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Exclusivo: Governo orientou pareceristas da Lei Paulo Gustavo a ignorarem itens obrigatórios nos projetos. Edital mal escrito e má gestão afetam LPG em Sergipe

ANA PAULA ROCHA, da Mangue Jornalismo
(@anapaula._.rocha)

Colaboração: Bruno Costa

Completa falta de parâmetros para a atribuição de notas – consequência de editais mal escritos – foi o que quatro pareceristas da Lei Paulo Gustavo (LPG) credenciados pela Fundação de Cultura e Arte Aperipê de Sergipe (Funcap) relataram à Mangue Jornalismo.

Hoje, a Mangue publica a segunda reportagem sobre a gestão e execução da LPG no estado pela perspectiva dos pareceristas.

Na primeira reportagem, foi apresentada a situação de desrespeito no tratamento dispendido pela Funcap aos avaliadores, o que inclui a falta de comunicação e contrato assinado de prestação de serviço, além do injustificado atraso no pagamento, até hoje pendente.

Nesta reportagem, os pareceristas contatados pela Mangue explicam como se deu a atribuição das notas aos projetos inscritos nos editais Tarcísio Duarte (audiovisual) e Ilma Fontes (demais linguagens artísticas), cujos resultados preliminares foram divulgados na primeira metade de janeiro.

Ao todo, 56 profissionais avaliaram 2.604 projetos entre os dias 8 e 21 de dezembro de 2023. O valor a ser distribuído pelo governo estadual sergipano aos selecionados será de cerca de R$ 54,4 milhões provenientes de repasse da União

Por receio de represálias, três dos quatro pareceristas entrevistados pediram para manter o anonimato.


Proponentes prejudicados por falta de orientação

Após dois adiamentos e muitas cobranças da classe artística em Sergipe, o Governo do Estado, por meio da Funcap, divulgou em 12 de janeiro o resultado preliminar dos editais financiados pela LPG.

A repercussão negativa foi imediata: notas zeradas ou muito baixas, disparidade entre avaliações, ausência de justificativa para as notas, recorrência de mesmos proponentes selecionados no setor audiovisual e até a pré-seleção de proposta do Instituto Banese foram os problemas mais graves apontados pelos proponentes.

O Comitê Paulo Gustavo Sergipe, juntamente com outros grupos organizados de diversos setores culturais sergipanos, reuniu as dúvidas dos artistas e as apresentou à Funcap em encontro realizada no dia 05 de fevereiro.

Em postagem na página oficial do Comitê no Instagram, foram compartilhadas as respostas do órgão às perguntas dos proponentes. Entre as explicações da fundação, um “sincericídio”: a confirmação de que o valor previsto pela LPG para sua operacionalização (até 5% do recurso recebido, não podendo ultrapassar R$ 6 milhões) não foram utilizados.

Governos de Sergipe, Maranhão e Roraima são os únicos que ainda não aplicaram nada do recurso destinado aos editais da LPG. (Fonte: plataforma Gov.br.)

Esses 5% deveriam ir para atividades como ajudar os proponentes a se inscreverem nos editais, realizar busca ativa (ida do poder público a diferentes localidades para informar a população sobre os editais e suas inscrições) e elaboração de relatórios finais sobre a aplicação dos recursos, como informado por vídeo institucional do Ministério da Cultura.

Kalyell Ventura, avaliador paulista, afirma que “ficou nítido que as pessoas não receberam orientação [sobre como se inscrever] – e havia uma verba para isso. A lei orientava que deveriam ser feitos espaços formativos com a disponibilização, inclusive, de equipe para ajudar as pessoas a inscreverem seus projetos”.

Ele não foi o único a pontuar essa questão. Todos os quatro entrevistados reportaram grandes dificuldades na avaliação dos projetos devido ao descumprimento, por parte dos proponentes, de etapas muito básicas, a exemplo da anexação de documentos.


Mais de 90% dos projetos com erros

“Se eu puder colocar uma porcentagem aproximada de projetos que tiveram erro de preenchimento, eu posso dizer que foram mais de 90%”, disse Laura*,nome fictício de uma das profissionais entrevistadas.

