CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
“Tenho quase 50 anos fazendo obras públicas e particulares em Sergipe. Nunca sofri, vi e nunca soube de qualquer fiscalização ambiental por parte do governo do estado e nem de nenhuma prefeitura. Quanto tem alguma coisa é com o pessoal do Ibama, mas isso é bem difícil de acontecer também”. Este depoimento é de um empresário da construção civil ouvido pela Mangue Jornalismo e que resume bem como os poderes públicos locais estariam tratando a questão ambiental.
Uma das tantas provas irrefutáveis do que falou o empresário é que Sergipe é um dos quatro estados brasileiros que não têm sistema de informação sobre licenciamento ambiental integrado ao Portal Nacional de Licenciamento Ambiental (PNLA), do Ministério do Meio Ambiente. A ausência dessa integração revela uma enorme fragilidade ao processo de transparência pública que envolve a concessão de licenças ambientais, e pode deixar todo procedimento vulnerável.
Além desse fato, nem o Estado de Sergipe, nem a Prefeitura de Aracaju e nenhuma outra prefeitura possui legislação própria que proíba a compra de madeira nativa, arrancada de florestas brasileiras, para o uso em obras públicas e privadas. A Assembleia Legislativa de Sergipe e as câmaras de vereadores, que poderiam legislar sobre essa matéria, não ofereceram ao governo estadual nem às prefeituras leis que garantam a compra de produtos legais, de origem e produção biosustentável, relegando essa função apenas para o governo federal.
Para completar esse quadro de pouco ou nenhum interesse nas questões ambientais, que é parte de uma política ambiental destrutiva, o Governo de Sergipe esteve ausente da reunião do “Consórcio Brasil Verde”, um grupo interestadual criado para promover o enfrentamento aos efeitos adversos das mudanças do clima no Brasil. No último dia 14 de maio, em assembleia virtual do consórcio, o governador do Espírito Santo, Renato Casagrande, foi eleito para presidir o grupo. Também foram definidos os governadores coordenadores de cada bioma: Ratinho Júnior (Paraná) do bioma Mata Atlântica; Tarcísio de Freitas (São Paulo), bioma Cerrado; João Azevedo (Paraíba), bioma Caatinga; Eduardo Riedel (Mato Grosso do Sul); Gladson Cameli (Acre), bioma Amazônia; e Eduardo Leite (Rio Grande do Sul), bioma Pampa.
Sem integração ao sistema nacional de licenciamento
O Portal Nacional de Licenciamento Ambiental (PNLA) existe desde 2005. Por ele, pode-se acompanhar a sistematização de processos de licenciamento ambiental em todo país. Contudo, isso não serve para os estados de Sergipe, Alagoas, Amapá e Roraima. Eles não têm sistemas de informação sobre licenciamento ambiental integrados ao PNLA. Vale destacar que o PNLA é uma das formas de atender à Lei de Transparência Ambiental e viabilizar o fortalecimento da gestão pública a partir do controle social.
O projeto Achados e Pedidos, iniciativa da Transparência Brasil e Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em parceria com a Fiquem Sabendo (www.fiquemsabendo.com.br) e financiamento da Fundação Ford, questionou via Lei de Acesso à Informação (LAI) os órgãos ambientais dos estados e do DF sobre esta situação. Apenas o Amapá respondeu ao pedido por detalhes sobre uma futura integração. Sergipe não tinha respondido, segundo o Fiquem Sabendo, em reportagem assinada por Jéssica Botelho, de novembro de 2021.
A Mangue Jornalismo procurou a Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema) e a resposta foi que o Estado de Sergipe “iniciou em 2008 o processo de alinhamento de informações com o Ministério do Meio Ambiente e que, internamente, já há esse diálogo para retomar a integração ainda este ano”. Vale ressaltar que, além de reunir bancos de dados sobre empreendimentos e licenças ambientais no país, o portal também disponibiliza informações sobre legislação, audiências públicas e estudos para compreensão do tema.
Sem legislação local sobre compra de madeiras nativas
Apenas São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Piauí possuem legislação estadual que proíbe a compra de madeira nativa para uso em obras públicas. Nem o Governo de Sergipe nem a Prefeitura de Aracaju sustentam essa proibição com base em legislação estadual e/ou municipal. Assim como outros estados e capitais, Sergipe e Aracaju se abrigam somente nas orientações que constam de leis federais, o que pode fragilizar ações de sustentabilidade por parte de governos locais.
Esses dados foram publicados no boletim Timberflow, um documento produzido pelo Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e, também divulgado pelo site ((o))eco (www.oeco.org), especializado em jornalismo ambiental. No site, o texto é assinado por Cristiane Prizibisczki. No boletim, em resumo, revelou-se a inexistência de amarras legais estaduais e municipais sobre a compra de madeira nativa e os perigos desse vácuo.
