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Em presídios de Sergipe, castigos medievais revelam tratamento cruel e desumano. Governo é processado por não agir na prevenção e no combate à tortura

CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo

“A cela é totalmente escura, praticamente não há entrada de luz natural e não há lâmpada. Algumas pessoas relataram estar ali há mais de um mês, trancadas 24h por dia, sem banho de sol e sem visitação. A superlotação na cela é tão grande que as pessoas precisam se revezar para dormir, uma vez que não cabem todas deitadas ao mesmo tempo. Não há nenhum colchão na cela, as pessoas dormem direto na pedra, assim como não há acesso a qualquer item de assistência material…”.

Este relato é parte de um amplo levantamento realizado de surpresa em presídios de Sergipe, no final do ano passado (entre dias 12 e 16 de setembro), por uma missão do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). No caso específico desse relato acima, a descrição é da “tranca” no Complexo Penitenciário Manoel Carvalho Neto (Copecam), presídio de São Cristóvão. “Tranca” é uma cela usada como “castigo” ou quando há transferência de pessoas de pavilhão. Nela, detentos chegam a passar semanas.

No dia da inspeção, “havia 19 pessoas neste local (destinado a apenas duas pessoas) que foram remanejadas quando da chegada da equipe ao presídio… Pela manhã, antes da chegada da inspeção, seriam colocadas mais 17 pessoas nessa cela, o que totalizaria 36 pessoas. Entretanto, os servidores recusaram-se a cumprir com uma ordem flagrantemente ilícita. As pessoas privadas de liberdade afirmaram que a ´tranca’, muitas vezes, chega a abrigar mais de 30 pessoas”, traz o relatório.

“Tranca” no presídio de São Cristóvão. (Imagem da capa do relatório do MNPCT)

Na cadeia da cidade de Areia Branca, por exemplo, foi encontrada “a expressa menção a registros de saídas de medicações psiquiátricas de uso controlado que, por seus quantitativos diários, configuram indício de possível contenção química em massa, que aumenta o risco de vulnerabilização da saúde física e psíquica dos custodiados”. Veja adiante nessa reportagem.

As situações são tão graves que, diante da quase que completa omissão do Estado o Ministério Público Federal (MPF) moveu uma ação com pedido de decisão urgente da Justiça Federal, para que a União e o Governo de Sergipe implementem, dentro de suas competências, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT), previsto na Lei Estadual 8.135/2016 e na Lei Federal 12.847/2013. Grande parte da ação movida pelo MPF (Processo 0805299-51.2023.4.05.8500) está no relatório da missão do MNPCT em Sergipe.

Para a procuradora Regional dos Direitos do Cidadão em Sergipe, Martha Carvalho Dias de Figueiredo, é inadmissível que o poder público sergipano siga sem adotar medidas concretas para implementar o Mecanismo Estadual para que possa iniciar as ações sistemáticas tanto na linha da prevenção quanto do combate a práticas de tortura às pessoas privadas de liberdade. Veja mais informações sobre essa ação ao final da reportagem.


Outras situações dramáticas no presídio de São Cristóvão

Em boa parte das unidades prisionais e socioeducativas de Sergipe o quadro é de barbárie, com punições e torturas, impondo-se um tratamento cruel e desumano contra apenados e suspeitos de crimes. Em São Cristóvão, por exemplo, a estrutura é “horizontal”. Trata-se de um caixão onde existem celas para oito pessoas, mas onde se amontoam até 20. “Há ainda celas de isolamento com capacidade para um preso, onde às vezes estão alocadas de 7 pessoas até 17 pessoas”, aponta o relatório.

Os inspetores encontram em celas pequenas aberturas chamadas de solário, que é aberto por volta de 07h e trancado às 14h. “Assim, o banho de sol das pessoas custodiadas neste local é feito no solário e não no pátio com o restante das pessoas privadas de liberdade”. E mais: “O local é tão hermético que é usada uma corda para entrega de alimentação, medicamentos e outros itens, que se estende da grade do solário até a grade lateral superior da cela, onde as pessoas presas só alcançam quando sobem na cama”.

No dia da missão, “o pequeno pátio de banho de sol estava infestado por lixo que não havia sido recolhido, o que gerava o aparecimento de insetos e bichos, como baratas, ratos etc.” No fundo das celas, os inspetores não encontraram lavatório, “apenas um vaso sanitário sem assento e sem tampa no chão. Não há chuveiro, há um encanamento por onde sai água racionada que vem do teto do quarto”.

Também são graves as denúncia de péssima e pouca alimentação. “Pode-se verificar o longo tempo de jejum diário a que são submetidas as pessoas privadas de liberdade; são 16 horas entre a última e a primeira refeição. Há diversas discrepâncias entre o termo de referência do contrato e o que foi verificado na unidade”.

