
Os dados são oficiais da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos a partir de registros no Disque 100, um canal de denúncias. Do ano de 2023 para 2024, enquanto os casos de racismo e injúria racial e étnica no Brasil e no Nordeste tiveram mais de 100% de crescimento, em Sergipe eles passaram apenas de 24 para 27 casos, um aumento de apenas 12,5%.
Esse baixo crescimento de registros oficiais de casos de racismo em Sergipe pode revelar que no estado as políticas públicas antirracistas estão dando resultado e produzindo maior conscientização ou que há um profundo processo de racismo que o deixa invisível nos registros oficiais? A Mangue Jornalismo ouviu especialistas sobre o assunto.
Nos últimos anos, no Brasil, o Disque 100 do Ministério dos Direitos Humanos registrou um aumento de 104% nos casos de racismo. Em todo o Brasil, as denúncias pela ouvidoria passaram de 3.176 em 2023 para 6.477 em 2024.
No Nordeste, essas violações saltaram de 508 no ano de 2023 para 1.024 no ano passado, ou seja, aumento de 101,5%. No Maranhão, os casos foram de 19 para 76 em um ano, acréscimo expressivo de 300%. Em segundo lugar está o Rio Grande do Norte, com 131%, seguido pelo Piauí, com 110%. A Agencia Tatu analisou o recorte dos estados do Nordeste.
Entre as regiões brasileiras, o Norte registrou o maior salto: as denúncias nos sete estados aumentaram 348%, passando de 52 para 233 casos. O Sudeste aparece em 2º lugar com aumento de 148%, seguido pelo Nordeste (101,5%). Veja os dados.

(Crédito Agência Tatu)
A Mangue Jornalismo já publicou várias reportagens revelando o racismo em Sergipe. Por exemplo, revelou que até maio do ano passado, o estado era o único fora do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, o Sinapir. Logo depois da reportagem, o governo aderiu ao sistema, mas sem nenhuma ação específica revelada na sequência dessa adesão.
A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, diz que serão punidos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Em 2023, foi equiparada a injúria racial ao crime de racismo, com reclusão de dois a cinco anos, além de multa, e não cabe mais fiança e o crime é imprescritível.
Descrença institucional produz subnotificação de racismo em Sergipe
Para a secretária de Combate ao Racismo da Central Única dos Trabalhadores em Sergipe (CUT/SE), Arlete Silva Costa, o baixo número de registros de racismo e injúria racial no estado não significa a inexistência deles. “Muitos não denunciam por vergonha ou pelo fato de acreditar que não dará em nada. Muitos não sabem a quem procurar num caso como esse”, disse Arlete.
Para a secretária, o racismo está no cotidiano de qualquer negro ou negra nesse país e em Sergipe não é diferente. “A certeza de que as pessoas que praticaram esse tipo de crime não irão ser condenadas faz com que se desistam de denunciar. Não existe uma política antirracista efetiva aqui. Precisamos caminhar muito ainda nessa direção, mas para que haja uma maior consciência negra e antirracista precisamos acreditar e denunciar. Só assim podemos reverter essa situação”, avalia Arlete.
Ilzver Matos, professor do curso de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e coordenador do Centro de Pesquisas Jurídicas e de Estratégias Públicas e Privadas Antidiscriminação (Cepeje) afirma que Sergipe carece de uma estrutura administrativa e legal efetiva para tratar do racismo de forma séria, prioritária, com campanhas para informar a população. “Os órgãos não podem achar que os casos vão chegar naturalmente, com eles sentados e confiando que a lei foi publicada no diário oficial e que por isso todo mundo sabe do seu direito e onde reivindicá-lo”, aponta.


Arlete e Ilzver: descrença institucional produz subnotificação e reforça racismo (Crédito Arquivo)
O professor alerta que “fazer política de Igualdade Racial não é só fazer eventos e reuniões. É preciso ampla publicidade, com destaque nas páginas dos governos, com autoridades referência, como a secretária e a ministra da Igualdade Racial, que juntas têm mostrado ao país que não há como esconder o racismo, é preciso enfrentá-lo. Sergipe opta por esconder e isso não vai dar coisa boa num futuro próximo”, disse.
Lídia Anjos, assistente social, doutoranda em Educação pela UFS, integrante do Instituto Braços e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi-UFS), avalia que o baixo registro de racismo em Sergipe é resultado de subnotificação porque os casos existem e são muitos. “Faltam campanhas públicas no estado explicando que é racismo se referir negativamente ao fenótipo da população negra. É necessário dialogar sobre as formas de enfrentamento ao racismo, exigir o cumprimento da lei que obriga o ensino da cultura afro-brasileira e indígena nas escolas e universidades”, disse.
A ativista do Movimento Nacional de Direitos Humanos afirma que por diversas razões muitas denúncias não são realizadas e sequer identificadas como racismo em Sergipe. Desse modo, segue o racismo se alimentando do mito da democracia racial, por meio do qual todos reconhecem que o racismo existe, mas tal qual um crime perfeito, como nos aponta o doutor Munanga, ninguém é vítima e nem racista”, completa Lídia.
Alexis Pedrão, professor de Direito, doutor em Educação e militante do movimento negro entende que o baixo número de racismo em Sergipe indica uma dificuldade do estado discutir esse tema tanto no setor público quanto no privado. “Os casos têm crescido, assim como a violência e a letalidade policial, vide o caso do jovem Ítalo, morto por policiais da Getam (PM) no final do ano passado. Em regra, a discussão étnico-racial tem se restringido à data da consciência negra, em novembro, mas fica ausente durante o restante do ano”, analisa Alexis.
O professor lembra que na final do campeonato sergipano de futebol masculino, o Ministério Público fez uma campanha contra o racismo. “Iniciativa importante, mas pontual. No aniversário de Aracaju, foi a primeira vez em 170 anos que as religiões de matriz africana estiveram na programação oficial. Isso, depois de muita luta e cobrança do movimento negro. É difícil visualizar iniciativas de letramento racial de maior fôlego, com financiamento, fóruns permanentes de debate e campanhas educativas por parte do estado sergipano e das empresas privadas”, aponta Alexis.


