CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
@josecrsitiangoes
O desejo do governador de Sergipe, Fábio Mitidieri (PSD), de privatizar a qualquer custo a água e entregar para empresas privadas a Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso), um dos maiores patrimônios do povo sergipano, pode esbarrar na resistência já manifestada da quase totalidade dos vereadores de Aracaju.
Além de salvar a água e a Deso das mãos de empresas privadas, os vereadores de Aracaju também impediriam a demissão de cerca de 1000 trabalhadores efetivos, caso a companhia seja privatizada.
A Lei Orgânica do Município de Aracaju, uma espécie de Constituição Municipal, proíbe de forma expressa que o serviço de saneamento da cidade seja privatizado. Aracaju representa 40% de toda a arrecadação da Deso, e a não possibilidade desse faturamento afasta qualquer interesse de outras empresas na companhia.
“A capital já universalizou o abastecimento de água e cobre 60% da coleta e tratamento dos esgotos. Com as obras que estão em andamento, em dois anos atingirá 80%; em mais três anos chegará a 95%, atingindo as metas do marco regulatório”, informa Silvio Sá, presidente do sindicato que congrega os trabalhadores em saneamento básico do estado de Sergipe (Sindisan)
O presidente do sindicato disse que, se a capital sergipana não quiser repassar a concessão do saneamento básico – cuja prerrogativa constitucional é do município – para que o Governo do Estado repasse para a iniciativa privada, nenhuma empresa vai querer participar do leilão, já que se trata da cidade mais rentável economicamente.
Para tentar fugir do impedimento que consta da Lei Orgânica do Município de Aracaju, o governador vai aprovar com muita facilidade na Assembleia Legislativa uma lei que transforma Sergipe em microrregiões. Entretanto, antes disso era preciso realizar audiências públicas, mas elas não ocorreram conforme à lei, o que impediria o projeto de ser votado pelos deputados estaduais.
“Tem tanta ilegalidade nesse processo que tudo isso vai parar nos tribunais em Brasília. Nenhuma empresa vai se interessar nesse processo de privatização pelas ilegalidades e porque não haverá segurança jurídica”, analisa um advogado que se prepara para ingressar com uma série de ações contra a venda da Deso.
Na última terça-feira, 19, foi lançada na sede do Sindisan a Frente Sergipana em Defesa da Deso Pública, com o objetivo de agregar as forças políticas, movimentos social, sindical e popular e todos aqueles que apoiam a luta contra o projeto de privatização da água e do saneamento básico em Sergipe. Esta ação teve o apoio decisivo do deputado federal João Daniel (PT-SE).
Além do parlamentar petista, o evento contou com as presenças dos deputados estaduais Georgeo Passos (Cidadania), Marcos Oliveira (PL), Paulo Júnior (PV), Linda Brasil (Psol) e Chico do Correio (PT); dos vereadores de Aracaju Ricardo Vasconcelos (Rede) e Camilo Daniel (PT), além dos vereadores Marcus Lázaro (PT), de São Cristóvão, e Jailson Pereira (Solidariedade), da Barra dos Coqueiros; além de várias lideranças sindicais, sociais e populares.
Privatização passa por Edvaldo e vereadores de Aracaju
O capítulo dois da Lei Orgânica do Município de Aracaju trata da Política Municipal de Saúde e Saneamento Básico e apresenta em seu artigo 285 o que pode ser a salvação da água como um direito humano essencial e da manutenção da Deso como empresa pública.
O artigo 285 é nítido. Lei: “§ 3º. Compete ao Município organizar e prestar diretamente, ou mediante regime de concessão ou permissão, os serviços de saneamento de interesse local, podendo este autorizar sua concessão para instituições públicas ligadas aos poderes públicos, Estadual ou Federal, ficando proibida a privatização da concessão ou permissão destes serviços no âmbito do Município de Aracaju.”
Silvio Sá acredita muito que os vereadores de Aracaju “poderão colocar uma pedra sobre esse projeto de privatização do governador Fábio Mitidieri”, disse Silvio quanto esteve em uma sessão da câmara em novembro.
