TATIANE MACENA, da Mangue Jornalismo
@_tatianemacena
CRISTIAN GÓES, supervisão
O mês de novembro chega ao fim e deixa algumas reflexões acerca das lutas e vitórias da população negra brasileira.
Sempre que o dia 20 de novembro se aproxima, as mobilizações para a celebração do Dia da Consciência Negra são iniciadas em diversos espaços.
Durante todo o mês de novembro, são realizados debates sobre a contribuição da cultura negra para a sociedade. No entanto, a luta contra o racismo e a celebração da cultura negra devem ser diárias, para além de novembro.
No Brasil, mais de 55% da população é composta por pretos e pardos, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), realizada pelo IBGE.
Em Sergipe, pretos e pardos também são maioria, mais de 74%. Ainda assim, pessoas negras sofrem diversos tipos de violência diariamente, e muitas vezes apenas são lembradas como protagonistas de suas histórias no penúltimo mês do ano.
Sem educação antirracista, o racismo aflora em escolas
Para “comemorar” o Dia da Consciência Negra, várias escolas promovem eventos em alusão à cultura negra, mas quando pessoas brancas resolvem ser as protagonistas do 20 de novembro, cenas problemáticas sempre são registradas.
Em uma escola da rede particular na cidade de Nossa Senhora do Socorro, foram confeccionadas perucas de emborrachado para crianças para que representassem os cabelos.
A mãe de uma das alunas, que é uma mulher negra, foi pega de surpresa. No dia do ocorrido, a filha da autônoma Thaís Macena, 25 anos, não foi à escola devido a um contratempo. No fim da tarde, a jovem mãe se deparou com uma postagem na conta oficial da escola no Instagram.
“Na verdade, eu nem me lembrava que era o Dia da Consciência Negra, porque o dia foi tão corrido que não abri a rede social. Somente quando me dei conta de tudo que olhei no Instagram, eu falei ‘nossa, hoje é o Dia da Consciência Negra, então vamos ver o que a gente vai ter’”, conta Thaís.
Ela disse que da escola não esperava nada, porque em outras datas importantes nunca haviam organizado nada. “Então, quando eu abri [o Instagram), o meu coração deu aquela gelada. Eles achavam que ia ser bonito fazer um cabelo crespo, de emborrachado, como se fosse um capacete”, disse a autônoma.
O ato é tão ofensivo quanto o Blackface, prática iniciada por volta de 1830 em Nova York, na qual atores brancos se pintavam para interpretar personagens negros apresentados como bobos para o entretenimento de uma plateia também branca. Após críticas da Thaís, a postagem foi removida das redes sociais da escola.
Para Wanessa Fortes, da coordenação estadual do Movimento Negro Unificado (MNU), essa ação em Nossa Senhora do Socorro demonstra que o racismo está presente em todos os lugares, inclusive nas escolas.
“A gente tem a Lei 10.639, e ela não é aplicada no estado de Sergipe. Quando você tenta dialogar com os professores, como eu já tentei em uma determinada escola, as professoras viraram as costas. Eles ficam com raiva quando você tenta dialogar sobre esse assunto. A gente sente uma resistência muito grande”, disse Wanessa.
Para ela, “quando chega novembro, a gente recebe várias ligações. Passa o ano todo sem lembrar da gente, mas quando chega em novembro é o mês que os ativistas pretos têm mais agenda. É realmente o mês da paciência preta”, comenta a ativista.
Comemorar ou não?
No dia 20 de novembro é celebrado o Dia Nacional de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, localizado entre os atuais territórios dos estados de Alagoas e Pernambuco.
Zumbi lutou contra a escravização no Brasil e foi morto em 1695, na referida data, por bandeirantes liderados por Domingos Jorge Velho.
No mês de novembro, ativistas do movimento negro também celebram a resistência de Dandara, que lutou bravamente ao lado de Zumbi. Mesmo tratando as dores da escravização, pessoas pretas se unem para traçar estratégias de sobrevivência, e o mês de novembro é um bom momento para isso.
Para Thaís, o 20 de novembro não é uma data comemorativa. “É um dia comum como qualquer outro, porque não tem nada para comemorar. A gente ainda vive numa escravidão moderna, onde negros recebem muito menos que pessoas brancas”, afirma.
