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“Não me submeto à pressão de construtoras nem de órgãos ambientais”. Gisele Bleggi, procuradora no MPF/SE, enfrenta o descaso com o meio ambiente em Aracaju

Procuradora Gisele Bleggi: “é preciso dar um chega porque já fizeram demais. Agora, parou” (Foto Ascom MPF SE)

Faz pouco mais de um ano que o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE) conta com mais uma procuradora da República que busca enfrentar os graves problemas ambientais em Aracaju e no estado. Trata-se da catarinense Gisele Bleggi que também é mestra em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça.

Antes de Sergipe, Bleggi passou pelo Amazonas e por Rondônia. Ela atua em processos que envolvem o meio ambiente e grandes empreendimentos, urbanismo, patrimônio histórico e cultural, direitos indígenas, comunidades tradicionais e minorias.

Gisele Bleggi recebeu a Mangue Jornalismo para uma entrevista logo depois de reforçar o pedido de suspensão de licenças ambientais de empreendimentos na Zona de Expansão em Aracaju.

Em recente inspeção do MPF/SE e do MP/SE, foram nitidamente identificadas edificações em área de preservação permanente, como destruição de manguezais e às margens de rios na Zona de Expansão. A Mangue já fez reportagem sobre isso. Leia “Ninguém comprou o rio”.

Além disso, entre as preocupações da procuradora está uma obra que a Prefeitura de Aracaju está realizando na região do Mosqueiro, onde se registra forte supressão de manguezais. A Mangue Jornalismo também já fez reportagem sobre a questão. Leia: Prefeitura de Aracaju aterra mangue e ameaça o Rio Vaza-Barris.

A procuradora se assustou com o grande volume de licenças ambientais emitidas pela Prefeitura de Aracaju e pelo Governo do Estado para edificações na Zona de Expansão. Ela disse que algumas licenças serão revistas.


Mangue Jornalismo (MJ)
– Por que o MPF de Sergipe reforçou a recomendação para suspender as licenças ambientais emitidas pelo Governo do Estado, através da Administração Estadual do Meio Ambiente (Adema), para a Zona de Expansão de Aracaju?

Gisele Bleggi (GB) – Existia uma liminar que impedia grandes construções na Zona de Expansão, mas o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) derrubou essa liminar e aí as construtoras retornaram com tudo e começaram a construir em todo pedaço de terreno que encontraram. Eu me assustei quando cheguei em Aracaju pelo aeroporto, [me] assustei com construções nessa área e na Orla, com prédios altos. Também me assustei ao saber que grande parte de Aracaju foi construída em cima de manguezais e é por isso que quando chove quase tudo alaga. Então, entendo que é preciso tratar com mais rigor essas questões aqui.

MJ – Há muita coisa solta nessa área em Aracaju…

GB – Então, temos um plano diretor que faz 25 anos sem revisão e agora é que o Judiciário começa a decidir. Realmente, estava tudo muito solto, não é? Aí vamos começar aos poucos, porque tem muita demanda nessa área. É preciso colocar as questões em ordem e a Zona de Expansão sofre de problemas muito graves, alagamentos, rodovia cedendo, é uma área problemática. Ali, o poder público tinha que ficar fiscalizando direto, se tem ligação clandestina de esgoto, se não tem.

Construções avançam livremente em áreas de preservação ambiental (Foto Myrna Landim)

MJ – Mas tem muita gente com licença ambiental agindo ali.

GB – É verdade, são muitas licenças que são emitidas em Aracaju. Entendo que muitas delas são passíveis de revisão. Penso que foi dada muita licença ambiental. Não sei quais foram as condicionantes para isso, mas têm algumas licenças, mesmo com condicionantes, que não sei se teriam condições de ser emitidas.

MJ – No Plano Diretor de Aracaju, a área da Zona de Expansão é compreendida pela Zona de Adensamento Restrito (ZAR) e a Área de Proteção Ambiental (APA). São manguezais, lagoas, rios, animais, dunas e populações tradicionais de pescadores, marisqueiras, etc. Isso é quase impeditivo para uma urbanização predatória como a que se tem lá.

GB – Olhe, a APA até permite alguma construção, mas com exigências enormes, o que é muito diferente do que está ocorrendo lá. A quantidade de bares que existem ali…veja, a sustentabilidade ecológica está prejudicada na Zona de Expansão. Existem irregularidades a olho nu. Já estive com o procurador de Justiça Eduardo Matos na região, fizemos vistoria e ainda vamos fazer mais. Não é possível imputar a um ou a outro empreendimento. Já deixei claro que nossa ação não é contra construtora A, B ou C, mas contra qualquer uma que esteja contra a legislação. Todos os empreendimentos são tratados de modo igual. Deixo claro também que não me submeto à pressão de construtoras, de empreendimentos, nem de órgão ambiental. Tem que fazer o que está na lei.