Diante de centenas de trabalhadores da Deso, em ato público na porta da Câmara no dia 14 de novembro, vários vereadores de Aracaju se comprometeram publicamente em não aprovar alterações na Lei Orgânica que permitam a privatização da água e do esgoto na cidade. Essa legislação pode ser alterada se o prefeito da capital, Edvaldo Nogueira (PDT), enviar um projeto modificando o artigo 285 da Lei Orgânica e a maioria dos vereadores aprovar.
Se comprometeram com a água potável e a Deso pública o vereador e presidente da câmara Ricardo Vasconcelos (Rede), Elber Batalha (PSB), Camilo Daniel (PT), Cícero do Santa Maria (Podemos), Professora Sônia Meire (Psol), Emília Corrêa (Patriotas), Breno Garibaldi (União Brasil), Ricardo Marques (Cidadania), Anderson de Tuca (PDT), Sheyla Galba (Cidadania), Fabiano Oliveira (PP) e Isac Silveira (PDT).
“O apoio da grande maioria dos vereadores é fundamental nessa luta. Se Aracaju fizer valer a Lei Orgânica, não teremos privatização da água e nem da Deso”, disse o presidente do Sindisan. Ele reconhece que é preciso fortalecer a Deso, melhorar a gestão e fazer os investimentos necessários para atingir as metas do novo marco regulatório, “mas isso só irá ocorrer se a Deso se mantiver pública”, completa.
Presidente da Câmara tem posição definida: não à privatização
O vereador Ricardo Vasconcelos, presidente da Câmara de Vereadores de Aracaju e funcionário da Deso, tem posição pública definida. Foi ele quem fez um requerimento levando representantes do Sindisan e de outras organizações para que falassem na tribuna da Câmara sobre a privatização da Deso.
“Apesar de ser aliado de Fábio Mitidieri, entendo que ele está equivocado quanto à proposta de privatização dos serviços da Deso. A melhor saída para a nossa companhia é gestão e mais recursos públicos. Eu já conversei com o governador e enfatizei isso”, disse o vereador, acrescentando que a Deso, além de ser uma empresa estratégica para Sergipe, é superavitária.
O presidente da Câmara reforçou a importância do artigo 285 da Lei Orgânica do Município de Aracaju. “Contem com o nosso mandato. Eu não arredo um milímetro dessa luta com vocês. Somos guardiões da Constituição Municipal e iremos cumprir com o nosso papel”, enfatizou Ricardo em discurso aos trabalhadores da Deso, reforçando o seu compromisso em preservar a condição pública da companhia.
O Governo do Estado não usa o nome de privatização da Deso, porque essa palavra não tem apoio popular e pelos resultados concretos: onde o saneamento básico foi privatizado houve grande aumento das taxas pagas pela população e o serviço prestado piorou. “Era PPP, depois veio com o discurso de concessão por 35 anos, que é uma palavrinha bonita que a população não conhece para esconder que se trata de privatização”, disse Silvio.
Estudo da USP mostra inviabilidade da privatização da Deso
O secretário-geral do Sindisan, Aécio Ferreira, apresenta dados que apontam os equívocos do processo de privatização Deso, como pretende o governador Fábio Mitidieri.
O sindicalista mostrou dados do estudo crítico encomendado pelo governo e realizado pela Fundação Instituto de Administração (FIA), ligada à Universidade de São Paulo (USP), onde se apresenta o preço unitário de R$ 2,05 para a cobrança do metro cúbico da água tratada, a fim de atender os interesses do mercado. “Os dados provam que este valor é totalmente inviável economicamente”, disse Aécio.
O estudo do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) sobre a privatização mostra que a produção anual de água tratada pela Deso é de 150 milhões de metros cúbicos. Sendo assim, se o preço unitário for praticado a R$ 2,05, isso vai representar uma receita da Deso de R$ 25,6 milhões mensal.