Flagrante de detento dormindo no chão. Acervo do MNPCT

Foi constatada enorme gravidade em relação a água no presídio de São Cristóvão. “Há uma política de racionamento em que as pessoas presas recebem água em suas celas apenas uma vez por dia, por um tempo limitado de cerca de 20 a 30 minutos. Essas pessoas armazenam a água fornecida como podem, de forma precária e indigna, em baldes improvisados feitos de vasilhames velhos, quebrados e desgastados. A água que é armazenada nos vasilhames, também é utilizada para beber, mesmo não sendo potável”, aponta o relatório.

Para os inspetores nacionais, “a quantidade e qualidade de água e de alimentação fornecidos constituem grave vetor de tratamento cruel, desumano e degradante e de tortura para com as pessoas privadas de liberdade. A falta do fornecimento adequado desses insumos fundamentais para a vida humana afronta diretamente o direito da alimentação”. Eles fundamentaram as afirmações na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Constituição Federal e na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional.


Maioria é de preso provisório, jovem e negro

Em Sergipe, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, entre 2020 e 2021, houve um crescimento exorbitante da população carcerária, saindo de 5.598 para 6.751 pessoas privadas de liberdade. Segundo dados do sistema prisional, “estas pessoas são, na sua maior parte, constituídas por jovens (70,88% tem entre 18 e 34) do sexo masculino, que correspondem a 5.286 (95,8%) do total, enquanto apenas 232 (4,2%) são do sexo feminino. Das 1.551 pessoas que se declararam, 92,19 % das pessoas se consideram pretas e pardas, ou seja, 1.430, número que extrapola em muito o cômputo nacional, que é de 67,5% de pretos e pardos”.

Outros graves dados são os que revelam que “do total de internos que fazem uso do sistema prisional sergipano, 64,46% estão nas unidades de forma provisória, enquanto apenas 32,15% estão em regime fechado, 2,83% cumprem regime semiaberto e 31 (0,56%) pessoas estão em regime de medida de segurança, ou seja, há um alto quantitativo de pessoas presas provisoriamente, situação que entra em conflito com a regra constitucional da presunção de inocência, inscrita no Art. 5º, LVII (Constituição Federal)”.

Quase 65% dos presos em Sergipe são provisórios (Imagem freepik)

Das 11 unidades em funcionamento em Sergipe, cinco foram classificadas como péssimas ou regulares no que tange aos aspectos estruturais, dentre elas: Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), Presídio Senador Leite Neto (Preslen), Presídio Regional Juiz Manoel Barbosa Souza (Premabas) e Complexo Penitenciário Manoel Carvalho Neto. Esse índice de cinco é considerado alto pelos inspetores, “dado que os problemas estruturais de algumas unidades do sistema prisional sergipano duram mais de 10 anos, conjuntura esta agravada pelo aumento do número de pessoas encarceradas de forma provisória, ou seja, a porcentagem que era de 42,4% em 2020, chegou a 79,9% em 2021, muito acima da média nacional”.


Gravíssimas denúncias da
Cadeia Pública de Areia Branca

No dia 15 de setembro do ano passado, os inspetores nacionais estiveram na Cadeia Pública de Areia Branca, unidade para homens, e também encontraram gravíssimos problemas. Lá, a administração é em cogestão, administrada pela empresa Reviver desde a sua inauguração, em 2017.

Naquela cadeira, chamou atenção dos inspetores a grande quantidade de uso de medicamentos, como Diazepam e Clorpromazina, duas medicações psiquiátricas de uso controlado. “Os registros mostram, em um único dia, a saída de 400 comprimidos de Clorpromazina 100mg, número que se aproxima do total de pessoas presas na unidade. Há registro da saída de 255 comprimidos de Diazepam 10mg em um só dia, quantidade suficiente para medicar mais da metade da população presa na unidade”.

Outra questão que chamou atenção da equipe foi a distribuição diária pela unidade do chamado “paliativo”, que é “uma substância líquida servida em copos, cuja composição era desconhecida tanto para as pessoas presas quanto para os servidores presentes e questionados sobre isso no dia. Nos registros de saída de medicação, não consta nenhuma denominada ‘paliativo’. Pelo que foi apurado, o ‘paliativo’ é entregue diariamente, no período noturno.”

“Paliativo” que seria distribuído na cadeia de Areia Branca (Imagem: Acervo do MNPCT)

Ainda sobre a cadeia de Areia Branca há relatos do “uso sistemático, arbitrário e abusivo de spray de pimenta pelos servidores e monitores, os quais, apesar de não terem autorização para utilizarem espargidores, portavam esse equipamento”, além de “narrações de prática de tortura, inclusive mediante a utilização de cachorros das raças pit bull e rottweiler, e agressões físicas”, aponta o relatório do MNPCT.

