WENDAL CARMO, da Mangue Jornalismo (@euwen.dal)
Desde março deste ano, juízes e desembargadores sergipanos têm acrescido em seus salários um benefício de indenizações por folgas de trabalho que possibilita driblar o teto constitucional do funcionalismo público em até 13 mil reais mensais.
Resultado: em seus primeiros três meses de funcionamento, o adicional, aprovado pelo próprio Tribunal de Justiça de Sergipe (TJSE), já custou cerca de 6 milhões de reais aos cofres do estado de Sergipe e pode atingir a casa dos 23 milhões somente neste ano.
A chamada licença compensatória permite que magistrados tenham uma folga a cada três dias de trabalho. Essas folgas podem ser acumuladas em até dez dias no mês e, se não tiradas, vendidas ao tribunal na forma de indenização. Esse processo pode aumentar os salários dos magistrados, em um terço, de forma automática, sem que haja comprovação do trabalho realizado pelo juiz.
A proposta, aprovada pelo TJSE em outubro do ano passado, recebeu aval da Assembleia Legislativa de Sergipe no mês seguinte, com votos contrários apenas dos deputados Georgeo Passos (Cidadania) e Linda Brasil (Psol).
A licença compensatória substituiu um outro benefício: a gratificação por acervo processual que era pago a magistrados em casos de “acumulação de funções administrativas e processuais extraordinárias”. O antigo bônus tinha natureza remuneratória – ou seja, eram incorporados aos salários e, portanto, na soma, não poderiam ultrapassar R$ 44 mil reais, valor do salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A licença compensatória, contudo, dribla essa regra.
À época, o TJSE argumentou que a criação do benefício não traria aumento de despesas aos cofres públicos. Ocorre que, em três meses depois da troca, o tribunal já gastou quase R$ 3,4 milhões a mais que o montante desembolsado entre dezembro de 2023 e fevereiro de 2024 para custear a gratificação por acervo – um aumento de 130% em relação ao antigo privilégio.
Desde que começou a ser pago, em março deste ano, cerca de 160 magistrados receberam em média cerca de R$ 11,7 mil por mês. O acréscimo possibilitou, por exemplo, que um desembargador passasse a receber uma remuneração mensal por volta de R$ 53 mil – cerca de oito mil a mais do que recebe um ministro do STF.
Os salários de juízes novatos, substitutos e com anos no TJ também tiveram seus salários avolumados e ultrapassam o teto do funcionalismo, segundo dados do Portal da Transparência.
“É difícil convencer a sociedade sergipana de que é justo um juiz ou desembargador, que recebem os maiores salários do funcionalismo público nacional e ainda gozam de 60 dias anuais de férias, devam ter direito a 120 dias de folgas para vender, quando a maioria da população tem sequer trabalho com carteira assinada”, afirma Jones Ribeiro, coordenador geral do Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Estado de Sergipe (Sindijus-SE).
Procuradores saíram na frente pelo auxílio folga…
As discussões sobre a licença compensatória surgiram em 2015 na esteira de um debate sobre duas portarias que garantiram gratificações a magistrados da Justiça Federal e do Trabalho. A ideia era conceder um valor extra correspondente a um terço do salário-base aos juízes que atuassem em mais de uma vara ou fossem responsáveis por muitos processos. Inicialmente, o aumento estava limitado ao teto do funcionalismo.
Em 2022, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) recomendou a criação de regras semelhantes para garantir a gratificação aos promotores e procuradores, sob o princípio da simetria entre os membros do Ministério Público (MP) e da magistratura. Um ano depois, o órgão estendeu o benefício e o desvinculou do teto do funcionalismo público.
A nova regra permitiu que os integrantes do MP pudessem escolher entre tirar um dia de folga para cada três trabalhados ou receber o dinheiro correspondente aos dias de folga. Criou-se, assim, a licença compensatória, que hoje turbina tanto os salários dos procuradores quanto dos juízes sergipanos.
A Mangue Jornalismo mostrou em abril (LEIA AQUI) que o benefício foi instituído no Ministério Público de Sergipe em outubro de 2023. Desde então, apontam dados disponíveis no Portal da Transparência, foram gastos mais de R$ 9,2 milhões em indenização. Mas os gastos ainda podem ser maiores: as projeções feitas pelo Sindicatos dos Trabalhadores Efetivos do MPSE (SINDSEMP-SE) é que o valor gasto até o final deste ano seja de R$ 20 milhões.
Ao mesmo tempo, servidores públicos lotados no MPSE e no TJSE reclamam de baixas remunerações e que são submetidos a rotinas de trabalho extenuantes. “Enxergamos isso como uma gestão desequilibrada do orçamento público, em que se privilegia uma classe, já bem remunerada, em detrimento de outra e da população, destinatária dos serviços prestados pelo MP”, afirma Dennis Christian de Freitas, coordenador de Administração e Finanças do SINDSEMP.
…E os juízes seguiram atrás
O auxílio folga foi instituído para os magistrados sob a alegação de desvantagem em relação aos promotores. Assim, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) seguiu o mesmo caminho do CNMP e editou uma resolução para ter direito ao mesmo benefício.
“Juízes não podem, nem devem, ter situação desfavorável em relação à membros do MP, até porque tal quadro impacta na atratividade das carreiras, quando ambas devem ter a ambição de conquistar, em condição de igualdade, os melhores quadros”, sustentou o ministro do STF e presidente do CNJ, Luís Roberto Barroso, durante a aprovação do projeto.
Três dias depois da decisão do CNJ, foi a vez do Conselho Federal de Juízes Federais (CFJF) promover mudanças em resoluções internas para ter direito à licença compensatória. Neste caso, porém, os magistrados federais precisam comprovar que trabalharam através de um requerimento para ter seus dias de folga convertidos em indenização. Em Sergipe, esse processo é feito de forma automática.
Técnicos do Tribunal de Contas da União (TCU) defenderam a suspensão do pagamento do auxílio folga em parecer enviado à Corte no final de 2023. O documento apontava “possíveis ilegalidades” na concessão das licenças e estimava que, somente na Justiça Federal, o pagamento das regalias provoque um rombo de R$ 865 milhões por ano. O TCU, porém, ignorou a recomendação e arquivou a investigação – vale ressaltar que os membros do Tribunal também foram contemplados com o benefício.
A Mangue Jornalismo perguntou ao TJSE de que forma o órgão consegue confirmar se os juízes estão trabalhando e merecem ter o direito à folga e, por consequência, à indenização. A nota enviada à reportagem evita detalhar esse processo e diz apenas que a licença compensatória segue a resolução do CNJ, uma decisão que deve “ser seguida e implementada por todos os tribunais do país”.
Procurada, a Associação dos Magistrados de Sergipe (AMASE) respondeu também por meio de nota que o benefício segue o entendimento do CNJ e atende “ao comando constitucional do caráter unitário da magistratura nacional, estendendo aos magistrados sergipanos direito assegurado aos integrantes de outros ramos da Justiça”.
A Amase afirma ainda que “tal política remuneratória proporcionará o fortalecimento do Poder Judiciário, ampliando sua independência e freando a evasão de magistrados e a redução da atratividade do cargo de juiz de direito”.