Em Sergipe, três comunidades indígenas lutam para existir. O povo Xokó, na Ilha de São Pedro e no Povoado Caiçara, no município de Porto da Folha, é o mais conhecido. Também se empenham contra o apagamento de suas comunidades os povos Kaxagó e Fulkaxó, ambos localizados em Pacatuba, a quase 100 km de Aracaju, no litoral Norte do estado.
No mês de julho deste ano, a Mangue Jornalismo publicou uma reportagem revelando a longa batalha dos Fulkaxó pelo retorno e conquista da terra em Sergipe. Após 18 anos, essa comunidade indígena foi a segunda a recuperar parte de seu território tradicional. Veja aqui a reportagem completa da Mangue.
No caso dos Fulkaxó, o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE) teve que processar a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) para que adquirissem as terras e criassem o território indígena reivindicado. Assim, a Funai comprou a Fazenda Soloncy Moura junto ao Governo de Sergipe e a propriedade de 45 hectares foi transferida para os Fulkaxó no formato de Reserva Indígena.
Entretanto, a luta dessa comunidade tradicional, como a das demais, não se resume em ter a posse da terra. É preciso ter garantias de infraestrutura mínima, como acesso à água potável, energia elétrica, saúde e escola. Os Fulkaxó, por exemplo, ainda não conseguiram ocupar, de fato, a área. Têm a terra, mas pedem uma escola para crianças e adolescentes e também para atender jovens e adultos.
Novamente, o MPF/SE foi chamado para agir e realizou reunião, no mês de abril deste ano, com as lideranças dos Fulkaxó e com a Secretaria de Estado da Educação e da Cultura (Seduc) para tratar da implementação do ensino na reserva indígena. Na ocasião, representantes da secretaria pediram prazo de 30 a 45 dias para dar retorno à comunidade. Porém, isso não ocorreu até hoje.
Demivalda Vieira Cruz, a Yetçamym, estava nessa reunião. Ela lamenta que, até o momento, a Seduc não deu um retorno oficial sobre como ficará a oferta de educação regular na comunidade, o que a preocupa, sobretudo, em relação ao próximo ano letivo.
“Temos de 30 a 40 crianças e adolescentes e não queremos que eles tenham atraso no ensino. Durante a reunião, também apresentamos os números de vários adultos que não são alfabetizados. Até hoje nós não tivemos nenhum retorno”, informa Yetçamym. Ela tentou fazer uma parceria com a Prefeitura de Neópolis para o ensino de crianças e adolescentes, mas não deu certo.
“Tentamos colocar três adolescentes e cinco crianças para estudar em uma escola em Neópolis. Porém, vinha um transporte pequeno e ainda deixavam elas no meio da estrada para que pegassem um ônibus. Achamos perigoso deixar nossas crianças na estrada. Além disso, os adolescentes tinham ensino integral e as crianças só estudavam pela manhã. Elas terminam as aulas e ficavam esperando sozinhas. Por medo, decidimos mandá-las para estudar em Alagoas”, lamenta Yetçamym.
A Mangue Jornalismo entrou em contato com a Seduc. Por meio de nota, a secretaria informou que “todos os estudos de viabilidade para a implantação de uma unidade da rede estadual na comunidade indígena Fulkaxó estão em análise pela Assessoria de Planejamento da Seduc”. Segundo a nota, a Seduc está em contato com o MPF solicitando mais informações para que os estudos sejam concluídos e, dessa forma, possa dar prosseguimento para a implantação da unidade escolar.
A Seduc afirma trabalhar para garantir uma educação de qualidade às crianças e jovens da comunidade em todo o território. Em Sergipe, a diversidade cultural no ambiente educacional, para a secretaria, é levada a sério, a exemplo do que ocorre na comunidade Xokó. Segundo a nota, desde o início da década de 1990, a Seduc trabalha em conjunto com o povo Xokó por meio da Escola Indígena Estadual Dom José Brandão de Castro, sob jurisdição da Diretoria Regional de Educação 07.
Esta unidade da rede estadual conta atualmente com 107 alunos distribuídos em ensino fundamental, ensino médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA), gestão e corpo docente formados em sua maioria por indígenas.