“Entre 2018 e 2020, 8,2 milhões de metros cúbicos de madeira saíram da Amazônia, sendo que 86% foi destinado para consumo interno. Governos dos estados e municípios brasileiros estiveram entre os grandes receptores dessa madeira, por meio de compras públicas, que atualmente representam algo entre 10% e 20% do PIB Nacional”, mostrou o estudo.
No Nordeste, que recebe cerca de 13% da madeira amazônica, apenas o Piauí possui legislação sobre o assunto. O boletim alertou que, como no Nordeste são poucas as plantações com a finalidade de produzir madeira para usos estruturais, existe um risco de, em licitações que envolva compra de madeira, passar uma aquisição de madeira nativa sem a real comprovação de origem legal.
O problema da inexistência de uma legislação local bem definida é, diante do alto índice de ilegalidade e corrupção no setor madeireiro (dados indicam que cerca de 38% da madeira retirada da Amazônia é ilegal), as leis genéricas podem não ser efetivas ou reduzir em muito as chances de um estado ou município comprar madeira de procedência responsável. O alerta é feito pelo pesquisador Marcelo Medeiros, um dos autores do estudo e ouvido pelo ((o))eco. Para ele, quando estados e municípios têm legislações mais nítidas, com pelo menos algumas regras mínimas, isso pode garantir, ou pelo menos minimizar muito, que o ente público não corra o risco de comprar madeira ilegal”, explicou Medeiros.
Empreiteiros dizem cumprir a legislação federal, mas desconhecem fiscalização
A Mangue Jornalismo ouviu dois empresários da construção civil em Sergipe. Eles pediram que não fossem reveladas as suas identidades para que não sofresse nenhum tipo de ações de outros construtores e de órgãos dos governos. “Todas minhas obras têm o licenciamento ambiental normal. Nunca tive problema com nada. Depois que a gente tem a licença em mãos, faz a obra e nunca apareceu nenhuma fiscalização ambiental”, conta um empreiteiro que faz apenas construções na área privada.
Ele garante que cumpre a legislação federal sobre o meio ambiente, mas também diz reconhecer que esse processo é frágil. “A licença sai apenas com base na informação que eu passar. Por exemplo, eu digo que só compro madeira certificada, que vou fazer isso e aqui. Eu faço tudo legal, tenho os comprovantes. O problema é que ninguém vem fiscalizar, quase ninguém. Se não me fiscaliza, também não deve fiscalizar outros, não é?”. Ele faz questão de reforçar: “compro madeira lá do Norte, de gente que diz que ela é legal, mostra os documentos e eu tenho que confiar, e pronto, toco a obra”.
Um outro empresário, mas que faz obras públicas e privadas, diz que as exigências ambientais são as mesmas. “Na parte ambiental, tudo é com base na legislação federal. A gente apresenta tudo e nunca teve problema. Compramos e empregamos tudo nas obras de forma legal, medeira com documento e tudo. Agora, para ser sincero, depois que a gente compra não tem fiscalização ambiental. Têm outras fiscalizações, mas ambiental não tem”, revela o construtor. Ele se diz contra mais legislação de estados e municípios sobre o meio ambiente. “Assim a gente não vai poder fazer nada, é muita burocracia, documentos, regras disso e daquilo, isso encarece demais o custo final da obra”, afirma.
Mais respostas do Adema e da Secretaria de Estado do Meio Ambiente
A Adema informou que, “como um órgão executor do Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA), tem realizado fiscalização ambiental em todos os âmbitos das suas atribuições, principalmente fiscalização quando demandado por denúncias. No setor de fiscalização (GEFIS) são dadas autorizações de pátio para as empresas estocarem o material lenhoso, sendo então gerado o documento de origem florestal (DOF) via plataforma on-line do Ibama”.
A bióloga Valdelice Leite Barreto, gerente de Áreas Protegidas e Florestas da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, Sustentabilidade e Ações Climáticas (Semac), esclareceu que há uma legislação federal sobre compra e transporte de madeira nativa e os estados não são obrigados a ter legislação própria, seguindo a lei federal. “É isso que nós fazemos. Existe o documento de origem florestal que controla o fluxo da madeira nativa, desde a sua origem a sua venda, e esse sistema é fiscalizado pela Adema. Existe fiscalização e as madeireiras que comercializam madeira nativa têm o DOF instalado”, explica Valdelice.
A gerente da Semac ainda informou sobre outro sistema, o Sinaflor, que acompanha o processo de supressão de árvores nativas, e também é fiscalizado pela Adema. “Todo processo é acompanhado. Ocorre que os empreiteiros não sabem disso, geralmente é o contador ou gerente da madeireira é quem preenche os dados e acompanha a entrada e saída da madeireira. Não é o empreiteiro quem faz o DOF”, esclarece. Ela lembra que tanto o DOF como o Sinaflor são sistemas federais e os estados que têm legislação própria precisam cadastrar os dados nesses sistemas. “Criar sistemas locais seria retrabalho. O que fazemos em Sergipe é gestão compartilhada”.