Ela destaca que o dia aparece como “se fosse uma grande comemoração, mas a gente saiu do nada para o nada. Temos uma liberdade, mas não estamos tão livres, porque temos que nos esforçar o dobro, e a gente ganha menos”, enfatiza Thaís.
O militante do Movimento Negro e fundador da Casa de Cultura Afro Sergipana, Severo D’Acelino, lembrou que “O 20 de novembro nasceu para que o negro passasse a se entender e discutir suas questões. Para que a gente pudesse apresentar uma pauta de reivindicação, para avaliar as nossas pressões e as condições”, disse Severo.
Para ele, “ninguém vai para o 20 de novembro para falar a respeito da saúde, da educação, da segurança. Vai para o 20 de novembro para dançar. Antes de tudo falamos da dança, da importância dela, se ela é sacra, se ela é profana, enfim, dança popular. A dança tradicional é terapêutica e isso nunca foi colocado em evidência. A gente tem que verificar que o 20 de novembro tem que ser respeitado”, reforça o ativista.
Wanessa Fortes salienta que a data tem que ser celebrada por pessoas negras. “Acontece que muitas pessoas, muitos outros movimentos, têm se apropriado dessa pauta do movimento negro. A marcha preta por exemplo, novembro preto é exclusivo do movimento negro”, afirma.
Ela acredita que algumas “pessoas, com o passar do tempo, têm tentado apagar o 20 de novembro. Com essa história de ‘ah o dia da consciência humana, ah não deveria existir consciência negra’. Se é uma data em que o povo preto celebra a sua liberdade, celebra a a sua história, revive Palmares, por que as pessoas estão tão incomodadas?”, questiona Wanessa.
Uma permanente violência racista
Na época da escravização, a população negra africana foi abruptamente retirada do seu território e trazida para o Brasil. Famílias, manifestações culturais, religiões foram ignoradas. Aqui se registrou a exploração de escravização, estupros, assassinatos de corpos negros e indígenas.
Quando ocorreu a “abolição”, não houve políticas de reparação, e os ex-escravizados saíram das fazendas sem direitos. Até hoje as marcas da escravização ainda sangram nos corpos de pretos.
No mês de novembro, quando a sociedade brasileira volta sua atenção para o combate ao racismo, uma jovem brasileira que estava grávida teve sua vida covardemente interrompida pelo pai da criança. É um crime sem justificativas, mas quando questionado ele afirmou que “não queria um herdeiro com características negras”.
Também em novembro, a porta-bandeira da Portela Vilma Nascimento foi constrangida ao ter que abrir a bolsa em uma loja do aeroporto de Brasília quando voltava de uma premiação em alusão ao Dia da Consciência Negra.
As violências não param por aí. De acordo com o Atlas Brasileiro de Segurança Pública de 2022, a taxa de homicídios de pessoas negras cresceu 7,5%; às mulheres negras também são as maiores vítimas de assédio no país.
“A cada 100 pessoas assassinadas no país, 78% eram pessoas pretas. E o homicídio de pessoas brancas caiu para 26,5%. Em Sergipe, esse número aumenta bastante. A gente precisa também associar essa questão do racismo aos direitos humanos, à falta de oportunidades e aos direitos básicos. Porque nós somos a maioria da população, e somos os que mais morrem porque somos os que menos estão em cargos de poder. A nossa juventude está morrendo”, destaca Fortes.
O artigo 5º da Constituição Federal diz que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, mas o que vemos na prática é que a lei não trata todos de maneira igualitária, na maioria das vezes, quando a pessoa negra é abordada por órgão de segurança pública, a agressão chega antes da conversa. Um exemplo recente é o caso de agressão contra o artista de rua Soma MC, que ocorreu em outubro deste ano.
Lídia Anjos é assistente social e mestre em Direitos Humanos. “Todo mundo merece um tratamento igualitário, e que a gente compreenda isso dentro de uma perspectiva de dignidade, que não chegou a todas as pessoas de igual maneira. Me filio à corrente teórica, crítica, de direitos humanos que denuncia as opressões do mundo a partir não só da questão da classe social, mas também a partir da das questões raciais, de gênero, orientação sexual, e das interseccionalidades, que demonstram que somos muito diferentes, não nascemos livres igualmente e, portanto, alguns grupos precisam sim de cotas, de políticas reparatórias, e de um olhar mais equânime”, ressalta Lídia Anjos.
