IRION MARTINS, da Mangue Jornalismo (@irionmartins)
Quando recebe o São João, o menor estado do Brasil fica tão grandioso que ganha a dimensão de país. A alusão, feita originalmente pelo artista Rogério em uma composição musical de 1989, é sustentada até hoje, orgulhosamente, pelos estandartes e pessoas que transitam pelos 60 dias de programação da festa.
Com o Forró Caju, organizado pela prefeitura no centro da cidade, e o Arraiá do Povo, promovido pelo governo do estado na Orla de Atalaia, o São João de Aracaju atrai olhares e arrasta multidões de todos os cantos do país. Mas, mesmo consolidado como um dos maiores do nordeste, o evento, vez ou outra, esbanja na rica e esportiva competição entre gestões e derrapa ao esquecer do forró e o seu combo de tradições de junho, o principal motor da festa.
A situação se repete em outros lugares. “Em Paris, todo mundo dançando forró-pé-de-serra. E aqui a gente botando Alok, que eu amo. Mas, eu acho que cada coisa na sua coisa”, pontuou a cantora Elba Ramalho em entrevista coletiva realizada durante sua passagem por João Pessoa, no último dia 20. “Assume logo que não é São João, que é um festival”, provocou.
No ano passado, tramitou em caráter conclusivo o Projeto de Lei 3.083, que estabelece que 80% dos recursos destinados à contratação de artistas e conjuntos musicais sejam usados para financiar apresentações de forró. Em abril deste ano, a Fundação de Cultura e Arte Aperipê (Funcap) lançou um edital de chamamento para seleção de atrações nos festejos juninos de 2024 em Sergipe.
Apesar de convocar a candidatura de grupos tradicionais como “trios pé de serra, artistas, grupos e bandas de forró, repentistas e violeiros, oficineiros da área cênica com conteúdo relacionado aos saberes e fazeres juninos, quadrilhas juninas, grupos folclóricos ou parafolclóricos e cordelistas”, o documento prevê um prazo de 90 dias para remuneração dos selecionados. Enquanto isso, o cachê das atrações nacionais contratadas é pago instantaneamente nas negociações.
Entre lembranças e esquecimentos está Sergival, atemporal e sereno. De Nossa Senhora da Glória, onde nasceu, até Londres, onde já se apresentou, a sua melhor memória de junho é já ter cantado para cerca de 120 mil pessoas na capital do seu estado, em um Forró Caju dos anos 2000.
O seu cabelo já começa a pratear, mas sua sanfona ainda não desafinou. Foi cantarolando “Hora do Adeus”, de Luiz Gonzaga, que Sergival embalou nossa ilustre conversa. Mas, aos 59 anos, ele não pretende se despedir tão cedo da música e nem do São João sergipano. O músico, que completou 40 anos de carreira em maio e lamentou não ter emendado a celebração com os festejos juninos, prometeu que ainda neste ano vai realizar a festa que considera justa: o lançamento do seu mais novo projeto autoral, previsto para o segundo semestre.
Nós perguntamos a Sergival se, mesmo com todos os percalços, Sergipe continua sendo o “país do forró” como diz a letra de uma das suas mais famosas interpretações. O artista também falou da amizade com Dominguinhos, refletiu sobre o espaço dos artistas locais na mídia e o uso de novos timbres, além de lembrar que o São João não é só música. Confira, a seguir, a entrevista na íntegra.
Mangue Jornalismo (MJ) – O Sergival que tocava flauta transversal, piano e violão desde muito cedo, e que é neto de um violonista, sempre se interessou pelo forró? Como nasceu essa paixão?
Sergival (S) – Eu nasci em 1965. Até 1984, que foi quando eu comecei a minha carreira musical na Banda Auê, que era um grupo de música regional aqui de Aracaju, eu ouvia rádio. Através do rádio foi que eu passei a ter acesso à música, então ouvia bolero, música internacional, música clássica… Tudo que tocava no rádio era o que eu ouvia, inclusive forró. A partir de 84, com a Banda Auê, foi que eu passei a me dedicar à música regional nordestina influenciado pelo grupo Cata luzes, Bolo de Feira, Grupo Repente, que são grupos regionais aqui de Sergipe, e também pelo Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda lá de Pernambuco, e aí, sim, Luiz Gonzaga, pernambucano, é bastante homenageado por esses artistas, não é? Então, a partir daí, foi que eu passei a me interessar mais pelo forró, o xote, o baião, o xaxado e o arrasta-pé.
