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Coletivo cultural rema contra a falta de incentivo às artes visuais e plásticas em Sergipe. Festival Metamorfose busca aproximar arte e escola

TATIANE MACENA, da Mangue Jornalismo
@_tatianemacena

Um festival de artes que está sendo realizado em Aracaju e segue até o dia 11 de maio tem contribuído, ainda que de modo aparentemente silencioso, na transformação de várias realidades.

O Festival Metamorfose, que tem como palco central a Reciclaria, localizada na Avenida Senador Júlio César Leite, nº 97, no bairro Aeroporto, rema contra a falta de incentivo à arte nas escolas públicas e contra a desvalorização da classe artística sergipana.

Com o objetivo de dar visibilidade a artistas residentes no estado e democratizar o acesso à arte e cultura, um grupo de artistas se mobilizou e faz acontecer coletivamente. Prova disso é a fantástica exposição sobre o papel da arte na transformação dos sujeitos.

A artista e produtora cultural Kendra Stradmann conta que três coisas motivaram a criação do festival. “A primeira é a questão das escolas públicas, onde quase não se tem contato com a arte. A segunda é a deficiência da cadeia produtiva de arte no geral, não só as visuais, mas a música e todos os tipos de arte que desenrolam aí dentre as sete principais. E a terceira é a falta de valorização dos artistas”, diz. 

Diferentemente de exposições realizadas por iniciativas privadas e apesar de organizado por meio da produtora Chamas, o Festival Metamorfose tem forte natureza coletiva, com os trabalhos expostos em conjunto.   

“Eles querem abrir uma exposição e convidar os artistas para expor lá, querem que as obras permaneçam lá sem oferecer nada em troca, nem mesmo financiar um café. Não querem designar alguém para vender as obras do artista nem pagar ao artista pela exposição”, revela Kendra Stradmann sobre a falta de valorização dos artistas.

Festival Metamorfose é uma ação coletiva que aproxima arte e escola (Foto: Tatiane Macena)

O papel da arte na educação

O contato com a arte na escola pode ser o incentivo necessário para novos talentos emergirem. Por exemplo, Yoshico, uma professora de matemática, fez a diferença na vida do grafiteiro Boom. O rapaz sempre gostou de desenhar, mas nunca teve apoio, seja em casa ou na escola. Boom já havia repetido a 7ª série quatro vezes e um dia teve Yoshico como professora de matemática. 

“Ela tinha um jeito único de ensinar, combinando matemática com arte, e eu detestava, pois não gostava de matemática. Um dia, ela percebeu que eu estava desenhando durante a aula e me disse algo marcante: ‘Você não é burro. Já vi você desenhando’. Lembro do desafio que ela me lançou: desenhar uma estrela de 76 pontas. Ela disse: ‘Mostre que você é capaz e eu paro de pegar em seu pé’. E assim eu fiz”, conta Boom.

Mesmo odiando cálculo e geometria, esse grafiteiro fez a estrela, incluindo o padrão de dégradé que a professora pediu, em um papel quadriculado.

“Fiquei surpreso comigo mesmo ao ver o resultado. Depois disso, ela parou de me pressionar. No entanto, em vez de desistir, decidi aprender mais. Foi ela quem me fez perceber que eu não era um incapaz. A partir daí, comecei a desenhar aleatoriamente, inspirando-me em animes e outras coisas que via na televisão”, relembra Boom.

Boom: “Fiquei surpreso comigo mesmo ao ver o resultado” (Foto @Kaka.retratos)

A tatuadora Alana Nascimento passou pelo mesmo processo. A artista acordava de mau humor por ter que ir para a escola. No entanto, quando ouviu falar em aula de arte, algo mudou para sempre. Mesmo não tendo aulas de artes práticas, ela gostava de ver as imagens nos livros de história, e através da arte passou a gostar de ir para a escola. 

“Eu ficava perguntando o que eu ia usar de matemática em uma tela, mas depois percebi que eram as medidas. Então pensei que podia prestar atenção na aula de matemática, porque poderia usar na tela. A partir desse contato, quando tive aulas de arte, meu interesse foi mudando. No caso, eu não me apaixonei pelo processo escolar, mas sim pela arte”, revela Alana. 

A partir do contato com a arte, Alana passou a se dedicar aos estudos. “Teve um dia que nunca esqueci, quando a professora de Geografia saiu da teoria e foi para a prática, ensinando sobre relevo. Enquanto ela explicava eu pensei ‘nossa, posso desenhar montanhas com isso!’ Aquela aula prática me inspirou muito”, conta a artista.

Quem teve uma experiência diferente foi a artista plástica Luana Marins, que por estudar em escola particular teve aulas práticas de artes desde cedo, além da oportunidade de pintar um quadro aos 10 anos com tinta acrílica na escola.

“A escola tinha um acervo de material gigantesco; recebíamos uma lista de materiais para comprar. Era obrigatório que todos tivessem esses materiais, e muitas vezes sobravam. Então tínhamos material de sobra para usar na aula”, conta Luana.


