Em 5 de dezembro passado, a Secretaria de Segurança Pública de Sergipe (SSP/SE) divulgou e a imprensa local replicou como notícia a informação de que a “Polícia Civil desarticulou uma associação criminosa”. Era mais uma operação na qual policiais cumpriam “mandados de busca em cidades”. O que não está na manchete é que nessa ação “três indivíduos resistiram à abordagem policial, entraram em confronto com os agentes” e foram mortos.
No último mês de 2024, oito suspeitos de crime tiveram o mesmo fim: foram mortos em “confronto” com a polícia em Sergipe. Essas vítimas se juntaram com as outras mortes de suspeitos de algum tipo de crime nos meses anteriores. Assim, o ano de 2024 terminou com 145 vidas perdidas nesses “confrontos” com os agentes da segurança pública do estado, uma média de 12 mortes por mês.
Com base nos dados oficiais da SSP/SE, a Mangue Jornalismo revela que nos últimos cinco anos as polícias Civil e Militar de Sergipe mataram 955 pessoas suspeitas de atos criminosos. Em todas essas mortes, a mesma justificativa unilateral e oficial: “confronto”.
Nesses cinco anos, quatro policiais foram mortos em combate. Para cada morte nessa condição, espera-se um inquérito da própria polícia e, quando há, sempre termina arquivado com a atribuição da culpa ao morto. Entre 2020 e 2024, Sergipe registrou 3761 homicídios, ou seja, 25,4% dessas mortes foram em abordagens policiais.
Vale ressaltar que 2024 foi o que registrou o menor número de letalidade policial dos últimos cinco anos. De 2023 para o ano passado, segundo dados oficiais da SPP/SE, ocorreu uma redução de 36,7% no número de mortes por intervenção policial. Essa diminuição puxou também a queda geral de homicídios em Sergipe de 2023 para 2024, que ficou na ordem de 24,4%.
O governo e a imprensa tradicional destacaram que a redução da taxa de homicídio em Sergipe foi de 72,3%, mas esse dado é resultado de uma comparação feita estranhamente entre o ano de 2016 com 2024. Ao comparar-se os anos de 2023 e 2024, a redução ficou em 18,8%.
No ano passado, o somatório de homicídios dolosos, latrocínio e lesão corporal seguida de morte em Sergipe chegou a 521, e desse total 145 foram de responsabilidade direta das forças policiais. Em 2023, foram registrados 689 homicídios dolosos, latrocínio e lesão corporal seguida de morte em Sergipe. Desse volume, 229 pessoas foram mortas em “confronto” com a polícia.
Nos últimos anos, o menor estado do Brasil sempre apareceu entre os que mais matam proporcionalmente no Brasil no chamado “confronto” com a polícia. Leia Policiais de Sergipe matam três vezes mais que a média nacional. O estado é o 3º mais letal do país, Itabaiana e Lagarto se destacam e a justificativa é sempre “confronto”.
Há uma política de “confronto” permanente e os números provam isso. O primeiro ano do Governo Mitidieri foi o mais letal dos últimos anos, com 229 pessoas assassinadas em “reação” às abordagens policiais. Leia: Polícia matou 810 pessoas em Sergipe nos últimos quatro anos. O primeiro ano do Governo Mitidieri foi o mais letal nesse período, com 229 vítimas.
As últimas mortes de 2024 e a primeira do ano de 2025
No dia 8 de janeiro, no município de Itabaiana, a Polícia Civil cumpriu mandados de busca e apreensão contra um homem investigado por porte ilegal de arma de fogo, receptação de cargas roubadas e comércio ilegal de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais. Segundo informação oficial da SSP/SE, “durante as diligências, o investigado foi localizado e reagiu à abordagem policial, sacando uma arma contra os agentes. Em resposta, os policiais revidaram a agressão, atingindo o suspeito. Ele foi imediatamente conduzido ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos”.
Em 29 de dezembro passado, a polícia recebeu a informação de que pessoas numa chácara no Povoado Cabrita, em São Cristóvão, tinham sido assaltadas por um grupo. Quatro suspeitos fugiram, mas um deles foi alvo de tiros dos policiais, morrendo no local, segundo a SSP.
Dois dias antes, em 27 de dezembro, policiais cumpriram um mandado de prisão contra um suspeito de tráfico de drogas no Povoado Queimadas, em Itabaiana. O alvo foi encontrado e, segundo a polícia, “entrou em confronto”, sendo morto pelos policiais.
No dia 22 de dezembro, policiais saíram em busca de um homem suspeito de homicídio no Bairro Santos Dumont, em Aracaju. O suspeito pelo crime foi encontrado em Nossa Senhora do Socorro e “durante a abordagem” dos policiais ele foi morto.
Em 13 de dezembro, policiais da cidade de Lagarto encontraram um homem que vinha sendo investigado por participação em homicídio e tráfico de drogas. “No momento do cumprimento do mandado de prisão, o investigado reagiu, entrando em confronto com as equipes policiais, sendo atingido e socorrido ao hospital, mas não resistindo aos ferimentos e vindo a óbito”, informou a polícia.
No mesmo dia, 13 de dezembro, foi deflagrada uma operação para prender suspeitos de tráfico de drogas na Zona Norte de Aracaju. No Bairro Palestina, seis pessoas foram presas e uma delas teria “reagido” à abordagem da polícia e foi morta.
Em 5 de dezembro três homens foram mortos pela polícia de Sergipe durante a “Operação Ouro de Tolo” com o objetivo de combater o tráfico de drogas e apreender armas em Boquim, Pedrinhas e Barra dos Coqueiros. “Três indivíduos que resistiram à abordagem policial entraram em confronto com os agentes. Eles foram socorridos para uma unidade hospitalar, mas não resistiram aos ferimentos”, informou o delegado Josenildo Brito.