“Ocorre que o Resultado do Exercício do ano de 2022 revela que as despesas da Deso com pessoal, energia e produtos químicos, sem contabilizar outros custos existentes, somam cerca de R$ 29,1 milhões por mês. Ou seja, a conta não fecha. A Deso passaria de empresa com superávit de R$ 40 milhões para uma empresa com déficit de cerca de R$ 4,5 milhões”, alertou Aécio.
Para piorar o quadro, o Relatório do Conselho de Administração da Deso do ano de 2022 aponta que, na verdade, a produção efetiva de água tratada foi de 79,2 milhões de metros cúbicos ao ano. Considerando sobre esse volume com um preço unitário de R$ 2,05, a Deso só teria uma receita efetiva mensal de R$ 13,5 milhões.
“Como demonstra o estudo da FIA, o Governo de Sergipe quer passar para o setor privado uma empresa superavitária, com lucro de R$ 40 milhões, e ficar com a parte de captação e tratamento de água deficitários, que fará com que o Estado precise injetar R$ 200 milhões por ano na Deso para poder atingir o equilíbrio econômico-financeiro. Ou seja, não precisa ser nenhum gênio da matemática para saber que esse modelo de concessão é inviável para o futuro da companhia e para o Estado de Sergipe”, afirmou o dirigente do Sindisan.
Privatização em Alagoas deu errado
Alexandre Costa, do Sindicato dos Urbanitários de Alagoas (STIU-AL) revelou a dura experiência da privatização da água vivida pelos alagoanos nos últimos três anos, quando a Companhia de Saneamento de Alagoas (CASAL) teve suas concessões divididas e leiloadas, ficando apenas com a captação e tratamento da água. “Sergipe não pode cometer o mesmo erro que aconteceu em Alagoas”, alertou Alexandre.
Ele informou que o governo estadual começou com a proposta de concessão dos 13 municípios da Região Metropolitana de Maceió, assumida em 2020 pela BRK Ambiental, por 35 anos, mas depois avançou na entrega das concessões e realizou mais dois leilões, com mais 61 municípios.
“Em 2021, a BRK assumiu o abastecimento de água e a coleta e tratamento do esgoto e encheu as cidades de outdoors dizendo que chegaria à universalização da água em 2033. Mas a CASAL já tinha atingido a universalização nas sedes desses municípios”, conta Alexandre.
Sobre o esgotamento sanitário, lembra ele, a BRK deixou claro que os povoados com menos de mil habitantes ficariam de fora. “E quem terá que assumir esses povoados? A CASAL. E é esse um dos alertas que eu venho trazer para os senhores, para que não deixem que isso aconteça em Sergipe”, afirmou Alexandre.
O sindicalista também chamou atenção para as tarifas abusivas cobradas pelas empresas privadas, a exemplo de uma nova ligação de rede de água, que pode chegar a mais de R$ 1.300,00, quando a CASAL cobra R$ 500,00.
Em Alagoas, os Serviços Autônomos de Água e Esgoto (SAAE) foram assumidos em sua totalidade pelas empresas privadas e, em vários casos, existe despejo de esgotos in natura em praias turísticas alagoanas, como Maragogi, o que não acontecia antes. “Isso também prova que a promessa de melhoria dos serviços com a privatização não se cumpre”, completou.
Série de reportagens da Mangue Jornalismo
Esta é a quarta reportagem de uma série especial da Mangue Jornalismo sobre a água como um direito humano essencial e sua relação com a privatização da Deso. Todas as reportagens estão com link aqui abaixo.
1 – Governo de Sergipe vai privatizar a água. Leis nacionais e internacionais garantem que a água potável é direito humano essencial e dever do Estado. ACESSE AQUI
2 – Contas de água e esgoto aumentaram muito onde o serviço foi privatizado. Especialistas alertam que tarifas em Sergipe vão subir com a venda da Deso. ACESSE AQUI
3 – Governo quer vender a Deso, empresa pública essencial e lucrativa. Companhia teve lucro de R$ 40 milhões e tem captação programada de R$ 750 milhões. ACESSE AQUI