No ano de 2023, segundo a Seduc, a Coordenação de Educação do Campo e Diversidade (Cecad) já executou ações que reforçam o compromisso com a equidade, como a formação inicial das equipes pedagógicas do Departamento de Educação (DED/Seduc) para inclusão de ações voltadas à equidade em todos os seus planos de ação; acompanhamento pedagógico com visitas presenciais às escolas do campo, indígena e quilombolas, além das reuniões pedagógicas realizadas por meio das plataformas virtuais; e o intercâmbio cultural no território indígena Xokó com estudantes da rede estadual”.
O MPF/SE informou que “até o momento, não recebeu resposta da Secretaria de Estado da Educação (Seduc) sobre as demandas apresentadas pelo povo indígena Fulkaxó relacionadas a melhorias na educação da comunidade”.
Para a procuradora da República, Gisele Bleggi, a pauta prioritária é a contratação de professores indígenas e o fortalecimento do ensino da cultura, tradições e língua materna do povo Fulkaxó, inclusive com melhoria no material didático. Na reunião, representantes dos Fulkaxó destacaram que as melhorias no ensino podem ser implementadas ainda antes da construção do espaço físico destinado para tanto.
Entretanto, a procuradora Gisele Bleggi destaca que a construção da escola dentro da reserva, a exemplo da que já existe nos Xokó, é imprescindível, assim como a implantação de turmas de ensino médio. “A oferta de educação na própria comunidade evita entraves logísticos e de segurança no deslocamento dos jovens para a cidade, além de prevenir o êxodo da comunidade em busca de acesso à educação”, destacou.
A procuradora destaca ainda que a Secretaria de Estado da Educação se mostra morosa nas respostas às demandas das comunidades tradicionais e que foi necessário reiterar os questionamentos sobre as demandas dos Fulkaxó, que permanecem sem devolutivas, com prazo de resposta até 21/10”, informou o MPF em nota.
O prazo final para que a secretaria informasse sobre as ações na Reserva Indígina dos Fulkaxó terminou na última segunda-feira, 21 de outubro. Até o momento, o MPF informou que a secretaria não deu resposta. O órgão federal irá agendar uma reunião com os representantes da Seduc.
Mais de 10% dos indígenas em Sergipe não são alfabetizados
A população indígena em Sergipe, de acordo com o Censo 2022, do IBGE, ultrapassa 4.700 pessoas. No estado, o maior número de indígenas está localizado em Aracaju (1.944), seguido por Nossa Senhora do Socorro (476), Porto da Folha (432) e São Cristóvão (252).
Em Sergipe, 70 dos 75 municípios contavam com pelo menos um morador indígena. Somente os municípios de São Miguel do Aleixo, Pedra Mole, General Maynard, Cedro de São João e Amparo do São Francisco não contaram com essa declaração.
Esse baixo número representa um processo de colonização e apagamento dos indígenas em Sergipe, pois, estima-se que por volta de 1530 havia mais de 40 mil indígenas. Sobre isso, leia a reportagem da Mangue Jornalismo de 19 de abril de 2023. Lá, mostrou-se que Sergipe é uma terra indígena lavada em sangue e esquecimento. Veja na matéria como a elite local apagou da história as resistências e os genocídios dos povos originários.
Na análise dos dados do IBGE por idade, a maior concentração está entre pessoas de 35 a 49 anos (437), seguido por 30 a 34 anos (389) e 40 a 44 anos (383). Um dos principais números divulgados diz respeito à alfabetização de pessoas indígenas. Em Sergipe, esse índice foi de 88,19%, o maior da região Nordeste. Apesar disso, representa dizer que 11,8% da população indígena no Estado, ou 472 pessoas, não são alfabetizadas e esse percentual não teve alterações significativas em comparação com 2010. Nacionalmente, o pior índice de alfabetização do país está no Maranhão, com 27,44%.
Aracaju é o município com o maior número geral de pessoas indígenas não alfabetizadas (132), seguido por Nossa Senhora do Socorro (37), Porto da Folha (36) e São Cristóvão (29). Em termos percentuais, 66,67% da população indígena em Arauá e Feira Nova são analfabetas. Esse elevado percentual é seguido por Itabi (60%), Itabaianinha (50%), Moita Bonita (50%) e Pirambu (50%).