A Mangue Jornalismo publicou várias reportagens sobre a letalidade policial. Em uma delas, o pai de uma das vítimas de morte “em confronto” resolveu falar, não aceitando essa versão oficial. Leia As dores de Sandra e Adalto não saem no jornal. A história de mais um jovem da periferia de Aracaju morto pela polícia sob alegação de confronto.
Mitidieri apoia decreto de Lula que reduz violência policial
No final do ano passado, o Ministério da Justiça publicou o Decreto 12.341, que disciplina “o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais de segurança pública”. O documento só reforça um princípio humano básico e constitucional: a preservação da vida. Além de outras questões, o decreto afirma que o uso da “arma de fogo será medida de último recurso” em abordagens policiais.
O objetivo da norma é tentar reduzir os altos índices de letalidade policial. O Brasil é um dos países onde mais os agentes de segurança pública matam suspeitos de crime alegando “confrontos”. Sergipe é parte de um grupo pequeno de estados que lidera os assassinatos promovidos pelas forças policiais.
Assim que o Decreto 12.341 foi publicado, governadores que usam as mortes das polícias para promoção política, a exemplo de Tarcísio de Freitas (São Paulo), Cláudio Castro (Rio de Janeiro), Romeu Zema (Minas Gerais), Ratinho Júnior (Paraná) e Ronaldo Caiado (Goiás), reagiram. Eles alegaram interferência do governo federal. O decreto não é obrigatório, mas os repasses de recursos para estados vão depender da adoção das medidas de preservação da vida pelos governadores.
Na outra ponta, os nove governadores do Nordeste lançaram uma nota apoiando o Decreto 12.341. Eles afirmam que o documento “não altera a autonomia dos Estados nem as normativas já estabelecidas. Ao contrário, ele reafirma a centralidade da prudência, do equilíbrio e do bom senso no exercício da atividade policial. Além disso, sublinha a necessidade de constante modernização das técnicas de atuação, promovendo mais segurança tanto para os profissionais quanto para a sociedade, sempre com a preservação da vida como prioridade absoluta”.
O governador de Sergipe, Fábio Mitidieri (PSD), assinou a nota apoiando o Decreto 12.341 que assegura o uso da arma de fogo como último recurso. Além disso, pela norma, a arma não poderá ser usada contra “pessoa em fuga que esteja desarmada ou que não represente risco imediato de morte ou de lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros”, e contra “veículo que desrespeite bloqueio policial em via pública, exceto quando o ato represente risco de morte ou lesão aos profissionais de segurança pública ou a terceiros”.
Segundo a nota assinada por Fábio Mitidieri, “a orientação nas nossas forças de segurança é clara: o uso da força letal deve ser reservado como último recurso, exclusivamente em situações de legítima defesa, para proteger vidas – sejam de profissionais ou de terceiros. Essa diretriz, já consolidada na prática das nossas corporações, está plenamente alinhada ao Decreto do Governo Federal, que reforça princípios internacionais sobre o Uso Diferenciado da Força, adotados pelas mais avançadas organizações policiais ao redor do mundo”.
Em resumo, o que diz o Decreto 12.341
Segundo o documento, o uso da força em segurança pública e instrumentos de menor potencial ofensivo somente poderá ocorrer nos estritos limites da lei. As operações e as ações de aplicação da lei devem ser planejadas e executadas mediante a adoção de todas as medidas necessárias para prevenir ou minimizar o uso da força e para mitigar a gravidade de qualquer dano direto ou indireto que possa ser causado a quaisquer pessoas.
De acordo com o decreto, um recurso de força somente poderá ser empregado quando outros recursos de menor intensidade não forem suficientes para atingir os objetivos legais pretendidos. Além disso, o nível da força utilizado deve ser compatível com a gravidade da ameaça apresentada pela conduta das pessoas envolvidas e os objetivos legítimos da ação do profissional de segurança pública.
A força de segurança pública deve ser empregada com bom senso, prudência e equilíbrio, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, com vistas a atingir um objetivo legítimo da aplicação da lei.
Os órgãos e os profissionais de segurança pública devem assumir a responsabilidade pelo uso inadequado da força, após a conclusão de processo de investigação, respeitado o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Os profissionais de segurança pública devem atuar de forma não discriminatória, sem preconceitos de raça, etnia, cor, gênero, orientação sexual, idioma, religião, nacionalidade, origem social, deficiência, situação econômica, opinião política ou de outra natureza. Os profissionais de segurança pública deverão priorizar a comunicação, a negociação e o emprego de técnicas que impeçam uma escalada da violência. Veja a íntegra do Decreto 12.341 aqui.
Secretário diz que “objetivo é preservar vidas”
Conforme o secretário da segurança pública, João Eloy de Menezes, em texto distribuído pela SSP/SE para a imprensa, os dados de redução da taxa de homicídios “representam o compromisso da SSP com a segurança pública dos sergipanos. Temos o nosso objetivo de preservar vidas e tínhamos a meta nacional de diminuirmos a taxa de homicídios. Unimos ambas as metas e já encerramos 2024 com este importante feito de alcançar uma redução que era prevista apenas para 2030”, enfatizou. Ele garante “que a diminuição dos homicídios alcança todo o território sergipano”.
Para o coordenador de análise e estatística da SSP/SE, Sidney Teles, os dados sobre homicídios no estado “reforçam a tendência de queda dos crimes contra a vida em Sergipe. Nosso mapeamento tem indicado o seguimento da tendência de queda dos homicídios no estado e, segundo levantamentos do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) até novembro, Sergipe deve manter o status de estado mais seguro do Nordeste”, avaliou.