Os inspetores também colheram denúncia de que “no momento da tranca, os monitores fazem corredor polonês e batem de tonfa [bastão, cassetete] nas pessoas presas à medida que passam. As pessoas também relataram práticas de tortura durante a revista das celas, que ocorre todos os dias, como uso de spray de pimenta e cachorros, que chegam a urinar nas celas e nos colchões e já inclusive morreram as pessoas”.

Segundo a direção da cadeia informou aos inspetores, “o uso de cães é apenas para busca de itens ilícitos nas celas. Entretanto, essas duas raças [pit bull e rottweiler] não são as melhores farejadoras, ao contrário, são cães mais usados para fins de proteção e intimidação”. Ainda segundo o relatório: “Houve inúmeras queixas de sessões de espancamento na unidade, tanto por monitores quanto por policiais penais. Conforme relatado, elas ocorrem em locais cujas imagens não são captadas pelas câmeras de segurança”.


MPF processa Governo de Sergipe e União

No último dia 22 de agosto, o MPF ajuizou uma ação civil pública contra a União e o Governo de Sergipe para obrigá-los a criar, dentro de suas competências, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT), previsto na Lei Estadual 8.135/2016 e na Lei Federal 12.847/2013. Caso a União e o Governo do Estado não cumpram o que determinam as leis e a decisão judicial, o MPF pede aplicação de multa de R$ 100 mil para cada um deles.

Na ação, a procuradora Regional dos Direitos do Cidadão, Martha Carvalho Dias de Figueiredo, pede que o MEPCT tenha completa estrutura, recursos orçamentários e autonomia institucional, bem como independência funcional de seus membros, de modo a viabilizar o seu adequado funcionamento e a realização de visitas periódicas (no mínimo, anuais) a todas as unidades prisionais e a todos os locais de custódia (a exemplo das delegacias, hospital psiquiátrico, cadeias públicas, instituições de internação de adolescentes, comunidades terapêuticas, entre outros) presentes no território sergipano.

Procuradora Martha Figueiredo diz que é inadmissível Sergipe não ter MEPCT
(Foto: Comunicação MPF)

No Brasil existe um Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, criado para atender o compromisso internacional assumido pelo Brasil em 2007, com a ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.

O tratado estabelece, entre outras ações, visitas preventivas regulares a locais de detenção por parte dos órgãos independentes, acompanhadas de relatórios e recomendações para as autoridades, e de um acompanhamento sistemático da implementação e cumprimento destas recomendações.

Diante de tantos casos de superlotação, de privação de água e banho de sol, de falta de itens básicos de higiene, de desassistência à saúde e de relatos de violência física e psicológica, os inspetores nacionais que estiveram em Sergipe fizeram várias recomendações de ações imediatas para as autoridades locais, inclusive para o MPF.

Por exemplo, foi recomendado que o Governo de Sergipe implemente o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, com garantia de remuneração adequada aos seus membros, além de proibição da presença de pessoas ligadas a órgãos da segurança pública ou a outros que possam representar conflito de interesses para sua atuação autônoma.

O MPF em Sergipe disse que desde 2018 dedica esforços para que a União e o Governo do Estado viessem a efetivamente adotar medidas para a implementação de seu MEPCT. A procuradora lembra que as múltiplas diligências empreendidas de forma insistente ao longo dos anos resultaram infrutíferas, uma vez que, até o momento, o Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura ainda não foi implantado pelo Estado.

Em 2021, o Governo chegou a criar o Comitê de Prevenção e Combate à Tortura. De acordo com a lei sergipana, o mecanismo seria composto por três membros, os “peritos”. Eles seriam escolhidos dentre candidatos com notório conhecimento, ilibada reputação, atuação e experiência na área. Devido à falta de apoio administrativo do Estado, o mandato dos membros do Comitê pode chegar ao fim em novembro deste ano com grande risco de não conseguirem concluir os trabalhos de seleção dos membros do Mecanismo por meio de um edital para apresentação de candidaturas.


Sejuc informa estar sempre pronta para atender encaminhamentos do MPF

A Mangue Jornalismo procurou a Secretaria de Estado da Justiça e de Defesa do Consumidor (Sejuc), que é responsável, entre outras atividades, pela “administração do Sistema Penitenciário e da Segurança Prisional”, para comentar sobre a ação do MPF.

Em nota, o órgão estadual informou que: “A Secretaria de Estado da Justiça e de Defesa do Consumidor (Sejuc) está sempre pronta para atender os encaminhamentos do Ministério Público Federal e demais instituições, bem como sempre está à disposição para atender às demandas encaminhadas pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), no sentido de garantir as condições dignas, saúde e segurança dos internos, além de não medir esforços a fim de aprimorar o sistema prisional sergipano”.

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