Para a assistente social, a luta contra o racismo tem que ser diária. “Barrar o racismo nas piadas entendidas durante muito tempo como brincadeirinhas, mas que na verdade são todas de cunho racista. É preciso barrar essas atitudes racistas e atuar na formulação de políticas públicas e antirracistas nos espaços em que nos tornarmos gestores, gestoras ou mesmo ativistas do movimento, na perspectiva da cobrança, do controle social. As pessoas brancas, que conseguem se entender como antirracistas podem identificar os privilégios que têm nessa sociedade que exclui e inferioriza pela cor da pele, e oportunizar e visibilizar vozes negras e trabalho para pessoas negras”, diz.
Luta pelo reconhecimento
Apesar de muitos negros e negras terem atuado na linha de frente em diversas batalhas sociais ao longo da história brasileira e mundial, o direito de serem protagonistas nos livros de história ainda é negado.
Em Sergipe, por exemplo, o apagamento histórico, caracterizado pelo racismo estrutural, não valoriza figuras importantes como Beatriz Nascimento, Maria Rita Soares, Raimundo Soares de Andrade, Arthur Bispo do Rosário, Severo D’Acelino e outros pretos e pretas que contribuíram e contribuem imensamente com a história do estado e do país.
Apesar de a Lei 10.639/03 tornar obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira em salas de aula dos níveis fundamental e médio, o conteúdo da história da África e da cultura afro-brasileira só é transmitido durante algumas atividades pontuais do mês de novembro.
“E a isso cabe sim uma fiscalização e uma maior preocupação por parte dos gestores. Porque ter a princesa Isabel, Dom Pedro II, todo processo do Império e o negro aparece na condição de escravizado e às vezes aparece no movimento abolicionista. Então precisamos aprofundar muito mais, precisamos dar todo o protagonismo que é justo e merecido, sobre a história da África, a geografia da África e a história da cultura afro-brasileira”, disse o professor de história Osvaldo Ferreira Neto.
Para Severo D’Acelino, a influência do cristianismo na educação inviabiliza o cumprimento da lei. “Demonizam a cultura negra o tempo todo. Para eles, a cultura negra é coisa do diabo. E muitos professores sob a sua coordenação, dificultam o acesso dos alunos à disciplina. E na verdade o conteúdo que a gente propõe não é disciplina de cultura negra nas escolas. A gente quer conteúdo da cultura negra nas disciplinas. Portanto, há um grande equívoco, o professor de Português pode falar abertamente com muita fluidez sobre a questão do negro na sua disciplina, assim como o professor de geografia. Temos uma vasta territorialidade nas áreas remanescentes de antigos quilombos. Em todas as disciplinas cabe conteúdo da cultura negra, portanto não fazem porque não querem”, defende.
A mestre em Antropologia Social Alessandra Santos da Graça afirma que a lei não foi o suficiente para a inserção desses protagonistas negros na grade curricular. “Podemos fortalecer a história das pessoas negras do nosso estado referenciando nas aulas do Ensino Médio e básico, mas também na formação acadêmica dos professores. O estado precisa investir em editais, cursos e permitir que professores possam se especializar nas temáticas afro-brasileiras. Somente a lei não foi suficiente, precisamos avançar e pensar alternativas para que ela seja colocada em prática e nossos jovens hoje possam ter acesso à história que foi negada a nós”, ressalta a professora.
Severo disse que figuras importantíssimas para a cultura sergipana foram e continuam invisibilizadas. “Continua a mesma coisa, na verdade nós não temos nenhuma consideração para as lideranças pretas. A sociedade não dá visibilidade ao negro e, portanto, essas manifestações, essas personalidade continuam sendo invisibilizadas e não tem nenhum processo para estancar isso”, afirma Severo.
“São situações como essas que precisam de atenção, [precisamos] alertar e lutar para que possamos mudar, porque nome de brancos, de homens e da sociedade – inclusive escravocratas – existem, quer dizer, a representação das elites, da burguesia. Mas cadê a representação da classe trabalhadora e principalmente da população preta desse estado e dessa cidade? É algo a se refletir, é algo a se questionar”, cobra o historiador Osvaldo Ferreira.