WENDAL CARMO e TAUÃ FERREIRA, da Mangue Jornalismo
@euwen.dal e @taua_ferreiraa
Ponto turístico de Aracaju, a Praia do Viral pode estar com os dias contados. O temor não está relacionado apenas ao avanço do mar e à erosão do solo sobre a faixa de areia, um processo identificado por pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe (UFS) em estudos recentes. O motivo da preocupação é a possibilidade de aprovação da PEC 3/2022, que abre caminho à privatização de praias no Brasil.
Não é novidade que o litoral sergipano é alvo de cobiça da especulação imobiliária. Em alguns casos, o avanço de empreendimentos milionários sobre territórios importantes para o ecossistema do estado e a sobrevivência de comunidades tradicionais resulta em conflitos fundiários com efeitos muitas vezes irreversíveis.
A discussão em torno da PEC 3/2022 reacendeu a preocupação de ambientalistas com a possível construção de um empreendimento imobiliário às margens da Praia do Viral, com investimento inicial de R$ 300 milhões. O projeto “Maldivas Aracaju”, encabeçado por um consórcio de cinco empresas não identificadas, pretende erguer um bairro planejado com lotes residenciais, centro de comércio, quatro resorts e até um beach club.
Conhecida por sua paisagem paradisíaca, a praia é a que está mais ao sul de Aracaju e está com anos contados para desaparecer. Ela está sendo afetada pela erosão e perde 10 metros de faixa de areia ao ano, segundo o estudo “Panorama de Estabilidade Geológica do Litoral Sergipano”, da UFS. A instalação de um empreendimento desse porte, explicaJúlio César Vieira, pesquisador do Laboratório de Progeologia, tende a acelerar esse processo.
“Tudo o que fazemos no continente tem reflexo no nosso litoral e na nossa zona costeira. Destruição de manguezais, construção de barragens, destruição de áreas de proteção permanente com consequente redução de áreas de recarga de aquíferos etc. O desaparecimento do Viral está inserido em todo esse contexto, com o agravante do histórico acesso descoordenado de veículos ao local, destruindo a vegetação pioneira de restinga”, destaca Júlio.
A vegetação de restinga é um ecossistema crucial para essa região, fornecendo alimento para a fauna local e contribuindo para a fixação de dunas e a estabilização de ambientes costeiros recentes. Com o aumento do fluxo de pessoas e veículos na região, impulsionado pelo novo empreendimento, essa vegetação pode desaparecer e acelerar o processo de erosão da ilha da praia do Viral.
“Sua fisionomia que ainda é tratada como uma coisa banal, como ‘sujeira’, como ‘mato’, mas que sem ela, os sedimentos praiais ficam totalmente vulneráveis à remobilização pela água e pelo vento. O mar está avançando bastante sobre a desembocadura do rio Vaza Barris” conclui o pesquisador.
PEC foi aprovada na Câmara com voto favorável de Fábio Mitidieri
A PEC das praias, como ficou conhecida, estava engavetada no Congresso Nacional, mas ganhou sobrevida sob o governo de Jair Bolsonaro (PL). De autoria do ex-deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA), a proposta chegou ao Legislativo em 2011 e prevê o fim da propriedade exclusiva da União sobre terrenos de marinha.
Mais de uma década depois, em 2022, o projeto foi aprovado na Câmara e recebeu aval da maioria dos deputados sergipanos à época – apenas João Daniel, do PT, votou contra. Entre os parlamentares que se manifestaram favoravelmente à entrega das praias à iniciativa privada está Fábio Mitidieri (PSD), hoje governador de Sergipe.
Além dele, também deram aval à privatização das praias os deputados federais Bosco Costa (PL), Fábio Henrique (PDT), Fábio Reis (à época no MDB), Gustinho Ribeiro (à época no Solidariedade), Valdevan Noventa (PL) e Laércio Oliveira (PP) – que hoje exerce mandato de senador e poderá votar novamente quando a PEC for discutida no plenário da Casa Alta.
Na última segunda-feira (27), a proposta foi tema de uma audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), sugerida pelo senador Rogério Carvalho (PT-SE). “A PEC favorece a ocupação desordenada, ameaçando os ecossistemas, tornando esses terrenos mais vulneráveis a eventos climáticos extremos. A proposta ainda permite a privatização e cercamento das praias, trazendo impacto no turismo e na indústria de pesca”, criticou Carolina Gabas Stuchi, secretária-adjunta da Secretaria de Patrimônio da União (SPU) durante a audiência na CCJ.
Especialistas e ambientalistas criticam o texto e alertam para a ampliação dos riscos ecológicos impostos ao litoral brasileiros caso a medida seja aprovada.
Os terrenos da Marinha ficam nas praias e nas margens dos rios e lagoas, além dos espaços que contornam as ilhas com águas ligadas aos mares. Nos moldes atuais, os imóveis construídos nesses terrenos têm escritura, mas os moradores são obrigados a pagar anualmente à União uma taxa sobre o valor do terreno. Nesse regime, a propriedade do imóvel é compartilhada entre a União e um particular (cidadão ou empresa).