MJ – Mesmo com a influência de referências de peso no forró, a sua carreira também é marcada pela pesquisa de novos timbres e até pela criação de instrumentos próprios. Como você equilibra a tradição com a inovação nas suas sonoridades de forma prática? É possível se adaptar às novas tecnologias sem perder a essência?
S – A pesquisa de novos timbres musicais se deu exatamente quando se iniciou a dupla Sena e Sergival, em 1988, quatro anos após a minha passagem pela Banda Auê — da qual eu fui um dos fundadores. Com a Dupla Sena e Sergival, eu passei a tocar a percussão de efeitos e foi a partir daí que eu passei a criar meus instrumentos. Porque aqui no Mercado de Aracaju, no comércio, você tem algumas lojas de instrumentos musicais, mas não vendiam percussões de efeito. Então eu passei a pesquisar, a criar instrumentos através de sucatas de brinquedos e foi a partir daí que passei a desenvolver esse trabalho criativo de novos timbres, mas sempre foi dentro da tradição de instrumentos acústicos. Após esse período, passei a levar para o palco, para o show, e a conviver com os equipamentos modernos de captação de som, numa transformação para o digital. Então esse convívio entre a tradição e as novas tecnologias se deu através do registro dessa sonoridade e não através da utilização do instrumento digital. O som fabricado nos instrumentos eletrônicos ou até mesmo digitais, eu nunca trabalhei com eles. Eu sempre trabalhei com os instrumentos acústicos, com os timbres artesanais e regionais. Eu me utilizei das novas tecnologias para poder gravar esse material. A convivência é nesse sentido.
MJ – Foi em 2008 que você gravou com o Dominguinhos, certo? Pode contar um pouco mais sobre esse encontro e sobre as trocas de vocês a partir da música?
S – Em 2008, a Petrobras Sergipe tinha um projeto chamado Projeto Petrobras de Música, em que ela trazia um artista nacional, de expressão, e convidava um artista sergipano para fazer a abertura da noite. Eram duas noites de shows que aconteciam no Teatro Atheneu e foi aí que eu fiz amizade com Dominguinhos. Ele assistiu o meu show, gostou do meu trabalho, meu repertório… Eu fiz o convite para que ele participasse da gravação do meu primeiro CD, “As coisas do Caçuá”, e ele gentilmente colocou a sanfona numa composição minha chamada “Sempre Boiadeiro”.
Essa participação do Dominguinhos na minha carreira foi um marco muito especial, talvez um dos momentos mais importantes da minha carreira artística. E a partir daí, nós nos tornamos amigos. Eu passei a fazer participações especiais nos shows dele, sempre que eu tinha oportunidade de assistir algum show eu ia e ele sempre registrava minha presença. Às vezes me chamava para cantar, eu subia, cantava uma música ou duas. E a gente, até o dia em que ele partiu, teve essa convivência artística e de amizade.
MJ – “Sergipe É o País do Forró” é uma das tuas interpretações mais ouvidas. Mesmo tendo sido gravada há tanto tempo, hoje segue embalando os festejos juninos. Pra você, Sergipe continua sendo o país do forró?