Em constante metamorfose 

No Festival Metamorfose, Alana, Luana, Boom e outros artistas apresentaram seus trabalhos. Entre os visitantes da exposição coletiva, estavam as estudantes Leticiah de Oliveira e sua irmã Mayah de Oliveira, de nove anos. “Gostei da ‘Fonte da Juventude’, porque ela sai água. É muito conceito e eu não sei explicar, mas sai água e a água volta. Não sei se assim funciona, mas eu teria em casa”, disse Mayah, de 9 anos.

A obra a que a garota se refere foi idealizada pela paulista Luana Marins, que busca sempre retratar semblantes femininos através de seus sentimentos. A artista, que teve contato com a história de artistas famosos desde a infância, passou a questionar a falta de representatividade feminina na adolescência. Em São Paulo, ela costumava frequentar o Museu de Artes de São Paulo (MASP).

“Um dia entrei no MASP onde tinha um cartaz enorme: apenas 6% dos artistas eram mulheres e 60% das pinturas eram de mulheres nuas e feitas por homens. Por isso, eu sempre gostei de pintar mulheres: é porque me representa também. Eu coloco muito do meu sentimento na tela. E não é pouco o que eu coloco”, pontua Luana.

Através da arte, Luana Marins busca refletir sobre experiências pessoais e coletivas. (Fotos: Tatiane Macena)

Alana Nascimento, artista desde criança, também levou para a exposição um pouco de seus sentimentos. Para entender as obras dela, o observador precisa estar aberto para sensações.

“Peço que pise firme com carinho. Aqui tu vai descobrir minhas alegrias e minhas dores, mas só se usar o coração para enxergar. Não sei ser de outro jeito, senão esse escancarado. As telas são os meus diários, isso tudo aqui é um pedaço do meu ser”, escreveu Alana em sua ficha de identificação.

Alana vem de uma família talentosa que sempre gostou de desenhar e encontrava maneiras de se divertir com arte apesar da pouca condição financeira. Por esse motivo, a visão artística de Alana está relacionada à família.

 “Meu pai, sempre que íamos a algum lugar, fazia questão de comprar roupas para ele mesmo, e depois sentava e desenhava. Minha mãe também estava sempre acordada, minha irmã também estava sempre fugindo da realidade ali no papel, então comecei a fazer o mesmo”, diz Alana.

O pai de Alana trabalhava como pedreiro e sempre a levava ao sítio, no interior do estado. A artista costumava ficar à beira do rio, e como não tinha materiais de desenho para levar, utilizava galhos e desenhava na areia. Mais tarde, através de um convite que chegou no dia de seu aniversário, passou a pintar em telas.

Na exposição, Alana levou em obras não só a sua forma de enxergar a sociedade, mas também críticas ao patriarcado. Um exemplo disso é a obra “Medusa”, que faz alusão à maneira na qual esta figura feminina da mitologia grega sempre é retratada – amedrontadora e severa.

 “Eu comecei com o coração. Há algo dentro de mim que sempre que estou angustiada, nesse sentimento todo, eu me volto para dentro, tento entender para deixar passar. Continuei com a ideia [para o quadro] e coloquei um casulo ali, porque quando estou nesse [momento] sensível, olhar nos meus olhos não revela muita coisa. Eu quero me voltar para dentro”, explica Alana.

Sou artista desde que cheguei casulo nessa terra”, Alana Nascimento. (Fotos: @Kaka.retratos e Tatiane Macena)

Já o grafiteiro Boom teve o seu primeiro contato com a arte nas ruas de São Paulo, onde começou a fazer pixo. Posteriormente, já em Sergipe, conheceu o grafite e uniu as duas expressões artísticas. A esta junção, o artista deu o nome grapixo. Boom também retrata personagens através do cartoon. 

No Festival Metamorfose, o artista resolveu representar a rua, trazendo elementos da sinalização de trânsito, o sucateamento do transporte público, e também as representações de jovens negros periféricos, como Cartola, Visão de Águia e LA (Liberdade Assistida). Além disso, Boom apresentou o “Azedo” que sinaliza a experiência do jovem negro a partir do cartoon. 

“Sempre gostei muito de cartoons e neles há um certo secretismo em torno dos personagens negros, que normalmente são representados em cores como verde, azul, ou roxo. Assim, trago a estética do negro para um personagem diferenciado, com poucos traços negros, como queixo largo, nariz largo, orelhas grandes e na cor verde, que foi a que mais me identifiquei após vários anos tentando diferentes cores”, explica Boom. 

Ele ainda falou da sensação de estar dentro de uma galeria. “Para mim é indescritível. Venho da rua, da pixação e do vandalismo, e isso nunca foi algo que imaginávamos. Costumávamos estar nas galerias apenas para protestar, sobrepondo nossas artes às já existentes, e isso ocorria devido à ausência de pessoas negras nas galerias e nas ruas. Hoje, estamos aqui não mais em protesto, mas como artistas expositores”, destacou.