Com a PEC, a ideia é repassar a propriedade da União para estados e municípios de forma gratuita, e aos proprietários privados mediante pagamento. “A defesa de nossa costa, por exemplo, não é mais uma justificativa cabível para a manutenção de tal instituto”, justificou o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), relator do caso, em seu parecer.
A Mangue Jornalismo pediu um posicionamento, diretamente ou via assessoria de imprensa, aos deputados que votaram a favor da PEC da privatização de praias, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem. O espaço segue aberto.
Um megaempreendimento sobre um lugar paradisíaco
O megaempreendimento “Maldivas Aracaju” chegou a ser apresentado ao governador Fábio Mitidieri (PSD) e ao prefeito Edvaldo Nogueira (PDT) em março do ano passado. O encontro aconteceu no Palácio dos Despachos e contou com a presença dos secretários Marcos Franco (Turismo) e Jorginho Araújo (Casa Civil), além de Thomas Ribeiro Strauss, representante do consórcio responsável pelo empreendimento.
O projeto encheu os olhos do chefe do Executivo estadual, que prometeu agilidade dos órgãos ambientais para providenciar o licenciamento da obra e afirmou ver no empreendimento potencial à geração de empregos. “No que depender da agilidade do poder público, vamos agir, porque é algo que nos interessa diretamente, pois vai ajudar a transformar o turismo em Sergipe”, disse Mitidieri, segundo informe divulgado pela Secretaria de Comunicação (Secom) à época.
À Mangue Jornalismo, a secretaria estadual de Turismo afirmou que o Executivo não realizou nenhum aporte financeiro no projeto do Maldivas Aracaju. O estado, informou a pasta, recebeu os investidores apenas “para apresentação do projeto e se colocou à disposição no tocante à alçada estatal”. “Quanto ao andamento do projeto, o que se sabe é que está em fase de organização de documentos entre investidores, além de ajustes do projeto”, acrescentou.
Na reunião, Thiago Strauss, empresário que não possui ligação com o mundo imobiliário e atua no setor da comunicação em Brasília e Goiás, definiu o empreendimento como um “marco urbanístico” e afirmou que o projeto possui “baixíssimo” impacto ambiental. “Identificamos aqui em Sergipe essa oportunidade de realizarmos um marco urbanístico, numa região paradisíaca, onde há o encontro do rio com o mar, a presença de manguezais e matas nativas”, pontuou durante a reunião com os representantes sergipanos.
A visita ao governador, definiu Strauss, teve o objetivo de apresentar o projeto e “receber a tranquilidade para investir sem receios de travamentos burocráticos ou jurídicos”.
O local escolhido para instalar uma réplica nordestina das Ilhas Maldivas, contudo, é rodeado por mangues e também se insere em Área de Preservação Permanente (APPs), uma vez que está próximo ao curso final do Rio Vaza-Barris. Essas áreas possuem regras rígidas de exploração do solo porque são importantes para a preservação dos cursos d’água e evitar transformações negativas nos leitos dos rios, entre outras coisas.
Mas, como mostrou a Mangue Jornalismo (LEIA AQUI), a prefeitura de Aracaju tenta flexibilizar a legislação e permitir o desmatamento nas APPs sob alegação de “prevenir desastres naturais” e preparar a cidade para “superar adversidades climáticas”. O projeto de lei enviado à Câmara Municipal no início de maio ainda não foi votado pelos vereadores.
Procurada, a Adema (Administração Estadual de Meio Ambiente) afirmou que o licenciamento da área onde estuda-se a construção do empreendimento está sob responsabilidade da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Questionada, a pasta disse não ter dado aval a nenhum projeto semelhante na região da Praia do Viral.
Responsável pela consultoria ambiental do empreendimento, a GA Ambiental, uma empresa com sede em Aracaju que atua no processo de licenciamento de grandes obras, alega que o “Maldivas Aracaju” trabalha com a “preservação de 700 mil m² de áreas verdes, o que representaria mais da metade de todo o terreno que o complexo ocupará”.
Por telefone, a engenheira Gabriela Almeida, representante da empresa, afirmou que não poderia conversar com a reportagem por ter cláusulas de confidencialidade em seu contrato. Em nota, o gestor comercial do projeto, Fábio Aleixo Vieira, disse que o empreendimento “encontra-se em fase de regularizações documentais e licenças” e não respondeu quais são as empresas envolvidas na empreitada.
A identidade dos investidores, segundo ele, será revelada apenas após a “liberação de todas as licenças e projetos aprovados pelos órgãos competentes”. Sobre os estudos da UFS que tratam da ameaça à existência da Praia do Viral, Vieira afirmou ter ciência das pesquisas, mas disse não existir “relação direta entre as áreas residências com os estudos”.
“Por se tratar de um projeto de grande importância para o município e o estado, existe um departamento de compliance tomando todos os cuidados necessários para a integração do empreendimento com o meio ambiente, preservando e revitalizando as áreas de mangue e Praia do Viral”, justificou.