Aracaju: áreas brancas (ZAR) e verdes (APA) estão em avançado processo de destruição. Fonte: Plano Diretor de Aracaju, 2000.

MJ – Algumas construtoras, empreendimentos e o poder público fazem obras rapidamente e cada vez mais, sem parar. Depois alegam que não se pode mexer ou demolir porque são já áreas consolidadas. Como a senhora interpreta isso?

GB – Minha interpretação dentro do Código Florestal sobre áreas consolidadas é bem diferente da deles. Isso tem provocado algum choque com os empreendimentos. Eles acham que eu estou implicando; não estou. Eu só estou aplicando uma interpretação que, inclusive, tem respaldo nos tribunais superiores. Para ser considerada uma zona urbana consolidada era preciso que estivesse consolidada antes de 2008, com várias e várias construções urbanas em cima do terreno. A gente sabe que esse não é o caso da Zona de Expansão, não tinha construção nenhuma. O que se tinha eram mangues, dunas e lagoas. Lá, eles querem aplicar uma metragem de Área de Proteção Permanente (APP), que é uma lei municipal, mas lei municipal não pode se meter a querer flexibilizar as leis do Código Florestal. A lei municipal pode ampliar as restrições. Por exemplo, se ali fosse uma margem de 100 metros de recuo, a lei municipal poderia colocar 150 e jamais reduzir para 50 metros. No caso da Zona de Expansão, ainda tem a questão de possuir um rio federal ali. Não pode agir assim.

MJ – Curioso é que existem várias licenças ambientais emitidas pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Como é que fica isso?

GB – Sim, são muitas licenças mesmo, e isso é uma loucura. Quando cheguei aqui, encontrei a secretaria municipal licenciando e ainda o Governo do Estado, através da Adema, também emitindo licenças. Sei que pela Lei Complementar 140, se os órgãos ambientais são capacitados e se tem conselho atuante, eles até poderiam licenciar. Veja, independentemente do órgão, se é um ou se é outro, o que interessa é que se cumpra a lei. Se o órgão municipal chegar lá e dizer que aqui vai ter 100 metros de recuo, desde que fundamentado e cumpra rigorosamente a lei, não tem problema. Mas tem que estar tudo ajustado. Se começar a flexibilizar, complica.

MJ – Existe a possibilidade do MPF SE, a partir das informações que tem recebido, pedir a revisão das licenças ambientais concedidas pela Prefeitura de Aracaju e pelo Governo do Estado?

GB – É muito trabalho, mas alguns casos mais gritantes eu vou pedir a revisão, sim.

Procurador Eduardo Matos (MP) a Gisele Bleggi (MPF): vistoria na Zona de Expansão (Foto Ascom MPF SE)

MJ – A Prefeitura de Aracaju está realizando em ritmo acelerado uma obra de macrodrenagem na Zona de Expansão que tem produzido grande impacto ambiental, com supressão de manguezal, comprometimento de lagoas e rios. Moradores da região até fizeram protestos contra a destruição ambiental. O MPF tem acompanhado isso?

GB – A prefeitura me chamou para apresentar o projeto. Não sou engenheira, então vou submeter o projeto na 4ª Câmara do MPF, em Brasília, formada por um excelente corpo de engenheiros e peritos. Eles vão avaliar e podem apontar que o projeto não é viável ou podem sugerir ajustes. Bom, mas de cara eu vi que o projeto não tem o Relatório de Impacto de Vizinhança (RIV), vi que tem Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), inclusive pedi para fotocopiar e entregar um exemplar para cada comunidade tradicional. Também já pedi para que se realizem novas audiências públicas, porque se a população está revoltada e não deve saber direito o que está acontecendo. É importante dar oportunidade para que as comunidades tenham informação qualificada, com o EIA/RIMA na mão. O poder público precisa ouvir e, se houver casos de prejuízos, devemos sugerir medidas mitigatórias, alternativas ou compensações.

Máquina, cimento e homens da prefeitura avançam sobre o manguezal na Zona de Expansão. (Foto do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras de Sergipe (PEAC)

MJ – A obra da drenagem naquela região parece ser importante, o problema é o preço ambiental e social disso, além do benefício para grandes construtoras, não é?

GB – Sim, a obra é importante, parece que precisa ser feita mesmo porque aquilo ali vai alagar, todo mundo sabe. É uma obra de interesse público e quando desmatou o mangue, eu perguntei se tinha autorização para isso e me informaram que tudo tinha autorização. Estou esperando receber os documentos que comprovam essas autorizações. Eles falaram que estão retirando o mínimo necessário da vegetação. Bom, tudo isso vai também para a avaliação da 4ª Câmara do MPF, em Brasília. Vamos acompanhar isso de perto.

