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Ditadura e empreiteiras agiram juntas na destruição de manguezais em Aracaju. Camaradagem público-privada persiste na supressão do ecossistema

ANA PAULA ROCHA, da Mangue Jornalismo

No bairro Coroa do Meio, zona sul de Aracaju, há um local que representa de forma precisa a situação dos manguezais da capital sergipana: o Museu do Mangue, um lugar destruído e esquecido. Ainda que o início da destruição dessas áreas remonte ao começo da ocupação portuguesa, foi mais precisamente a partir de 1968, quarto ano da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), que Aracaju e as cidades adjacentes passaram por um intenso processo de urbanização que avançou sobre esse ecossistema costeiro.

As relações entre a ditadura civil-militar de 1964 e as empreiteiras em Sergipe têm fortes reflexos no ataque ao meio ambiente e representaram a principal causa de supressão de florestas de mangue em Aracaju. Quase todos os conjuntos habitacionais na capital finalizados entre 1968 e 1985 foram construídos sobre manguezais aterrados, a exemplo dos localizados nos bairros Santos Dumont e Bugio.

O Brasil é o segundo país com a maior área de manguezal do mundo, atrás apenas da Indonésia. O Atlas dos Manguezais do Brasil, publicado em 2018 após dez anos de pesquisas, estima que 25% de todos os manguezais brasileiros tenham sido extintos ao longo do século XX.

Os manguezais são um dos principais sequestradores e estocadores de carbono do planeta e têm papel fundamental na proteção da costa contra o avanço do nível do mar, além de serem berçários para milhares de espécies animais, de caranguejos a peixes-bois. Entre 70% a 80% de todos os peixes, moluscos e crustáceos consumidos por humanos utilizam-se dos manguezais em alguma fase de seu desenvolvimento, apontou o Projeto de Mapeamento Anual da Cobertura e Uso do Solo no Brasil (MapBiomas), divulgado em 2017.

Febre de aterramentos

O estado de Sergipe tem pouco mais de 250 km² (por volta de 1,1% de todo o território) cobertos por manguezais. O poder público estadual e o municipal aracajuano trataram esse ecossistema de duas maneiras e em ambos os casos os aterramentos foram onipresentes.

Primeiro, as florestas de mangue foram vistas como lugar de sujeira e doenças. Depois, em consonância com a lógica imobiliária, passaram a ser ativos financeiros interessantes para especulação, como registrado pela historiadora Fernanda Cordeiro de Almeida em trabalho pioneiro sobre a destruição dos manguezais em Aracaju.

Um caso relevante desse tipo de visão ocorreu durante o governo de Leandro Maciel (1955-1959). O Morro do Bonfim, no atual bairro de São José, foi removido para uso no aterramento do manguezal que havia naquela área da capital, ampliando as possibilidades de território para construção de casas para a alta sociedade.

O fato é que perdura ainda hoje a lógica oposta a interesses socioambientais adotada nas relações entre o poder público e empresas privadas da construção civil em Sergipe e Aracaju durante o regime militar. Em abril, a Mangue Jornalismo denunciou os impactos negativos e a inação da prefeitura na construção do loteamento Villaredo Aruana, na Zona de Expansão de Aracaju, cujas áreas de manguezal às margens do rio Santa Maria estão sendo suprimidas pela empresa Laredo Urbanizadora.

Antídoto para a crise financeira, veneno para o meio ambiente

Com o golpe militar de 1964, mudanças econômicas foram realizadas em Sergipe para tentar aplacar a crise financeira que o estado enfrentava naquela década. No mesmo ano do golpe, houve a transferência da Petrobrás e afiliadas para o estado.

Nos anos seguintes, destaque para a fundação da Universidade Federal de Sergipe, em 1968, e o estabelecimento do Distrito Industrial de Aracaju (D.I.A), em 1971. Essas medidas atraíram para a capital moradores do interior sergipano bem como de outros estados, impulsionando a busca por moradia e aumentando o preço dos aluguéis.

Antônio Carlos Campos, professor do Departamento de Geografia da UFS e doutor pela Universidade de Barcelona com tese sobre o desenvolvimento urbano de Aracaju, explica em artigo que, na década de 1970, o centro da cidade já não comportava a parcela burguesa da população – histórica habitante daquela que era, então, uma região residencial nobre.

Havia, portanto, a necessidade de ofertar moradias acessíveis para uma classe trabalhadora em franco crescimento e também opções de residência a uma classe média alta que já não se identificava com um centro aracajuano de grande atividade comercial.

