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As dores de Sandra e Adalto não saem no jornal. A história de mais um jovem da periferia de Aracaju morto pela polícia sob alegação de confronto

Reportagem da série sobre letalidade policial em Sergipe
CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
(@josecristiangoes)

Impossível colocar em modo de escrita as dores reais de Sandra e Adalto. Impossível tentar traduzir por qualquer forma as dores que rasgam o peito de uma mãe e de um pai que teve o filho morto naquilo que se naturalizou em Sergipe chamar de “confronto” com a polícia.

“Não teve troca de tiros”, grita ao céus com uma coragem que rompe o silêncio de qualquer medo o motorista Adalto Soares. As lágrimas teimosas são como um clamor desesperado por algum tipo de justiça que ele e muitos, no fundo, sabem que não virá. “Guardo a fé em pessoas de bem que justiça será feita”, insiste mesmo assim Adalto.

As cotidianas dores presentes em tantas Sandras, Adaltos, Marias, Josés não chegam nas estruturas do Estado, não comovem mais ninguém, vagam em respostas ridiculamente ausentes e jamais vão sair nos jornais.

Alassy Fael Silva Soares era filho de Sandra e Adalto Soares. O menino tinha acabado de completar 21 anos quando, no último dia 13 de março, foi morto pela polícia.

Adalto e Fael: mais uma morte em confronto com a polícia (Foto: Arquivo pessoal)

Fael morava no Lamarão, bairro da periferia de Aracaju. Um jovem padrão na sua idade e no seu contexto, igualzinho a milhares.

Queria ser jogador de futebol e policial. Estudou em escolas públicas. Concluiu o ensino médio no Colégio Estadual 24 de Outubro, no 18 do Forte, mas não deu para entrar na universidade. Lá, sonhava fazer o curso de Direito e proporcionar uma vida mais tranquila para seus pais.

Como muitos iguais, foi trabalhar para ajudar em casa. Enquanto fazia entregas de produtos de beleza e bijuterias que a mãe vendia, regava seus sonhos de uma vida melhor ali mesmo, no Lamarão. Só queria uma casa, podia ser até de aluguel, um carro para trabalhar, filhos, festejar aniversários e dias de folga para viajar. Queria viver a vida possível e cuidar dos pais na velhice.

Por conta do trabalho, familiares ajudaram Fael a comprar uma moto e logo ele se cadastrou em aplicativos de entrega e também como Uber Moto. “Era trabalhador e queria crescer na vida, como todo menino da periferia. O que tem de mal nisso?”, pergunta Adalto.

No final do ano passado, percebendo o empenho dele, novamente familiares fizerem empréstimos para financiaram um carro. Agora, Fael passaria a trabalhar como Uber, assim como faz hoje o pai e um irmão mais velho. O sonho daquele menino parecia mais perto. “Ele dizia, ‘painho, vou conseguir’. Ele queria trabalhar de dia e de noite para crescer”, chora Adalto. Sandra não tem condições de falar.

Antes de completar dois meses como motorista de aplicativo, Fael, também igualzinho a tantos jovens da periferia de Aracaju, cruzou com uma equipe de policiais militares e o seu futuro terminava ali, numa quarta-feira, dia 13, às 20h30. Fael era mais uma vítima de um suposto confronto com agentes de segurança do Estado de Sergipe.

“Não teve troca de tiros”, denuncia Adalto Soares (Foto Cristian Góes)

Sempre a mesma narrativa e as outras duas mortes de Fael

A história de confronto com os policiais ganhou ares de verdade, insistindo na velha narrativa de que o motorista reagiu, que deu um tiro contra a guarnição e que, por sua vez, “reagiu a injusta agressão”, o que teria levado os policiais a revidarem e matarem Alassy Fael. Depois da morte, já na delegacia, os policiais informam que acharam no veículo do rapaz uma arma e drogas.

A versão oficial de traficante e morte em troca de tiros, repassada pela Secretaria de Segurança Pública (SSP) e copiada pela mídia tradicional, torna-se o segundo assassinato de Fael. “Além de executar de forma covarde, ainda temos que lidar com a perversidade da mentira sobre arma e drogas”, desabafa Adalto, negando que o filho tivesse com esses objetos.

Morte física, a primeira. Morte da imagem e da história do motorista, a segunda. Mas, não é só isso. Sandra e Adalto enfrentam uma outra morte do seu filho: a do silenciamento e do esquecimento. Na quase que absoluta totalidade desses casos, um inquérito formal é aberto e logo arquivado, como se a conclusão fosse sempre: “fica por isso mesmo”.

A morte de Fael, no máximo, pode entrar nas frias estatísticas criminais em Sergipe. Segundo dados oficiais, mais de 810 pessoas morreram entre os anos de 2020 e 2023 no estado, todas em operações de policiais militares e civis, e com um só um tipo de justificativa padrão: morte em “confronto”. Nesses casos, não é coincidência que mais de 85% das vítimas de “troca de tiros” eram negras, tinham entre 12 e 29 anos e moravam na periferia. Leia AQUI reportagem da Mangue Jornalismo letalidade policial em Sergipe.

Pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) reconhecem a dura realidade entre forças policiais e criminosos, mas destacam que o alto e recorrente número de mortes pela polícia alegando “confronto” pode indicar uma política naturalizada de abuso da força e de execução por parte das polícias.

