos relatos dos avaliadores entrevistados, houve quem foi obrigado a assinar mais de 100 páginas, já que a fundação condicionou o pagamento à assinatura do atesto, algo que não é mencionado no edital de convocação de pareceristas.

“No documento [atesto], fica claro que, assinando aquilo, a gente tem que se responsabilizar por todas as notas. Eu me responsabilizo pelas notas que estão na plataforma [Mapa Cultural de Sergipe], mas quem me garante que aquelas notas que estão na planilha [do atesto] são as mesmas? Confesso que eu estou absolutamente insegura quanto a isso”, disse Laura.

A mesma dúvida foi suscitada por outra parecerista, que será identificada como Maíra. “É um grau de amadorismo muito grande, porque tem uma plataforma do governo federal [gov.br] que diz que é possível assinar apenas a última folha do documento. Há a plataforma onde lançamos e salvamos as notas. Fechou o prazo de lançamento de notas, ninguém mexe em nada. Por que eles estão pedindo que a gente assine folha por folha? E não tem como conferir, pois a plataforma está aberta para a gente, mas não conseguimos ver as notas que atribuímos aos projetos”, disse a produtora cultural com quase 20 anos de experiência.

As notas foram inseridas no Mapa da Cultura de Sergipe dentro do prazo determinado pela Funcap (21 de dezembro). Os recursos financeiros da LPG já estavam disponíveis para os estados e municípios mesmo antes do lançamento dos editais, portanto não havia desculpa para o atraso no pagamento.

“Começamos a questionar as pessoas que faziam a ponte, sempre vimos boa vontade por parte delas. Percebemos que elas não faziam parte da fundação, então estavam no mesmo barco [que a gente]. Até elas começarem a relatar que também não obtinham resposta [da Funcap]. Chegou determinado momento, a gente resolveu escrever uma carta”, explicou Laura.

Em um dos trechos da carta enviada pelos pareceristas no começo de fevereiro à ouvidoria da Funcap, lê-se: “Após mais de um mês de serviços prestados, sem a formalização de um contrato ou informação sobre pagamentos, recebemos demandas adicionais não previstas no acordo inicial. A despeito disso, atendemos a essas solicitações com celeridade, ainda sem o contrato em mãos.” A íntegra da carta pode ser lida aqui.

Desta vez, a Funcap resolveu responder à manifestação dos pareceristas. Em ofício do dia 06 de fevereiro assinado por Antônia Amorosa, bate-se na tecla da necessidade de conclusão do período de avaliação dos recursos interpostos pelos proponentes para então efetuar o pagamento.

“Vale ressaltar que não fora acordado uma data antecipada para este pagamento, justamente por conta do período aberto para recurso que foi encerrada no dia 26 de janeiro do corrente ano, o que corrobora a clareza em curso”, afirma o documento, que pode ser lido na íntegra neste link.

Em 19 de fevereiro, Antônia Amorosa, desta vez acompanhada do diretor de cultura da Funcap, Pascoal D’Ávila, enviaram novo ofício – só recebido na caixa de email de alguns dos pareceristas – reforçando o condicionamento do pagamento à “Resposta à Comissão Recursal” e à assinatura do “atesto”.

Contudo, mais de um mês após o fim do período recursal, os pareceristas foram categóricos: nenhum recurso de reavaliação de notas lhes foi apresentado.

Segundo Kalyell, “nas nossas mãos, não chegou nenhum dos documentos enviados pelos proponentes de recurso. Achei isso muito estranho, porque quem avalia e emite com recursos é o parecerista”. 

Kalyell Ventura: “Não houve nenhum processo de contratação” (Foto: Arquivo pessoal)

Laura, que já trabalhou na burocracia de departamentos culturais e cujas crises de ansiedade estão sendo alimentadas pela falta de solução por parte da Funcap, está muito preocupada.

“Estamos com medo da repercussão disso, de quando a gente vai receber – se vamos receber. Eu já cheguei a pensar de receber calote, porque se não tem nada concreto – não chega contrato, não tem reposta no email – dá para pensar qualquer coisa”, disse a parecerista.

Voltando ao ofício, é dito que, uma vez atendidas as duas condições mencionadas anteriormente, “o processo cumprirá os procedimentos formais e seguirá curso para empenho e pagamento a partir do dia 26/02/2024 [em destaque no documento]”. Você pode ler o texto integral do ofício da Funcap aqui.

Até a publicação desta reportagem, nenhum dos pareceristas entrevistados havia recebido o pagamento, e não havia relatos dos outros avaliadores sobre recebimento.

Contatada pela Mangue Jornalismo, a Funcap, não respondeu aos questionamentos apresentados. Caso isso seja feito, atualizaremos a matéria.

Questionamentos apresentados à Funcap

1) Desde os primeiros contatos com a Funcap, os pareceristas da LPG cobram a emissão do contrato. Por que vocês ainda não emitiram esses documentos, mesmo três meses após o primeiro contato com os pareceristas?

2) Todos os pareceristas entrevistados pela reportagem relataram grandes dificuldades no diálogo com a Funcap. Mesmo os intermediadores por vocês contratados não recebem retorno do órgão quando perguntam. O que ocorreu?

3) Além da ausência de contrato, os pareceristas também relataram que não lhes foi informada a data limite para o pagamento. Quando eles serão pagos? Por que essa demora, já que o trabalho foi entregue em dezembro e os recursos estão disponíveis há meses?

4) Outro ponto que se destaca é o fato dos pareceristas não terem sido informados sobre os recursos de revisão de nota. Quem os avaliará e qual a previsão de data para conclusão? Quantos pedidos de recurso foram apresentados?

5) Por que a Funcap condicionou o pagamento dos pareceristas à assinatura de um atesto? E por que foi exigida a assinatura de todas as páginas desse documento – alguns pareceristas assinaram mais de 100 páginas – se a plataforma Gov.br permite assinatura apenas da última página?

6) Por que a Funcap publicou no começo de janeiro em sua conta oficial no Instagram um story que atribuía aos pareceristas o atraso nos trâmites da LPG, sendo que eles cumpriram com o curto prazo de trabalho estipulado e não foram informados sobre pedidos de recurso?

A Mangue Jornalismo também fez outras três perguntas referentes ao processo de atribuição de notas. Elas serão trazidas na segunda reportagem sobre a execução da LPG em Sergipe.

*Os nomes foram trocados a pedido das pareceristas para preservar suas identidades.

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