Para atender a essas demandas de moradia, foram feitos inúmeros aterramentos de manguezais para a construção, de um lado, de habitações supostamente sociais e, de outro, de novos bairros para as classes A e B. Essas obras desconsideraram normas ambientais de preservação existentes na época e expulsaram das áreas de interesse residentes pobres e ribeirinhos que dependiam do manguezal para sobreviver.

Metáfora para os manguezais aracajuanos

A construção do Centro de Educação Ambiental Manoel Bomfim Ribeiro, mais conhecido como Museu do Mangue, começou em 2010 como parte do Projeto de Urbanização do Assentamento Subnormal da Coroa do Meio. Apenas em 2013 ele foi oficialmente inaugurado após reformas para reparar danos de um incêndio ocorrido em junho de 2011. Contudo, o espaço foi interditado em 2015 devido à violência no entorno e casos recorrentes de depredação.

A escolha da Coroa do Meio para receber um espaço que se pretendia de preservação, lazer e educação ambiental caminha em direção contrária à história do estabelecimento do bairro como zona urbanizada. Em abril de 1976, o ditador Ernesto Geisel assinou dois decretos por solicitação do então prefeito de Aracaju, João Alves Filho. Os documentos autorizaram a “cessão, sob o regime de aforamento” de um total de 18,5 km² para estabelecimento da Coroa do Meio.

Boa parte dessa área era de manguezais que sustentavam pescadores e catadores baseados nos arredores do território há décadas. A expulsão dessas pessoas incluiu episódios de violência por parte da Empresa Municipal de Obras e Urbanização (EMURB), relatados por jornais da época.

O financiamento do bairro concebido por João Alves Filho como modelo para Aracaju veio em grande parte do Banco Nacional de Habitação (BNH), estabelecido pouco após o golpe militar, e da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Jaime Lerner, ex-prefeito de Curitiba por três vezes (inclusive em mandado biônico), esteve à frente da empreitada tocada pelas construtoras Norberto Odebrecht e Queiros Galvão, ambas envolvidas em casos de corrupção investigados pela malfadada Operação Lava Jato.

Conjuntos habitacionais não atenderam população mais pobre

Para tocar a construção de habitações sociais, o regime militar criou a Companhia de Habitação de Sergipe (COHAB/SE) e o Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais da Bahia e Sergipe(INOCOOP/BASE), respectivamente em 1966 e 1967. Ao todo, foram construídos 33 conjuntos habitacionais para populações de baixa renda na capital sergipana no período de 1968 a 1985, quase todas sobre manguezais aterrados.

No mesmo artigo do professor Campos citado anteriormente, ele escreve que as unidades habitacionais se destinavam a famílias com “uma renda mensal inferior a 05 e 10 salários mínimos [da época], respectivamente, que passam a ter acesso à moradia sendo subvencionadas pelo Estado através dos contratos de pagamentos da casa própria em 20 ou 25 anos, com juros e correção monetária definida pelo sistema financeiro da habitação”. Contudo, a taxa de inflação anual na década de 1970 chegou a quase 40% e o salário mínimo caiu 50% em valores reais durante o período.

Esses conjuntos, portanto, não contemplaram a população mais desassistida, que ocupou áreas de manguezal com construções sobre aterramentos irregulares ou permaneceu nos terrenos que já ocupavam antes do golpe, caso da área que era conhecida como “Favela do Mercado”.

Matéria do jornal “A Cruzada” sobre a Favela do Mercado, em Aracaju, publicada em março de 1963. Fonte: Reprodução/site Jornais de Sergipe-UFS.

Entre a expansão sobre manguezais para construção de bairros de classe média e alta e a ocupação dessas áreas por populações pobres, perderam todos os aracajuanos. A construção, nos anos 1990, de bairros como o 13 de Julho e Jardins em parcerias público-privada e privada, respectivamente, são provas de que pouco mudou na visão que a administração pública e empreiteiras têm sobre os manguezais.

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Respostas de 3

  1. Para quem não conhece Aracaju e essa relação obscura da Ditadura pós 64 na destruição de Áreas de Preservação Permanentes como os Manguezais de Aracaju, essa matéria esclarece muitas coisas. Muito massa.

  2. No momento atual é por meio da Mangue Jornalismo que venho me atualizando sobre temas de extrema importância sócio política. É preciso mobilizar movimentos sociais, pessoas, Instituições que prezam pela defesa da natureza, do manguezal, das comunidades tradicionais e de todas as formas de vida.
    Parabéns por mais uma matéria de excelência.

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