Alexis e Lídia: o enfrentamento do racismo no Brasil e em Sergipe precisa ser prioridade (Crédito Arquivo)
Sergipe sem ouvidoria externa da Defensoria e só quatro cidades no Sinapir
Uma questão que pode ajudar a explicar o baixo registro de casos de racismo em Sergipe é a inexistência de uma ouvidoria externa na Defensoria Pública, o que contraria a Lei Complementar nº 132/2009 que criou as Ouvidorias Externas da Defensoria Pública dos estados. Ilzver Matos traz essa questão: “é urgente denunciar que Sergipe ainda não possui essa ouvidoria, que seria um espaço de interlocução com a população, pois o cargo de ouvidor é ocupado por um cidadão e comumente é uma liderança social importante”, informa o professor.
No Brasil, Sergipe e mais outros nove estados são os únicos a descumprirem a institucionalização dessa ouvidoria externa e isso, desde 2009. “Assim, digo que Sergipe ignora o desenvolvimento legal e administrativo de outros estados brasileiros e do Nordeste sobre o enfrentamento ao racismo, tais como a Bahia, cuja Secretaria de Igualdade Racial completa 20 anos em 2026; o Maranhão, onde a Secretaria de Igualdade Racial data de 2007 e o Ceará, que, mesmo tardiamente, criou a sua própria Secretaria de Igualdade Racial em 2023”, esclarece Ilzver.
Para ele, essa ignorância em Sergipe é uma ação consciente. “Qualquer governador ou prefeito do Nordeste sabe da importância da criação de Secretarias de Igualdade Racial que serão responsáveis pelas políticas públicas para a população preta e parda, que faz do Nordeste a região mais negra do Brasil. Outros estados, como Piauí e Rio Grande do Norte, por exemplo, optaram por estruturas administrativas na forma de superintendência ou coordenadoria, mas, deram a esses órgãos suporte e consideração para a gestão da política”, reforça o professor.
Alexis Pedrão diz que é bastante ilustrativo a ausência de políticas e de secretarias de igualdade racial nos municípios sergipanos. “De acordo com o site do governo federal, na atualidade, em um universo de 75 cidades no estado, temos apenas Laranjeiras, São Cristóvão, Nossa Senhora do Socorro e Santo Amaro das Brotas cadastradas no Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial”, informa Alexis.
Arlete e Lídia citam vários casos de racismo em Sergipe, alguns de forma recorrente. “Temos aqui a política de morte que demarcam corpos negros, principalmente situados em territórios com menor investimento econômico por parte das políticas públicas. A necropolítica, que trata como descartáveis esses corpos, segue no propósito de ‘higienizar/limpar’, demonizando étnica e racialmente aquele/a que não está no padrão eurocêntrico”, analisa a assistente social, apontando a existência de um racismo velado, que “quando não mata fisicamente, imobiliza trajetórias de vida”.
Lídia relembra o caso dos assassinatos de Chelton Luiz Santos; de Genivaldo de Jesus; de Lazaro Cauã Dantas Vieira, filho de Gigi Poetiza, morto enquanto trabalhava na montagem de um show na Aruana; do extrativista de mangaba Uilson de Sá. “O que temos assistido em Aracaju, em termos de violações de direitos praticado nas abordagens higienistas contra a população em situação de rua (majoritariamente negra), senão um racismo velado, com exibição em rede social por parte de gestor público que afirma fazer limpeza da cidade?”, questiona Lídia.
A assistente social lembra que muitos estudantes negros têm denunciado nas redes sociais casos de racismos sofridos, inclusive em salas de aula. “No entanto, denunciar isso nem sempre é algo simples de se fazer, envolve dor, sofrimento e até medo, pois sempre há uma exposição que, muitas vezes, reverte-se para quem sofre o racismo, como o recente caso que envolveu estudantes de Serviço Social na UFS. Não são raras as vezes em que racistas colocam o crime no contexto de que a ação foi ‘sem intenção’; ou foram ‘brincadeiras’”, pontua Lídia.