“É uma dor que não desejo para nenhum inimigo, uma dor que não passa. Quando você cai na realidade, a dor vem e trespassa, como sua alma fosse separada do seu corpo. É duro saber que seu filho não teve chance de crescer e amadurecer”, desaba Adalto.

“É uma dor que não desejo para inimigo, uma dor que não passa”, disse Adalto (Foto: Arquivo pessoal)


As fragilidades da versão oficial

O relato oficial dos policiais sobre a morte de Alassy Fael revela uma guarnição, a Leão 06, estava em patrulhamento na Avenida Lauro Porto, Sobrado, em Nossa Senhora do Socorro. Lá, foi avistado um “indivíduo em fundada suspeita” em um carro, um Fiat Mobi. Segundo os agentes, ao perceber a viatura policial, o motorista teria acelerado o veículo.

O carro foi logo alcançado e, de dentro dele, o condutor teria sacado uma arma de fogo e disparado um tiro contra os policiais que revidaram, matando Fael. Ainda segundo o relato da polícia, os agentes levaram o corpo para o Hospital de Urgência para constatar o óbito. Eles ainda retiraram o veículo todo perfurado do local.

Na delegacia, os policias relataram que acharam no carro: “um revólver calibre 38, com numeração suprimida; cinco munições, sendo quatro intactas e uma deflagrada; uma carteira porta cédula com dois cartões, CNH e R$ 18,10, uma balança de precisão, 25 buchinhas e um tablete com substância análoga a maconha, somando aproximadamente 325 gramas e 25 gramas aproximadas de cocaína, fracionadas em 24 ziplocks pequenos e um maior”.

Chama a atenção que os policiais comunicaram na delegacia que Alassy Fael tinha um “histórico criminal de tráfico de drogas”.

“Meu filho não tinha arma e jamais reagiria contra um grupo de policiais. Ele não consumia e nem traficava drogas e não tem um histórico criminal de tráfico. Todo mundo da família, parentes e amigos sabem disso”, rebateu o pai de Fael. “E se tivesse com droga era para ser executado?”, completa.

De fato, o rapaz não tinha “histórico criminal de tráfico de drogas”. Ele chegou a responder apenas um processo no Juizado Especial Criminal de Aracaju, quando foi envolvido numa trama, mas desde julho do ano passado o processo foi arquivado.

De posse dos dados do GPS do veículo do filho, Adalto sustenta que não houve fuga. O carro foi levado a um lugar quase deserto e há inúmeros disparados. “Meu filho recebeu tiro no rosto, no lado do corpo e nas costas. Há evidências de que Fael estava com as mãos no volante quando foi atingido e houve inúmeros tiros no para-brisa do carro. Não houve troca de tiros. Meu filho não estava armado”, sustenta Adalto.

O que o pai fica indignado é que depois da morte do filho, os policiais tiraram o carro do lugar sem perícia, levaram para a 3ª Delegacia e depois para a Delegacia de Homicídios, onde até hoje aguarda uma perícia. “Quase não há sangue no assento do veículo. Será que ele foi morto fora do carro?”, questiona Adalto.

O pai de Fael revela que a família está muito amedrontada porque ele resolveu publicamente cobrar uma apuração isenta da ocorrência que resultou na morte do filho. “Não tenho medo, vou buscar justiça. Eu não posso me calar. Se amanhã eu morrer por causa disso, morro em paz e feliz”, desabafa.

“Eu não posso me calar”, afirma Adalto (Foto Arquivo)

OAB/SE e SSP/SE se manifestam; MP/SE, não

Quando Adalto diz que não vai se calar, não vai mesmo. Ele procurou a Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados em Sergipe (CDH/OAB/SE) para acompanhar o caso e lá foi aberto um procedimento.

Na última sexta-feira, 19, a advogada Lilian Jordeline Ferreira de Melo, presidenta da CDH, esteve com a delegada de Polícia Civil Juliana Alcoforado, que disponibilizou a íntegra do inquérito, com vários documentos. Também foi realizada requisição de exame pericial necroscópico expedida para o diretor do Instituto Médico Legal (IML).

A presidenta da CDH protocolou ofício que “solicita providências de acompanhamento do caso, em virtude da acusação de violência por parte dos policiais na abordagem que levou a óbito o filho do denunciante”.

Para a OAB/SE, a delegada informou que o inquérito vai prosseguir com os depoimentos dos policiais envolvidos, a perícia técnica no veículo apreendido e outras medidas.

Segundo nota enviada para a Mangue Jornalismo pela SSP/SE, “o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) informa que, logo após o ocorrido, instaurou inquérito policial para esclarecer a morte do motorista de aplicativo Alassy Fael”.

Ainda segundo a nota, “em meio ao desenrolar do inquérito, a Polícia Civil realizou ouvidas e diligências, no sentido de que o caso seja esclarecido. Na semana passada, um representante da comissão de Direitos Humanos da OAB/SE esteve no DHPP, sendo franqueado a ele total acesso ao inquérito policial”.

A SSP/SE afirma que “tem adotado todas as providências regulares dentro do caso, mas mantém as informações que fazem parte do inquérito em sigilo, para não prejudicar o resultado da investigação”.

A Mangue Jornalismo também procurou o Ministério Público do Estado de Sergipe (MP/SE), que tem uma promotoria específica de controle externo da atividade policial. Apesar de já ter conhecimento dos fatos envolvendo a morte de Alassy Fael, o MP/SE preferiu não se manifestar.

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