MJ – A senhora acompanha o grande movimento imobiliário que pretendem ocupar – para nós da Mangue Jornalismo é destruir – a Praia do Viral, também na Zona de Expansão? Já estão anunciando lotes milionários, shoppings etc. Parece que o nome é Projeto Maldivas.

GB – Acredito que andei por lá nessa praia, fui informada que é uma área de grande risco, não é? Estou achando estranho essa informação de construções lá, porque ali é uma área de risco, parece não haver estabilidade, tem mangue, dunas e, assim, não pode ter empreendimento. Vou procurar saber mais detalhes sobre isso.

MJ – A preocupação com o meio ambiente deveria ser de todos nós, principalmente dos poderes públicos. Entretanto, muitas vezes ele mesmo, por exemplo, quase não cumpre a determinação de realizar audiências públicas de verdade para escutar as comunidades. E com a crise climática isso é mais que urgente, não é?

GB – Tenho chamado a atenção do poder público: olhem e escutem as comunidades tradicionais, as pessoas têm o direito de serem escutadas pela Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], uma norma que tem caráter supralegal, está acima de qualquer lei. Eu fico falando, provocando, solicito por meio de ofício, estou toda hora falando nisso para ver se mudar essa rotina, porque acho que realmente muitas comunidades estão mesmo excluídas, elas se sentem excluídas. As pessoas e suas comunidades precisam participar de todo o processo, precisam ser ouvidas e seus argumentos precisam ser considerados na deliberação desses projetos e o poder público pode acolher ou não. Se forem acolhidos, tudo bem. Se não, precisa trazer toda fundamentação, as razões do porquê não se acolheu. Se as justificativas pela rejeição das falas das comunidades não forem sustentadas, a questão pode ser judicializada. Por isso, é fundamental que as comunidades tenham nas mãos um estudo qualificado a partir do acesso completo aos projetos, a exemplo do EIA/RIMA. Não adianta chamar uma audiência pública sem saber o que de fato está sendo discutido lá. As comunidades têm que ser consultadas, escutadas. Eu tenho chamado atenção toda hora.

Zona de Expansão: onde era manguezal, lagoa, lugar de gente e bicho, hoje é terra revirada (Foto do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras de Sergipe (PEAC)

MJ – Uma das questões preocupantes é que muitas comunidades de pescadores tradicionais, como as marisqueiras, começam a ser expulsas, empurradas de suas áreas em razão das obras da prefeitura e da especulação imobiliária.

GB – Não, as pessoas não podem ser empurradas assim. Tem que se verificar o lugar que vão ficar, ou seja, precisa-se apresentar alternativas e que as pessoas precisam concordar. Não se pode tomar o espaço das pessoas que exercem atividades tradicionais e não se tem nenhum programa para elas.


MJ
Apesar dos graves problemas da crise climática, os atuais gestores da prefeitura e do estado não têm se mostrado interessados na questão. Bom, este ano tem eleição municipal e as cidades terão novos gestores no próximo ano. O que dizer aos eleitores?

GB – Basta olhar o que aconteceu no Rio Grande do Sul. Aquilo lá deveria servir de exemplo. Se continuar aqui desse jeito, vai acontecer. Imagine se aquilo lá ocorre aqui? Já pedi para limpar os canais da avenida Inácio Barbosa, porque está tudo entupido. A gente está com foco bem centrado nessa questão da drenagem pluvial e esgoto. A gente está olhando isso para não acontecer o que ocorreu no Rio Grande do Sul. Não pensem que a gente vai ter aquela chuvinha que tinha. A tendência é chover muito e ter muita seca, serão mais comuns eventos climáticos extremos. E quando chove em Aracaju mais forte, fica tudo alagado. E as chuvas fortes vão chegar e a gente não dá conta.

MJ Mas parece que os gestores públicos e os grandes construtores não estão nem aí…

GB – Por incrível que pareça, quando a gente fala sobre isso para um grande empreendimento, ele pensa que é uma coisa de outro mundo e fora da lei. Os grandes construtores têm que cumprir o mínimo que está na lei e eles acham que eu fico atrapalhando. Eles acham que eu fico trancando, não, o problema é que simplesmente licenças estão sendo emitidas ao arrepio da lei. Isso é complicado. Por isso, ambos Ministério Públicos – foi inclusive sugestão do procurador de Justiça Eduardo Matos – vamos precisar sentar com os prefeitos atuais e os futuros, elencar todos esses problemas e eles vão ter que se comprometer com ações, com medidas rigorosas, transformar as secretarias de meio ambiente mais atuantes, porque a gente vai ter problema sério. Vamos ter que pegar o compromisso… é preciso dar um chega, porque já fizeram demais. Agora, parou.

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Uma resposta

  1. cada vez mais fica evidente o total descaso do poder público, prefeitura de Aracaju e Governo do Estado e de seus respectivos órgãos ambientais nessa questão ambiental, Sergipe está indo na contramão do desenvolvimento sustentável.

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CATADO DA MANGUE

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