Do total de pessoas indígenas não alfabetizadas (472), 38,5% têm 65 anos ou mais. Apesar disso, 8,6% das pessoas indígenas não alfabetizadas em Sergipe têm entre 15 e 34 anos. Vale ressaltar que, como a coleta de dados do Censo, do IBGE, foi realizada em 2022, o território dos Fulkaxó ainda não tinha sido reconhecido.
Itamar Peregrino é da etnia Kariri. Ele é do alto Sertão sergipano e se considera um indígena desaldeado. Itamar trabalha como educador social, é percussionista e artesão.
Em relação aos dados ligados à alfabetização, ele diz que “ela é ligada à língua portuguesa, que é a língua do branco. A grade curricular, apesar de ter avançado, ainda apresenta dificuldades em termos professores indígenas ensinando os seus próprios cursos. Nosso ensino é somente de branco. Nossa educação tem uma dificuldade porque o nosso jeito de educar é diferente. Utilizamos um formato mais circular em sala de aula, por exemplo”, aponta. Dessa forma, Itamar defende que exista o ensinamento da língua portuguesa, mas de forma contextualizada, ou seja, com uma mescla com a língua nativa.
Demivalda também reiterou que falta um reconhecimento da cultura indígena na grade curricular, pelo Ministério da Educação. “A cultura indígena precisa ter reconhecimento, no que se refere aos nossos saberes e de práticas culturais para dentro da escola. Além disso, precisamos levar nossa língua mãe para sala de aula e necessitamos de professores concursados que sejam indígenas”.
Denizia Kawany Fulkaxó é indígena, professora, especialista em desenvolvimento infanto-juvenil, bacharela em Direito, com especialização em Direito Penal e Processual Penal e mestra em História – Educação Africana, Povos Indígenas e Culturas Negras.
Para ela, “é da máxima urgência um maior entendimento e investimento do Estado sobre a educação escolar indígena, que precisa ter uma atenção especial e atender a diversidade dos povos. Necessário se faz um melhor olhar sobre essas questões de forma a atuar em políticas públicas que possam atenuar o problema”. Dessa forma, ela aponta que, ao resolver problemas territoriais dos povos originários brasileiros, outras demandas ligadas à saúde, educação e geração de renda são agregadas.
Território Xokó tem escola, mas enfrenta dificuldades
O Colégio Indígena Estadual Dom José Brandão de Castro é a única unidade escolar na Terra Indígena Xokó e conta com quase 100 alunos. A escola fica localizada na Ilha de São Pedro, em Porto da Folha.
Ianara Apolônio Rosa Lima é Xokó e professora na escola. Para ela, “embora tenham iniciativas garantidas por lei, na prática ainda enfrentamos muitos desafios para oferecer aos nossos alunos um ensino condizente com sua realidade cultural. O colégio indígena dos Xokó se esforça para dar aos seus discentes um ensino voltado para suas especificações, enquanto professora estou sempre buscando caminhos para fortalecer nossa história e cultura. A escola é um lugar que utilizamos como espaço para preservar nossas memórias. Então a escola ocupa esse lugar de acolher e proteger nossas tradições”, explica.
Dessa forma, Ianara destaca que os projetos desenvolvidos na escola são feitos a partir da história indígena, suas tradições e cultura. “Sem dúvidas, é importante que outras comunidades tenham também esse direito de poder viver como de fato são, e que isso seja respeitado, inclusive, na forma de ensinar dos professores e aprender dos alunos”, comenta.
Ianara Apolônio explicou também algumas dificuldades presentes na comunidade. “A primeira é em relação ao espaço que muitas comunidades nem tem, aqui a realidade é diferente, mas sabemos que não ter uma escola é a realidade para muitas comunidades indígenas. As dificuldades aqui são em relação aos professores que ainda são em maioria não indígenas e aos conteúdos. Se o professor quiser aplicar um conteúdo sobre a história e cultura do nosso povo tem que buscar, pois não existe algo disponibilizado pelo Estado”, lamenta. Dessa forma, ela sugere que exista no local um espaço de memória equipado com sala de cinema e livros didáticos para o desenvolvimento das aulas.
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