Boom diz que se Cartola vivesse nos dias de hoje, ele teria essa aparência. (Foto: @Kaka.retratos e tatiane Macena)

Oficinas para incentivar o contato com a arte

Pensando no papel da arte na educação, o Festival Metamorfose deve receber até o último dia da realização cerca de 600 alunos de escolas públicas. A escolha por alunos dessas instituições se deu pelo fato desses estudantes terem pouco contato com a arte no ano letivo escolar. 

Além de visitas guiadas, os estudantes vão participar de oficinas de artes plásticas sustentáveis e oficinas com artistas, ações que visam a complementação do ensino regular. A produtora do evento, Kendra Stradmann, ressalta que a ideia é fazer com que o aluno de escola pública tenha mais contato com a arte. 

“Na escola particular ainda tem aula de arte prática, em algumas você ainda encontra, mas na pública você não encontra. Se você não encontrar um professor que não está já acabado de tanto ser explorado, ele ainda tem um pinguinho de energia, ele ainda tenta implantar na escola, mas não é o que acontece. Por isso, as visitações”, afirma

Para Alana Nascimento, o contato com a arte pode estimular sonhos, especialmente de alunos de periferias e escolas públicas.

“Um amigo do meu filho disse que a polícia esteve na casa dele, e isso gerou perguntas difíceis. Tive que explicar que crianças não deveriam ver essas cenas, mas infelizmente acontece. Levar a arte para a escola na prática mostra às crianças que elas também podem sonhar e ter oportunidades”, disse a artista Alana Nascimento.

Faltam aulas de artes nas escolas públicas (Foto: Kendra Stradmann)
Através de oficinas diversas, os estudantes terão o potencial artístico estimulado durante as visitas. (Foto:Kendra Stradmann)

Luana Marins conta as oficinas são uma tentativa de trazer para a realidade dos alunos mais inclusão, onde todos tenham opções para se envolver com a arte e seus conceitos. Ela destaca que as apresentações incentivam a reflexão de que a arte é não apenas como algo bonito, agradável de se fazer ou observar, mas como forma de comunicação. 

“Essa é a minha principal perspectiva: arte como comunicação. É o que eu tento transmitir para as crianças. Tenho que passar a mensagem de que eles não estão indo a galerias de arte apenas para ver a arte de uma forma superficial. Não é apenas para ir a qualquer lugar com essa atitude. A arte é uma máscara que ajuda. A arte nos ajuda a enxergar as coisas. A arte nutre nossa criatividade”, pontua Luana.

Urgência de apoio à arte

As obras expostas na galeria estão à venda e poderão ser levadas ao final do evento (Foto: Tatiane Macena).

Apesar da importância da arte para a sociedade, é preciso ressaltar que viver da arte pode não ser uma tarefa fácil. Tanto Boom quanto Alana precisam fazer outras atividades para conseguir pagar as contas, pois somente a arte não tem sido o suficiente para uma vida financeira mais tranquila.

“A oportunidade para os artistas aqui no estado é bastante seletiva. Por exemplo, um critério muito importante que exigem hoje em dia é um portfólio, mas como podemos ter um portfólio se não há oportunidades para novos artistas? Apenas aqueles que estão próximos aos influentes conseguem criar um portfólio, pois têm um certo acesso privilegiado”, afirma Boom que faz trabalhos como pintura residencial, motoboy e entregador.

Por essas questões, o Festival Metamorfose foi pensado coletivamente. “Organizar um evento desse tipo também é desafiador. Às vezes, as pessoas confundem e não entendem que, neste caso, não podemos oferecer uma contrapartida ou algo do tipo; fazemos isso porque nos unimos, e se não fizermos, ninguém fará. Portanto, acredito que o poder público, o governo e a prefeitura precisam criar políticas e dar mais atenção a isso”, desabafa Kendra Stradmann. 

A exposição segue aberta ao público até o final do festival. (Foto: Tatiane Macena)

Para ela, situações semelhantes à classificação do Banese na Lei Paulo Gustavo tiram a oportunidade de quem precisa. “Há muitas coisas a serem consertadas em Sergipe e em Aracaju. Mas é uma iniciativa que não vemos a partir deles [autoridades estaduais e municipais], sempre tem que ser de nós mesmos. Porque o que acontece aqui é panelinha, especialmente em relação a editais. Tem que ter uma galera que não tem acesso a isso, e não é selecionada”, disse.

Boom destaca que, até o momento, a arte tem gerado pouco lucro para ele. “Na verdade, tem sido mais um investimento do que uma fonte de lucro. Espero um dia conseguir viver exclusivamente da arte, embora eu não chame isso de um sonho, pois parece muito distante. Mas é um pensamento e um desejo de viver da arte em tempo integral”, afirma.

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