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Ditadura espionou Assembleia Nacional dos Chefes Indígenas realizada em Sergipe. Coronel do Exército foi flagrado na reunião com equipamentos de espionagem

CRISTIANO NAVARRO, da Mangue Jornalismo
(@waltervialactea)

Afetados por grandes empreendimentos e por forte concentração de terra, da caatinga ao litoral, as demandas dos povos indígenas no Nordeste foram reprimidas durante a Ditadura Militar (1964 – 1985) em um contexto de prisões, assassinatos, tortura, racismo, perseguição e apagamento das línguas, das religiões, da memória coletiva e da herança cultural.

Registro do Cimi da Assembleia Nacional dos Chefes Indígenas realizada em Sergipe

No entanto, mesmo sob uma situação marcada pela fome e vulnerabilidade, a segunda metade da década de 1970 é apontada por antropólogos e historiadores como uma virada de chave na insurgência dos povos indígenas da região na recuperação da identidade e, sobretudo, de seus territórios tradicionais.

Assim como em outros estados do Brasil, em Sergipe, a criação das primeiras organizações de representação indígena e o apoio da Igreja Católica se somaram a outras lutas no campo, impulsionando o povo Xokó a retomar com grande impulso suas terras originárias.

Em janeiro deste ano, com base no relatório final da Comissão Estadual da Verdade (CEV/SE), de 2020, a Mangue Jornalismo trouxe detalhes sobre a luta Xokó e as ações de juízes e militares em defesa dos interesses de políticos e latifundiários, especialmente ligados à família Britto, na reportagem: “Luta pela terra no Baixo São Francisco que foi alvo da ditadura e das elites de Sergipe. Religiosos, leigos e os Xokó foram monitorados, presos e espancados”.LEIA AQUI.

A partir de setembro de 1978, depois de diálogos com outros povos do Nordeste e o apoio de parte da Igreja Católica, os Xokó passaram a reocupar estrategicamente a Ilha de São Pedro, no município de Porto da Folha. O conflito se deu nas terras que se encontravam em posse da família Britto, dentro das cercas da Fazenda Caiçara, na Ilha de São Pedro, sob o domínio do prefeito do município de Propriá, Antonio Guimarães de Britto (ARENA).

Em apoio à luta pela reconquista da terra Xokó, entre 11 e 14 de outubro de 1978, a Ilha de São Pedro recebeu a XIII Assembleia Nacional de Chefes Indígenas (ACI). Durante quatro dias, 51 lideranças de 17 povos de diferentes regiões reuniram-se embaixo de árvores da retomada para debater ações conjuntas por seus direitos.

Como mostram documentos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a reunião foi toda espionada pelos militares do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), que viam ali um foco de subversão.

Esta foi a primeira ACI realizada no Nordeste e recebeu apoio do Cimi e do bispo que representou a diocese local, Dom José Brandão. Como convidados, estiveram presentes a Fundação Nacional do Índio (Funai), trabalhadores ligados ao Sindicato Rural, a Sociedade Sergipana de Defesa dos Direitos Humanos, Movimento Feminino pela Anistia, a Associação dos Agrônomos de Sergipe, entre outras organizações sociais.

Já como penetra não-convidado, esteve no local durante toda a assembleia o coronel do Exército lotado no Serviço de Informação do Ministério do Interior, Hélcio Gomes de Souza. Logo no início do encontro, o militar foi flagrado pelos líderes indígenas com equipamento de espionagem eletrônica que enviava informações para um carro do exército de placa AO – 0844 estacionado no município de Pão de Açúcar/AL.

Considerada ilegal pela Ditadura, a XIII ACI contou com a participação dos Truká (Pernambuco), Kaimbé e Pataxó (Bahia), Tupinikim e Guarani (Espírito Santo), Kaiowá e Guarani (Mato Grosso do Sul), Maxakali (Minas Gerais), Tukano (Amazonas), Kaiabi, Tapirapé, Xavante, Bakairi, Irantxe, Rikbaktsa e Nambikwara (Mato Grosso). Agentes da Ditadura ligados à Funai proibiram a participação dos Xukuru Kariri (Alagoas), Tuxá (Bahia) e Kambiwá (Pernambuco).