S – Essa música, na verdade, o título dela é “Xamego Só”, uma composição do sergipano lá de Estância, o nosso querido Rogério. Essa música se tornou o slogan oficial dos festejos juninos do nosso estado e, realmente, não só é de uma beleza musical com os arranjos como também com a sua letra que valoriza e fortalece a nossa tradição. Você me pergunta se Sergipe continua sendo o país do Forró e eu digo que sim. Apesar das influências que ultimamente temos tido dentro das programações juninas, o povo sergipano continua comprando fogueira, continua botando bandeirinha nas ruas. Nós temos uma força muito grande em Estância com o Barco de Fogo, com a Guerra de Buscapé, as nossas quadrilhas juninas estão se modernizando e conquistando campeonatos nordestinos e brasileiros. Nós temos uma renovação muito grande com essa juventude que está seguindo os caminhos do forró. Nós temos o sergipano Mestrinho, que é o sanfoneiro mais aclamado do nosso país hoje, que é filho do Erivaldo de Carira e é quem está hoje, dentro do cenário brasileiro, ocupando o trono do mestre da sanfona Dominguinhos. O Mestrinho é respeitado pelas grandes estrelas nacionais como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Elba Ramalho e tantos outros. Ao longo dos anos surgiram novos ritmos. Na década de 80, nós tivemos a substituição dos forrozeiros por aquelas bandas de forró eletrônico, que tocavam seis horas. Depois veio aquela música de duplo sentido, que trazia uma letra chula, de baixo calão. E agora nós estamos passando por esse momento da presença das programações da música sertaneja, o sertanejo universitário e também o arrocha, o piseiro… Mas a tradição, a essência, a identidade cultural do povo nordestino continua através da sua história, do que os festejos juninos representam para o nordeste.
MJ – Temos visto, desde o São João passado, uma movimentação intensa nas redes sociais e nos shows sobre o protagonismo do forró nos festejos. Teve até projeto de Lei na câmara e aquele episódio da diminuição do tempo de apresentação do Flávio José em Campina Grande. O que você pensa sobre isso? Outros sons ainda devem integrar o São João? O forró deve ser o principal?
S – Nós precisamos levar em consideração alguns pontos. O primeiro deles é que, recentemente, o gênero forró (o xote, o baião, o xaxado, o arrasta-pé) recebeu o título de patrimônio cultural e imaterial brasileiro, através do reconhecimento do seu valor artístico e cultural e de identidade dos festejos juninos. O outro ponto é que existe esse mesmo grupo que promoveu esse título para o forró aqui no Brasil está agora é no exterior, mais precisamente na Europa, buscando transformar o forró em patrimônio cultural da humanidade. Então, essa luta é justamente para poder preservar a identidade da nossa festa nordestina maior que é o São João. Na Europa, em alguns países como Portugal, França e também na Espanha, e em outros países da América do Norte como Estados Unidos e Canadá, até no Japão, no Oriente, nós estamos com professores ensinando a dançar forró. Os artistas nordestinos estão começando a viajar para o exterior para participar desses eventos de valorização da música nordestina. Isso sem falar no próprio país, no sudeste, por exemplo no Rio de Janeiro e São Paulo, está sendo muito forte o movimento do forró tradicional. Agora entro na questão das políticas públicas. Porque quem faz as programações das cidades, pensando no turismo, pensando na geração de renda, pensando numa série de coisas, não está pensando na tradição. Ou seja, os artistas que se dedicam a esse gênero estão sendo relegados a um segundo plano em detrimento do que eu hoje estou chamando de festival. Estão querendo transformar as festas juninas em festival de música. Então você tem DJs e gêneros que não fazem parte da tradição do São João, que além de tocar o ano todo são gêneros que atraem grandes multidões. E aí é onde está a importância das políticas públicas, das leis e da própria população e os artistas cobrarem do poder público que seja respeitada a tradição e o espaço das festas juninas. . Então eu acho que precisamos nos unir para poder fortalecer cada vez mais a ideia de que a programação junina seja de música dedicada ao ciclo junino.
MJ – Quando falamos do Nordeste, estamos falando de diversos territórios. Depois de ter passado por Sergipe, Pernambuco e Bahia, você acha que o São João é a mesma coisa em toda a região ou percebe peculiaridades?
S – Os festejos juninos não são só uma música. Eles têm a fogueira, a tradição das bandeirinhas, dos licores… São nove estados nordestinos. Na Bahia, por exemplo, eles têm um sistema diferente de montar a fogueira. Aqui em Sergipe nós montamos a fogueira em pé, lá na Bahia eles montam uma fogueira deitada. Tem cidades que decoram os arraiás de rua com palha de bananeira, já aqui em Aracaju, por exemplo, é com palha de coqueiro. Outro exemplo: no Maranhão, tem apresentações de pé de serra de quadrilha, mas, no São João, o forte em todo o estado é justamente o Bumba Meu Boi. Na Paraíba, tem uma força muito grande dos forrozeiros e dos emboladores de coco, como também em Alagoas tem a dos repentistas. Em Pernambuco tem a presença, em algumas cidades como Caruaru, das bandas de pífano. Então, cada um tem as suas peculiaridades da região.