Ela acrescenta que questionou a Funcap sobre a oferta de capacitações, e ouviu do órgão que “foram feitas algumas tentativas para isso; algumas deram certo, mas não abrangeram o estado inteiro”.

Como a Funcap jogou para os pareceristas a responsabilidade sobre a habilitação dos proponentes – ou seja, a verificação dos documentos exigidos no ato da inscrição –, eles fizeram trabalho extra sem acréscimo na remuneração e tiveram ampla compreensão dos problemas criados pela Funcap.

Os avaliadores foram unânimes em ressaltar que, ainda que inscrições com problemas tenham sido a regra, a raiz de tudo foram os editais de convocação mal elaborados, algo ressaltado pela classe artística sergipana tão logo foram lançados.

Olga*, outra parecerista entrevistada, enfatizou que“os pareceristas apontaram os mesmos erros que depois foram falados na reunião que a classe artística teve com a Funcap”.

Kalyell explica que editais culturais mal elaborados não são exclusividade do Estado de Sergipe. “Como eu sou presidente do Fórum de Cinema do Interior Paulista, acabei acompanhando muitos locais. Eu recebia muita demanda de muitos profissionais do audiovisual quanto a problemas nos editais. Os problemas são muito parecidos, mas a forma como os problemas são tratados é diferente”, disse.

Mais denúncias: Funcap teria instruído ignorar itens obrigatórios

Nas listas de pré-selecionados, a Mangue Jornalismo identificou proponentes que já não residiam em Sergipe meses antes da divulgação do edital de convocação, inclusive ao menos uma pessoa que já trabalhava em instituição pública de outro estado.

Esses são casos que caem em um “limbo”, uma vez que a exigência padrão de dois anos de residência comprovada impossibilita a artistas que se mudaram recentemente a concorrerem em editais culturais tanto em seu estado de residência anterior como no atual.

Laura explica que “O estado [de Sergipe, por meio da Funcap] quer uma comprovação de que a pessoa é moradora há dois anos, mas não estipulou nenhuma regra para isso. Pela lógica, a pessoa teria que mandar um comprovante de dois anos atrás e um comprovante de agora, mas ninguém fez isso. Então a gente teve que ignorar isso: mandasse um comprovante de endereço, ok. Tá errado? Tá errado, mas o edital foi escrito errado”.

O incômodo de Laura foi compartilhado também pela parecerista Maíra*: “Alguns comprovantes estavam ilegíveis. [Houve] Pessoas que, ao invés de mandar o comprovante no nome dela própria, mandou o comprovante no nome de uma terceira pessoa. Nos instruíram a aceitar mesmo estando em nome de outra pessoa. Isso me causou muita estranheza”.

Para além dos comprovantes de residência em nome de terceiros, outros documentos sobre os quais os pareceristas foram instruídos pela Funcap a ignorar incluem itens como a inclusão de medidas de acessibilidade, algo listado como obrigatório no próprio edital de convocação de projetos.

Pareceristas foram instruídos a não desclassificar projetos sem acessibilidade

“O grupo [de pareceristas] foi instruído a não desclassificar projetos, mas aqueles itens que o proponente não cumpria (acessibilidade, planilha, cronograma), a gente foi instruído a zerar”, explicou Maíra.

Quanto à pontuação extra que seria atribuída a proponentes negros, mulheres, quilombolas, indígenas e LGBTQIA+, a falta de declarações via documentos – exigidas no edital de convocação – novamente explica a recorrência de notas zeradas, segundo os pareceristas entrevistados. 

“Quando você chegava no projeto, a pessoa marcava que era negra. Quando era questionado se queria entrar nas cotas, muitas marcaram que não. Para as que disseram que sim, era obrigatório o documento dizendo que era uma pessoa negra. Só que essas pessoas não anexaram este documento. Então, pelo edital, elas estariam desclassificadas. Isso só aconteceu porque 1) o edital está mal feito, 2) elas não foram orientadas direito”, apontou Laura, ao que Kalyell fez coro: “Muitas das falhas são da própria estruturação do edital”.

Paralelamente ao exposto acima, a Funcap não respondia aos questionamentos dos avaliadores, como relatado na primeira matéria publicada pela Mangue sobre a gestão e execução da LPG em Sergipe (lei aqui).