Documentos e matérias em jornais indicam que os militares espionaram uma Assembleia Nacional do movimento indígena realizada em Sergipe, em 1979 (Recorte do Jornal Porantim/1979)

Transmitido reclamações

As atas da reunião registram que, por entenderem que não tinham nada para esconder, os líderes decidiram por fingir que não sabiam de nada e deixar que a transmissão fosse feita para que suas reivindicações fossem levadas adiante para as autoridades.

Os aparelhos militares gravaram e transmitiram as denúncias feitas pelos indígenas contra as grandes companhias instaladas na região e, sobretudo, as reclamações pelo reconhecimento de suas terras tradicionais.

Nas transcrições das falas feitas pela organização da ACI, os participantes evidenciaram de forma unânime a insatisfação com as violências e falta de assistência do Estado em relação à população indígena em todo o país. “O índio tá morrendo e a Funai não tá sabendo? É doença, é tiro. Não tá sabendo. A Funai diz que é dona do índio”, criticou Xinuxi do povo Irantxe. LEIA AQUI OS RELATOS DOS INDÍGENAS.

Já o prefeito de Propriá, que se declarava dono da terra, afirmou ao jornal Porantim, do Cimi, que o encontro seria irrelevante para o conflito na região. “Já ganhamos o caso na primeira liminar e sei que ganharemos a sentença definitiva. Não acredito que uma Assembleia de índios poderá comover a Justiça: eu creio nela”, afirmou Britto.

Na carta final do encontro realizado no sertão sergipano, os Xokó registraram como suas reivindicações: “em primeiro lugar a terra, para trabalhar, a qual nos pertence”, “casa para as famílias que vivem debaixo de pés de paus com crianças ainda lactantes”, “alimentos” e “remédios”. LEIA AQUI.

Durante o encerramento da XIII ACI, Pedrito Santana, líder da retomada Xokó, agradeceu a presença dos outros povos e firmou seu compromisso com o movimento indígena: “Eu luto! Eu vou ao Maranhão, ao final do Brasil, ao Nordeste todo e onde estiverem sofrendo o que estamos sofrendo aqui. Nós vamos dar uma assistência melhor, porque vocês vieram aqui pra dar assistência melhor pra gente. Porque os irmãos que saíram do Mato Grosso, com uma viagem tão grande como essa, é pra deixar boas novas. Isso que eu tinha que dizer aos irmãos”.

Ainda no encerramento, o coronel Hélcio chegou a pedir a palavra para reclamar e amenizar as críticas feitas pelos indígenas à atuação da Funai e da Ditadura. “O problema primeiro do índio, nós sabemos, é a terra. Então este problema da terra, o que eu pediria aos senhores é que ajudassem a Funai a resolver, o Ministro do Interior a resolver, o presidente da República a resolver. Não é só reclamando. Não será só falando mal. Não será só chorando e dizendo – eu estou infeliz – que ajuda”, rebateu o militar.

O documento final da Comissão Nacional da Verdade de 2014 indicou que pelo menos 8.350 indígenas, de dez etnias investigadas, foram mortos por ação e omissão do Estado brasileiro durante a Ditadura Militar. No entanto, a própria comissão reconhece que esses estudos ficaram inconclusos, considerando que existem hoje 305 povos indígenas no país.


O que foram as Assembleias de Chefes Indígenas

Na primeira metade da década de 1970, o Brasil viu o surgimento do movimento indígena com as primeiras reuniões, articulações e representação de caráter nacional e interétnico. Diante da forte pressão dos ataques da Ditadura, lideranças de diversos povos e de diferentes regiões passaram a reconhecer a necessidade de união contra as ameaças em comum sobre seus territórios e sua sobrevivência.

Assim, em 1974, no município de Diamantino/MT, com o apoio do Cimi, nasceu a Assembleia dos Chefes Indígenas (ACI). Essas assembleias, que se seguiram até 1980, romperam com a proibição de reuniões e contatos intertribais estabelecida pela lei de tutela do Estado e impulsionaram o nascimento de outras organizações indígenas de caráter nacional e regional.

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