MJ – Se tem peculiaridades, o que caracteriza o forró sergipano? Existem ritmos próprios?
S – Sergipe tem muitos diferenciais em relação aos outros estados. Por exemplo: o ritmo arrasta-pé, principalmente o das quadrilhas juninas, é muito acelerado. Ele chega, inclusive, bem próximo de um galope, que é um ritmo nordestino também muito utilizado no carnaval. A velocidade do arrasta-pé aqui em Sergipe é muito grande, diferentemente, por exemplo, do arrasta-pé criado por Luiz Gonzaga que inicialmente tinha o nome de marchinha junina. Era uma marcha. Outro diferencial rítmico: em Estância, nós temos nesse período de junho uma manifestação folclórica chamada batucada, com ritmo parecido com as pancadas no pilão, quando você está amassando a pólvora para fazer o buscapé ou os rojões. Essa batucada nasceu desse ritmo e tem uma peculiaridade muito especial rítmica de Sergipe, sendo mais presente em Estância. Outra coisa é o nosso xote. Aqui a pancada nas bombas é mais acelerada do que em outras regiões. O xote em geral é mais romântico, mais dolente. Ele é mais vagaroso, que é para poder dançar coladinho, agarradinho. O nosso xote não. Ele tem uma vivacidade maior, é mais frenético, um pouco mais rápido.
MJ – No São João, mas também além dele, você percebe que o forró segue valorizado pelas fomentos à cultura de forma justa? E pela população?
S – O poder público, que é responsável pelo fomento às nossas tradições e festas públicas, tem se utilizado de slogan como “Sergipe é o país do forró”, “orgulho, alegria e tradição”, aí enche o cartaz de bandeirinha, de fogueira, de casais de quadrilheiros com roupa de São João, mas quando você vai olhar a programação, infelizmente não condiz com a imagem do que eles tentam vender. Então, o público de uma certa forma, não tem tido acesso na mídia, seja no rádio, na televisão ou nas redes sociais. Com raras exceções, não temos emissoras que estão apoiando a tradição. Em maioria, quando se coloca, é um artista de massa, um artista que toca o ano todo, que está no auge com uma música que não tem nada a ver com os festejos. Então essa massa vai pela oportunidade de assistir aquele show gratuito ao vivo no palco, mas o que está acontecendo ali em minha opinião é um verdadeiro atentado à tradição e à cultura. O público não consome a nossa música tradicional, junina de raiz, porque ele não tem essa oportunidade de massificação, de ouvir essa música tradicional nos veículos de comunicação. Então como você vai gostar de algo que você não ouve? Que você não assiste? Então é muito mais fácil você ter um grande deslocamento de público para prestigiar esses artistas dentro das programações juninas, infelizmente. Acho que a população está sendo induzida a prestigiar esse tipo de música que ela até gosta, que ela tem um gosto durante todo o ano, mas que em minha opinião não deveriam estar dentro da programação junina por se tratar de uma descaracterização.
MJ – Qual a sua melhor memória de São João?
S – Ah, sem sombra de dúvida, a melhor memória que eu guardo do São João foi quando eu tive a oportunidade de me apresentar no Forró Caju para 120 mil pessoas. Não me recordo agora o ano, mas foi no palco principal e eu nunca tinha visto tanta gente assistindo o meu show, a minha apresentação. É claro que nós tínhamos naquela noite outras atrações de muito peso, mas para mim foi inesquecível porque eu pude fazer um show só de música sergipana. O repertório foi a estreia do meu show “Sergival, Sergipano”. Então não teve uma música sequer de outros artistas como Luiz Gonzaga, Dominguinhos… de ninguém. Foi só música sergipana. Para mim foi inesquecível. Talvez 2006, eu não lembro. Foi uma época de Copa do Mundo, eu não sei o ano precisamente. Mas foi por aí. 2006, 2008… Foi uma noite muito especial.