Igrejas e templos religiosos são isentos de impostos no Brasil, um direito que está na Constituição. No entanto, essa imunidade tributária nunca foi estendida aos terreiros de religiões de matriz africana. Agora, o município de São Cristóvão passa a respeitar esse direito e reparar esse erro histórico.
Olhando à nossa volta, constatamos que eles existem. E são centenas. Discretos ou nem tanto, os terreiros de Umbanda e Candomblé obtiveram uma reparação histórica em Sergipe. Quem frequenta por curiosidade ou por ser devoto, geralmente demonstra respeito ao solo sagrado, seja pelo temor de ser alvo de discriminação de uma sociedade que não aceita a própria herança negra, seja por temor de ferir as entidades de matriz africana veneradas.
Agora, pelo menos no município de São Cristóvão, após a luta de lideranças negras e de praticantes das religiões, a prefeitura passou a conceder imunidade do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) aos terreiros, respeitando a Constituição de 1988.
Em maio de 2023, a Secretaria Municipal da Fazenda, Orçamento e Planejamento (Semfop), em parceria com a Secretaria Municipal da Assistência Social (Semas), da Prefeitura de São Cristóvão retomou o projeto (Re) Conhecendo Povos Tradicionais para conceder imunidade. A iniciativa, de acordo com Eldro Cardoso da França, secretário da Fazenda “objetiva proteger esses espaços sagrados, garantindo sua existência e preservação da ancestralidade, em um contexto de discriminação e especulação imobiliária”.
A imunidade tributária é um princípio constitucional que impede a cobrança de impostos sobre templos de qualquer culto, assegurando a liberdade religiosa. No caso dos terreiros de religiões de matriz africana, essa proteção é essencial para evitar cobranças que poderiam inviabilizar a manutenção desses locais de celebração.
Historicamente, os terreiros enfrentaram racismo religioso e, atualmente, sofrem por conta da valorização imobiliária das áreas urbanas e com a discriminação de seus seguidores. A Mangue Jornalismo produziu um texto e disponibilizou um documentário sobre esse tema em agosto do ano passado).
A concessão deste direito, especialmente em relação ao IPTU, é crucial para a sobrevivência desses espaços. Diferentemente de outras religiões, muitos terreiros não exigem contribuições mensais dos participantes e, em alguns casos, não possuem imóveis próprios, o que torna o pagamento de aluguel uma necessidade.
“A imunidade tributária, garantida pela Constituição Federal, deve considerar as particularidades das religiões de matriz africana, contribuindo para a preservação desses espaços sagrados e para o exercício pleno da liberdade religiosa no Brasil”, complementa França.
Direito assegurado na Constituição Federal
A Constituição Federal proíbe a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios de instituírem impostos sobre entidades religiosas e templos de qualquer culto, incluindo suas organizações assistenciais e beneficentes (art. 150, VI, b).
Em 2010, a Lei Federal nº 12.288, de 20 de julho de 2010, instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, que determina que o poder público adote medidas para combater a intolerância contra as religiões de matriz africana e a discriminação de seus seguidores, protegendo documentos, obras e outros bens de valor artístico e cultural.
Em São Cristóvão, dos terreiros localizados na zona urbana, 43 têm a imunidade tributária reconhecida e receberam a Certidão de Imunidade Tributária do IPTU.
“A significativa quantidade de terreiros com imunidade tributária está relacionada ao cumprimento do mandamento constitucional e à simplificação do processo administrativo de concessão da imunidade, especialmente no que diz respeito aos documentos exigidos, como a ficha de cadastro dos terreiros da Semas”, alega França. Atualmente, São Cristóvão conta com 74 terreiros cadastrados no projeto, dos quais 21 estão na zona rural e 53 na urbana.
Com base na ficha de cadastro dos terreiros da Semas, foram verificadas as inscrições imobiliárias e endereços. Depois, ocorreram visitas presenciais aos locais para checagem e atualização dos cadastros imobiliários e concessão da imunidade. Para o secretário, o constituinte não se preocupa com quem é o proprietário do templo, o que importa é simplesmente evitar a cobrança do imposto sobre ele. Dessa forma, não são consideradas as características do dono ou possuidor do imóvel; apenas as características do próprio imóvel são relevantes. “Até a Emenda Constitucional nº 132/2023, a imunidade religiosa não fazia referência a uma entidade, mas apenas a um templo”, reitera o secretário.
Para Ilzver de Matos Oliveira, professor do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e coordenador do Centro de Pesquisas Jurídicas e Estratégias Públicas e Privadas Antidiscriminação (CEPEJE Antidiscriminação), todo esse processo somente ocorre a partir do reconhecimento de que historicamente há uma disparidade no tratamento frente às diferentes religiões.