Sem um edital de convocação que estabelecesse parâmetros objetivos para a atribuição de notas em cada item a ser analisado, restou aos pareceristas estabelecer critérios com base em suas experiências anteriores nesse tipo de serviço.

Sobre seu processo de avaliação, Kalyell explica que “não é só você ler o projeto a primeira vez. Você tem que ler a primeira vez e então atribuir a nota. Mas quando eu finalizo a leitura de todos os projetos, consigo emitir uma nota mais razoável pelo comparativo. […] Nos outros estados nos quais eu já participei [como parecerista], ao finalizar a atribuição de notas, você se reúne de novo com aquele conjunto de pareceristas, inclusive para resolver o problema das discrepâncias [de notas], para então chegar num parecer final”.

Essas reuniões entre vários pareceristas para dirimir as dúvidas e diferenças entre avaliações não aconteceram em Sergipe. Contudo, a Funcap fez cobranças de explicações sobre a discrepância entre notas.

“A Funcap fez uma reunião com a gente questionando as notas zeradas e a diferença de notas entre um parecerista e outro. Deu para perceber que eles não entendem nada de parecer para poder questionar algumas coisas. Quanto aos projetos com mesmo CNPJ, eu mesma fui uma das que questionou várias vezes. ‘Ó, nesse projeto aqui a equipe é a mesma, só muda que o proponente agora está com outra função na ficha técnica’. E eles falaram assim ‘Não se preocupa, que isso a Funcap vai ver’”, disse Laura.

Maíra acrescenta que, no grupo de WhatApp que reunia pareceristas e os dois representantes terceirizados contratados pela Funcap, “mais de um parecerista sinalizou que, num determinado momento de análise inicial dos projetos na plataforma, algumas somas não estavam sendo feitas, não salvava. Era aplicada a nota, mas não salvava”.

Em reunião com o Comitê Paulo Gustavo Sergipe, a fundação disse estar avaliando se ocorreu algum problema com o sistema.

Com a publicação dos resultados preliminares e o subsequente período recursal, alguns pareceristas perguntaram aos mediadores contratados pela Funcap quando e como seriam avaliados os recursos apresentados por proponentes pedindo revisão de nota. Nada lhes foi informado sobre cronograma de análise de recursos, o que fez muitos pensaram que este processo está sendo tocado pela própria equipe da Funcap ou alguma empresa terceirizada.

No resumo de reunião que teve com a Funcap, o Comitê Paulo Gustavo Sergipe diz que foi informado de que “a previsão é que o resultado final seja divulgado entre março e abril”.

O atraso na divulgação dos resultados finais e repasse dos recursos pode comprometer o orçamento dos projetos, uma vez que os preços apresentados na inscrição foram cotados em outubro/novembro.

Maíra, que ingressou no setor cultural ainda no começo dos anos 2000, afirma que “Experiência como essa de parecerista junto à Funcap eu nunca vi, essa má gestão, essa falta de profissionalismo, esse amadorismo, essa falta de diálogo. Eu nunca vi.”

Funcap não respondeu à Mangue Jornalismo

Desde a publicação, na quinta-feira passada (29/02), da primeira reportagem da Mangue sobre os incontáveis problemas e irregularidades da gestão e execução da LPG em Sergipe, a Funcap permaneceu em silêncio.

A fundação não respondeu aos nove pontos levantados pelos pareceristas e proponentes listados em email da Mangue à diretora presidente da Funcap, Antônia Amorosa, com cópia para o diretor de políticas públicas do órgão. Caso haja algum retorno, a reportagem será atualizada.

Abaixo seguem as perguntas diretamente relacionadas com a atribuição de notas:

1) Os pareceristas relataram que a Funcap os orientou a desconsiderar, nas avaliações, aspectos listados como obrigatórios no próprio edital (como os 10% de orçamento destinados à acessibilidade) e a considerar comprovantes de residência em nome de terceiros. Por que isso foi feito pela Funcap?   

2) Foi registrado algum problema de instabilidade na plataforma Mapa Cultural de Sergipe durante o período de registro das notas pelos pareceristas?

3) Por que a Funcap orientou os pareceristas a ignorarem documentos relacionados como obrigatórios no edital?

*Os nomes foram trocados a pedido das pareceristas para preservar suas identidades.

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