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Raymundo Souza Dantas: de Sergipe à África

PETRÔNIO DOMINGUES, especial para Mangue Jornalismo

O Conselho Superior da Universidade Federal de Sergipe (UFS) aprovou por unanimidade, na tarde de quarta-feira, 14 de junho, o parecer que concede o título de Doutor Honoris Causa póstumo a Raymundo Souza Dantas.

A fundamentação da propositura foi elaborada por este que aqui escreve. Mas quem foi esse sujeito que vai receber a maior honraria que uma instituição de ensino superior pode conceder a uma pessoa por suas realizações e conquistas?

Raymundo Souza Dantas, que chegou a ser nomeado embaixador do Brasil em Gana, na África, é um daqueles afro-sergipanos de grande importância na História do Brasil, porém ainda é pouco conhecido no seu estado natal. Para um primeiro contato com sua trajetória, vale a pena ler Um começo de vida, livro autobiográfico.     

Um começo de vida

A escrita de si (ou escrita autorreferencial) faz parte de um conjunto de práticas do que se convencionou designar produção de si. Estas práticas vão desde as mais diretamente ligadas à escrita de si propriamente dita – como é o caso das autobiografias e dos diários –, até a da constituição de uma memória de si, por meio de objetos materiais, como, por exemplo, fotografias e cartões-postais.

Tanto num caso como no outro estamos diante de registros que, embora centrados na trajetória de vida de uma pessoa, são testemunhos luminares de uma época. Consistem em importantes fontes históricas, as quais, por sinal, têm despertado cada vez mais a atenção dos pesquisadores.

Um bom exemplo da potencialidade desse tipo de fonte é o livro de Raymundo Souza Dantas, Um começo de vida, publicado no Rio de Janeiro em 1949. Trata-se de um depoimento autobiográfico em que o autor narra sobre si do nascimento, na cidade de Estância (SE), em 1923, até a fase adulta, quando se transferira e se radicara no Rio de Janeiro.

Nesse intervalo de vinte e seis anos, Souza Dantas enfrentou muitas dificuldades na vida. De origem negra e família muito pobre, levava, junto com seus dois irmãos, uma vida de escassez e privações. Ingressou na escola aos seis anos de idade, mas evadiu-se logo em seguida, tendo que trabalhar para ajudar na renda familiar.

Trabalhou em várias atividades penosas, como aprendiz de ferreiro, ajudante em marcenaria, pintor de parede e entregador de encomendas. Por volta dos dezesseis anos, começou a trabalhar nas oficinas do jornal A Estância, momento no qual iniciou, efetivamente, o processo de alfabetização. Mudou-se para Aracaju e dali para o Rio de Janeiro.

Dormiu em um banco de praça

Na então capital da República, chegou a dormir em banco de praça pública até conseguir um trabalho subalterno num semanário. Com o tempo, deixou de ser analfabeto funcional e granjeou um emprego de ajudante de revisão de um jornal. Lia vorazmente, ao tempo que escrevinhava os primeiros textos.

Na medida em que investia no letramento, foi ascendendo na imprensa carioca, tornando-se jornalista – com intensa publicação de artigos em diferentes jornais e revistas –, escritor e figura tarimbada nas rodas literárias. Quando terminou seu depoimento autobiográfico, em 1949, Souza Dantas desfrutava de uma posição de estabilidade no mundo da imprensa carioca.

Nem imaginava o que o destino lhe reservava. Em 1961, o presidente Jânio Quadros o nomeou embaixador do Brasil em Gana, na África. O sergipano tornou-se, assim, a primeira pessoa negra a ocupar o cargo de embaixador no Estado brasileiro, assim como o precursor desta nacionalidade a ter assumido uma embaixada em um país africano independente.

Sua autobiografia é uma fonte de época relevante, pois, a partir dela, é possível entrever aspectos dos impasses, dilemas e desafios enfrentados pelos negros em Sergipe, no Rio de Janeiro – e por que não dizer no Brasil? Mesmo carregando o estigma da cor e sendo por vezes desumanizados, esses sujeitos traçaram estratégias, forjaram projetos, inventaram-se e se reinventaram na busca da afirmação de direitos e ampliação da cidadania.

Romances, contos, novelas e memórias

Como escritor, Souza Dantas assinou também os romances Sete palmos de terra (1944)e Solidão nos campos (1949), o livro de contos Agonia (1945), as novelas Vigília da noite (1949) e O lado da sombra (1961), além de memórias Reflexões dos 30 anos (1958) e o diário África Difícil: missão condenada (1965). Este é fruto de sua experiência em Gana como embaixador do Brasil.

Além de diplomata, Dantas chefiou os setores de Imprensa e Divulgação do Ministério da Educação e Cultura. Em 1966, integrou o I Festival de Artes Negras, em Dakar, representando o Brasil e, em 1967, participou do II Congresso das Comunidades Negras de Cultura Portuguesa realizado em Moçambique.

Por toda sua contribuição artístico-cultural e no campo das relações internacionais, colecionou homenagens: foi condecorado com a Medalha do Pacificador, Oficial da Ordem Nacional do Senegal, Medalha Silvio Romero e Medalha Santos Dumont.

O escritor, jornalista e diplomata faleceu em oito de março de 2002, no Rio de Janeiro, aos 79 anos, deixando esposa e três filhos, além de uma fortuna crítica e legado histórico-cultural que vêm sendo cada vez mais reconhecidos no Brasil, daí a importância da Universidade Federal de Sergipe lhe conceder o título de Doutor Honoris Causa póstumo.

Sua experiência marcante na rede de conexões do Atlântico Negro é digno de nota. No diário África Difícil, ele escreve em 1963 sobre o continente de seus ancestrais: “Alguns estudiosos indagam qual será o destino da África. Não especulo a respeito, nem tenho prognósticos a fazer. Continuarei como o fiz ao longo de quatorze meses: testemunha apaixonada. A paixão pela África contrai-se como uma febre. […] No Brasil, essa preocupação leva estudiosos e estadistas a reclamarem aproximação maior com os novos Estados africanos, salientando que por todos os motivos devemos aprender a conhecer e a amar a África, que tem tantos pontos de contato conosco”.

De Sergipe à África, nada mais atual.    

  • Uma versão deste artigo foi originalmente publicada no Cinform, Aracaju-SE, edição 1447, de 03 a 09 de janeiro de 2011, Caderno Cultura, p. 2.
  • Para saber mais da experiência africana de Raymundo Souza Dantas, ver DOMINGUES, Petrônio e CAMPOS, Geraldo Adriano Godoy de. “A crisálida africana de Raymundo Souza Dantas: o primeiro embaixador negro brasileiro”. In: DOMINGUES, Petrônio; BARBOSA, Francisco José (orgs.). Brasil e África: fluxos e refluxos. Aracaju: Criação, 2021, p. 279-322. Este livro está disponível para download gratuito em: https://editoracriacao.com.br/africa-e-brasil-fluxos-e-refluxos/.

Petrônio Domingues é doutor em História (USP), professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e organizador do livro “Do cativeiro à cidadania: o pós-abolição em Sergipe (2022)”.

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