“Só estados e municípios que admitem que sempre reconheceram a existência e importância das denominações religiosas cristãs e de seu patrimônio, mas negaram as de matriz africana e o fato de também serem patrimônio histórico e cultural, compreenderão do que estamos falando”, aponta Ilzver.
O professor sinaliza a importância de o poder público divulgar essas informações para a ampliação da medida a todos os que tenham direito. “O direito à imunidade tributária para as expressões religiosas dos povos tradicionais de matriz africana só se tornará uma política reparatória quando for objeto de campanhas publicitárias e de um processo real e engajado de atuação dos poderes públicos na busca dos beneficiários. Isso que vimos em São Cristóvão e por isso que deu certo”, destaca.
Ele acrescenta ainda que alguns municípios sergipanos interpretam que se o templo existe e funciona, mesmo não tendo CNPJ, podem recorrer pela imunidade, valendo-se da garantia constitucional já existente.
E na capital?
Em Aracaju, tramita desde março do ano passado na Câmara de Vereadores de Aracaju o Projeto de Lei Complementar nº 6/2023, de autoria do vereador Professor Bittencourt, líder do prefeito no Legislativo municipal.
De acordo com o parlamentar, o texto é resultado de intensos debates com os povos e comunidades de terreiro e de matriz africana de Aracaju, além da colaboração de especialistas. Segundo ele, o propósito é diferente do de São Cristóvão, pois visa desburocratizar o acesso à imunidade tributária, conforme a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional.
Bittencourt explica que, atualmente, o benefício tributário é concedido apenas aos templos que possuem registro e CNPJ, conforme estabelecido pelo Código Civil brasileiro. O projeto que ele apresentou busca permitir que terreiros sem constituição formal também tenham acesso a essa imunidade, reconhecendo as particularidades dessas comunidades. Terreiros formalmente constituídos já possuem esse benefício.
Sobre a tramitação, o vereador Professor Bittencourt explica: “A proposta está em tramitação na Comissão de Justiça e Redação, presidida pelo vereador Pastor Diego (União). Tenho cobrado celeridade na tramitação, dada a importância do projeto para os terreiros de Aracaju”, afirma.
Imunidade tributária apresenta grande impacto na vida dos terreiros
Mãe Acácia Maria Santos, candoblecista há 50 anos, afirma que a imunidade tributária aplicada pelo município de São Cristóvão, além de estar em conformidade com a norma constitucional, permitem a inclusão dos Povos de Terreiros nas políticas públicas e garantem acesso aos direitos.
“O impacto positivo é uma forma de alívio aos zeladores, pois a maioria trabalha só com os Orixás, eles vivem de caridade, e aí fica difícil terem condições financeiras para todas as obrigações financeiras que precisam cumprir para sobreviver”, explica Mãe Acácia. Zeladores são responsáveis pela manutenção material e espiritual do terreiro e pela garantia do seu funcionamento.
O terreiro do Candomblé Ilé Asé Alaroke, sob a liderança do Babalorixá Juracy Júnior, está atualmente passando por um processo de regularização e aguardando ansiosamente a obtenção da imunidade tributária. Essa ação é de extrema importância, pois representa um reconhecimento democrático do Candomblé como uma das religiões do Brasil. “Assim como outros templos e igrejas já possuem esse direito, é essencial que os terreiros também sejam contemplados, garantindo assim a equivalência e a equidade entre as diferentes práticas religiosas do país”, destaca o sacerdote.
O reconhecimento do Estado é fundamental não apenas para a imunidade tributária, mas também para facilitar a regularização fundiária dos terreiros. Muitos desses espaços são ocupados por pessoas de baixa renda que necessitam do apoio do Poder Público. A liberação dos impostos de transferência e a facilitação do processo de usucapião são medidas essenciais para garantir que esses locais possam continuar a existir e a servir suas comunidades.
“Historicamente, os territórios da Igreja Católica foram doados pelo Estado, e muitos conjuntos habitacionais foram construídos com áreas reservadas para igrejas, demonstrando a necessidade de equiparação de tratamento. Se o Estado não consegue ser laico, não consegue secularizar, que trate com equidade todas as religiões”, afirma Pai Júnior.
Fábio Paixão, membro da Corrente Espiritual Raio de Sol, de Umbanda, é uma casa que funciona há 27 anos e conta, aproximadamente, com a visita de 250 visitantes por mês nas reuniões. “A decisão do município de São Cristóvão em dar imunidade aos terreiros e imóveis aonde são realizados os cultos das religiões afrobrasileiras foi extremamente positiva, porque ela valoriza e reconhece a importância cultural dos nossos terreiros, aliviando um peso financeiro que muitas vezes é desafiador para nós mantermos as nossas atividades”, reconheceu Fábio.
Edição: Aline Braga