A saúde pública na Região Centro-Sul de Sergipe enfrenta superlotação, falta de especialistas e demora no atendimento, agravando a crise no sistema de urgência e emergência. O Hospital Universitário de Lagarto opera acima da capacidade e o Samu sofre com insuficiência de ambulâncias e dificuldades na regulação. A ausência de neurocirurgiões compromete o atendimento a pacientes com traumas graves. O Ministério Público Federal mediou um acordo para amenizar a crise, mas o problema persiste.

O sistema de saúde pública da Região Centro-Sul de Sergipe enfrenta um cenário alarmante. Superlotação nos hospitais, falta de profissionais especializados e falhas na regulação do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) têm comprometido o socorro a pacientes em estado grave.
A situação, que há anos se arrasta sem solução, tem gerado consequências drásticas para a população que depende exclusivamente do sistema público. Nos hospitais da região, o problema começa na porta de entrada.
O Hospital Universitário de Lagarto (HUL), principal unidade de referência, está com o dobro da sua capacidade de internação ocupada. A unidade faz parte da Rede Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh) e é vinculado à Universidade Federal de Sergipe (UFS), sendo uma unidade de gestão federal. No entanto, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) é responsável pela organização e funcionamento do sistema de saúde estadual, incluindo a regulação de pacientes e a estruturação da rede de atendimento de urgência e emergência.
Apesar de possuir 100 leitos registrados, atualmente abriga cerca de 200 pacientes, um reflexo da sobrecarga causada pelo atendimento de baixa e média complexidade que deveria ser absorvido pelos municípios. Sem esse suporte, casos que poderiam ser resolvidos em Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) ou na atenção básica acabam ocupando leitos de internação prolongada.

Além disso, o hospital de Lagarto, mesmo dispondo de tomógrafo, enfrenta dificuldades para atender à alta demanda, o que compromete a agilidade dos diagnósticos e prolonga o tempo de espera por encaminhamentos. A sobrecarga no HUL reflete fragilidades no atendimento estadual, já que a demanda que deveria ser absorvida por hospitais e unidades municipais acaba concentrada na unidade federal.
Outro agravante é a ausência de neurocirurgiões de plantão, essencial para o tratamento de pacientes com traumas crânio-encefálicos (TCE) de nível II ou III, os mais graves. Sem especialistas disponíveis, casos graves são encaminhados para outros centros sem a devida estabilização ou aumentando o tempo de resposta, reduzindo as chances de sobrevivência e recuperação dos pacientes.
Falta de profissionais
O quadro de dificuldade de atendimento no interior do estado vem chamando a atenção do Conselho Regional de Medicina de Sergipe (Cremese). Alexandre Ferreira, responsável pelo Departamento de Fiscalização (Defis) do conselho, diz que a situação é preocupante e abrange todo o estado.
“O crescimento da população no estado de Sergipe não foi acompanhado pela ampliação das ofertas de serviços de urgência/emergência no estado. Essa situação engloba UPAs, Samu, hospitais regionais e a rede de referência que só existe o Hospital Governador João Alves Filho”, explica o médico. De acordo com ele, a falta de especialistas compromete o atendimento a casos graves. Ferreira defende que, primeiro, a rede precisa ser reestruturada, uma vez que apenas o Hospital Governador João Alves Filho é a referência para os casos de urgência/emergência que demandem atendimento especializado, exemplo, cirurgia torácica, cirurgia vascular, cirurgia plástica, urologia, neurocirurgia.

“Os hospitais regionais são preparados para atendimento de média complexidade – possuindo apenas as áreas básicas da medicina – e ainda alguns não possuem todas as áreas básicas. O HUL, por ser um hospital escola, ainda consegue oferecer um leque maior de especialistas, mas possui problemas estruturais que o tornam pouco eficiente”, avalia o médico.
Ferreira completa afirmando que o Cremese recebe diversas denúncias de médicos que atuam na urgência sobre as dificuldades enfrentadas no atendimento – tanto em termos de estrutura quanto a equipes bastante reduzidas. Esses procedimentos de fiscalização e denúncia, entretanto, correm em sigilo pelo conselho, que os encaminha aos órgãos de controle do judiciário para que as devidas providências sejam tomadas.
Ministério Público Federal intervém, mas desafios persistem
Diante das dificuldades da rede de urgência e emergência, o Ministério Público Federal (MPF) mediou um acordo entre hospitais, gestores municipais e órgãos responsáveis para tentar reduzir os impactos da crise.
Entre os encaminhamentos, foi definida a realização de reuniões técnicas para ajustar o fluxo de atendimento a pacientes com traumas graves, além da adoção de medidas para desafogar os hospitais sobrecarregados.
“A criação de novos leitos de retaguarda na região também está entre as soluções propostas, assim como a melhoria da atenção básica nos municípios para evitar que casos simples acabem sobrecarregando os hospitais”, explica o procurador Ígor Miranda.

Samu sobrecarregado e demora no atendimento agravam cenário
O Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), peça-chave no resgate de vítimas de acidentes e pacientes em estado crítico, também enfrenta graves problemas estruturais. A frota, apesar de seguir os parâmetros do Ministério da Saúde, não é suficiente para atender às demandas da região com eficiência.
Ainda de acordo com o MPF, em diversas ocorrências, ambulâncias demoram a chegar ou são desviadas para transportes inter-hospitalares que não deveriam ser realizados pelo serviço de urgência. Há relatos de pacientes que precisaram aguardar longos períodos para serem removidos ou receberam atendimento inadequado devido à ausência de recursos nas ambulâncias de suporte básico.
A regulação também é apontada como um entrave. Quando uma unidade de saúde declara “restrição de porta”, ou seja, informa que não pode receber mais pacientes devido à lotação ou à falta de especialistas, o Samu precisa encontrar outra alternativa para o encaminhamento. Esse processo, no entanto, muitas vezes é demorado e gera um efeito cascata que congestiona ainda mais o sistema.
O Samu voltará a ser abordado pela Mangue Jornalismo em reportagem da série sobre a saúde pública no interior do estado, especialmente sobre os casos de maior complexidade.
O que diz a Secretaria Estadual da Saúde
Questionada, a SES enfatizou que o HUL é um importante parceiro no atendimento à população do estado e peça fundamental na construção da Rede de Atenção às Urgências do Estado.
“A unidade possui um histórico de atendimento à população SUS dependente da região centro-sul do estado e tem cumprido seu compromisso em ser a referência estadual para o atendimento hospitalar de urgência desde que recebeu em doação do povo sergipano o prédio onde hoje funciona”, diz a nota enviada à reportagem.
Por meio de sua assessoria de comunicação, a secretaria afirma que foi assinado um novo contrato com o HUL ampliando seu financiamento em mais de R$ 1,5 milhão por mês.
“Tais aportes certamente impactarão fortemente na melhoria dos serviços já ofertados pelo hospital, que tem demonstrado seu compromisso com o atendimento da população da região centro-sul do estado, diminuindo o tempo resposta da unidade que, eventualmente, demanda ajuste”, diz a nota encaminhada à Mangue.
A SES destaca ainda que outros investimentos de ordem federal vem somando esforços para ampliar ainda mais a capacidade de atendimento do HUL.
“O Hospital Universitário de Lagarto, vinculado à Rede Ebserh, deu um passo significativo para ampliar e modernizar suas instalações com a construção do Complexo Administrativo, Ensino, Pesquisa e Imagem (Caepi). O projeto faz parte do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), com um investimento de R$ 39,8 milhões, totalmente financiado pelo Governo Federal”, diz a SES.
A secretaria, entretanto, não apresentou planos de ampliação e fortalecimento da rede básica junto aos municípios.
Hospital Universitário afirma não ser referência para casos graves
O Hospital Universitário de Lagarto informou à reportagem que a unidade opera com uma taxa média de 150% de superlotação. A nota enviada à Mangue destaca que, enquanto hospital de ‘porta aberta’ do SUS, busca atender a todos, mesmo acima de sua capacidade instalada de 102 leitos. A criação de leitos extras é uma das medidas para garantir atendimento.
Sobre a falta de profissionais especializados, o HUL afirma que não é referência na rede de atenção à saúde nem na rede de urgência para procedimentos relacionados à neurocirurgia, atribuições do HUSE.A nota não informa, porém, medidas para adequada estabilização e encaminhamento ao HUSE de casos graves na região.
O HUL também informa que, diante da mudança de perfil epidemiológico no Brasil, a superlotação de unidades hospitalares não é exclusividade do estado de Sergipe. De acordo com a nota, as três esferas de governo (federal, estadual e municipal) têm atuado conjuntamente para enfrentar a situação.
“Ações como a ampliação de leitos, a criação de leitos de retaguarda, a desospitalização precoce, o fortalecimento do serviço de atenção domiciliar e da atenção primária fazem parte desse esforço conjunto, além da expansão dos serviços da rede de atenção especializada”, diz a nota.
O HUL encerra afirmando que mais 300 profissionais foram contratados no último ano e que parcerias com outras instituições de saúde – além de reforço de investimentos do Governo Federal – objetivam reduzir essa superlotação.
A situação evidencia um problema recorrente na saúde pública: a falta de planejamento e de investimentos na estrutura de atendimento primário, que resulta na superlotação dos hospitais de referência. Sem investimentos estruturais e contratação de profissionais qualificados, a crise no atendimento de urgência e emergência em Sergipe tende a se agravar. Enquanto não houver uma política eficaz de descentralização no atendimento de casos de maior complexidade e fortalecimento da atenção básica, a população seguirá sofrendo com a precariedade do atendimento e os profissionais de saúde continuarão sobrecarregados, lidando diariamente com a falta de recursos e equipes em quantidade insuficiente.