CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
@josecristiangoes
Pouca gente sabe que depois da experiência exitosa de alfabetização de 300 adultos em 40 horas no município de Angicos, no Rio Grande do Norte, ainda no início dos anos 1960, era o estado de Sergipe que iria receber esse método de educação organizado e desenvolvido pelo professor Paulo Freire e sua equipe.
A ideia do hoje patrono da educação brasileira e sergipana era livrar o menor estado do país do analfabetismo, o que tornaria Sergipe um modelo, junto com uma parte de municípios do Rio de Janeiro.
Também em Sergipe, além de enfrentar o grave problema do analfabetismo, Paulo Freire esteve envolvido no processo de criação da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Freire era entusiasta da “universidade do povo”, o que contrariava profundamente as elites das faculdades existentes.
O trabalho de alfabetização de adultos e o nascimento da UFS em um modelo popular defendido por Paulo Freire só não deu certo por conta do golpe empresarial-militar de abril de 1964 e a ditadura que se seguiu. Paulo e sua equipe foram perseguidos, presos, torturados e exilados. Não houve combate ao analfabetismo, e a UFS nasceu em 1967 longe das aspirações populares.
Assim como tantos casos na ditadura militar que ainda estão invisíveis em Sergipe, a passagem de Paulo Freire pelo estado também foi jogada na escuridão.
Em 1963, quase 67% dos viventes no estado eram analfabetos e, mais de 60 anos depois, o IBGE revela que 241 mil pessoas em Sergipe sequer sabem desenhar o próprio nome, o que coloca o estado como o 7º maior percentual do Brasil de pessoas com mais de 15 anos que não sabe ler e escrever. Leia reportagem da Mangue AQUI.
MEB e escolas radiofônicas
No início dos anos 1960, o Brasil começava a implantar reformas de base. No campo da Educação, o Governo João Goulart buscava focar no combate ao analfabetismo e na ampliação do acesso ao ensino superior com a federalização das faculdades.
Na época, o governador de Sergipe, João de Seixas Dória, era aliado ao presidente João Goulart e favoreceu a implantação no estado da política do Movimento de Educação de Base (MEB), com forte participação da igreja Católica, em uma ação que já vinha sendo realizada desde o final dos anos 1950.
“Influenciadas pela experiência colombiana, as Arquidioceses de Natal e Aracaju criaram sistemas educativos através do rádio. Em Sergipe, o sistema era completo, contando com centro de execução, centro de treinamento de pessoal, estação transmissora e uma rede de escolas radiofônicas”, revela o pesquisador Wagner Teixeira. As escolas radiofônicas da igreja foram fundamentais para o MEB. Uma das emissoras principais era a Rádio Cultura, de Aracaju.
Uma das figuras mais importantes no Brasil no processo de educação popular com a utilização das escolas radiofônicas foi o arcebispo de Aracaju Dom José Vicente Távora. Ele será peça-chave para a vinda de Paulo Freire até Sergipe.
Em razão do sucesso dos trabalhos de educação e cultura de Paulo Freire nas periferias do Recife/PE e, depois, da revolução em alfabetizar 300 pessoas em Angicos/RN, o professor foi chamado, inserindo-se no MEB e desenvolvendo o Plano Nacional de Alfabetização (PNA). Depois de Angicos/RN, os trabalhos de Paulo Freire e equipe iriam ocorrer em Sergipe e em alguns municípios do Rio de Janeiro.
Agenda de Paulo Freire em Sergipe
Silvaney Silva Santos, professor da rede estadual e do município de Santo Amaro das Brotas, há 40 km de Aracaju, descobriu que Paulo Freire esteve na cidade em 1963, onde fez uma palestra no “II Seminário de Reforma Universitária”.
O pesquisador informa que a ida de Paulo Freire até Santo Amaro das Brotas era parte de uma agenda de educação em Sergipe, que incluía o método de alfabetização de adultos e o reforço para criação de uma universidade pública engajada no desenvolvimento social do estado.
Sobre a educação de adultos, “já se tinha uma estrutura montada, com planejamento, mais de 200 educadores, Igreja Católica, sindicatos rurais e até o Governo do Estado envolvidos”, conta o professor Silvaney.
A Gazeta de Sergipe, em 9 de junho de 1963, noticiou a vinda de Paulo Freire e equipe até Aracaju, deslocamento que teve apoio direto do governador Seixas Dória. O jornal informa que o primeiro município onde o método de alfabetização seria implantado em Sergipe seria Riachuelo, 30 km de Aracaju.
“Tomando conhecimento das condições demográficas e de alfabetização de Riachuelo, o Professor Paulo Freire disse que em quarenta e cinco dias deixará o município sem um analfabeto”, Gazeta de Sergipe (09/06/63).
Assim que chegou a Aracaju, no dia 8, Paulo Freire seguiu para a Faculdade Católica de Filosofia, “onde fez sua demonstração do seu método de alfabetização em trinta e seis horas, impressionando vivamente os professores, alunos daquela Escola Superior, bem como um grande número de pessoas que compareceram ao local”, relata a Gazeta de Sergipe (09/06/63).
No dia seguinte, logo pela manhã, Paulo Freire foi até a cidade de Santo Amaro das Brotas, onde participou do II Seminário de Reforma Universitária de Sergipe. Na parte da tarde, o mestre reuniu uma grande quantidade de trabalhadores e lideranças populares na sede da União dos Operários Ferroviários de Sergipe, localizada no bairro Siqueira Campos.
Ainda no dia 9, pela noite, Paulo Freire fez uma conferência patrocinada pela Secretaria de Educação, Cultura e Saúde do Estado, para quase mil pessoas no auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe. Lá ele falou sobre “Sociedade Brasileira em Trânsito”.
Toda a agenda de Paulo Freire e equipe em Sergipe ocorreu com participação direta do governador Seixas Dória, do ministro da Educação Júlio Sambaqui e do arcebispo Dom José Vicente Távora.
Seleção dos educadores para o combate ao analfabetismo
Depois dessas atividades, a equipe de educadores pernambucanos que acompanhava Paulo Freire começou a preparar professores e estudantes para desenvolver o método de alfabetização em Sergipe. Começaram oficialmente os trabalhos em julho de 1963 em razão de um convênio com o Governo do Estado para “alfabetizar cerca de vinte mil sergipanos, conforme acordo inicial”, segundo anunciou o Diário de Pernambuco, de 2 de julho de 1963.
No segundo semestre daquele ano, vários estudantes universitários e professores passaram a realizar pesquisas para saber sobre condições de moradia, instrução, número de familiares, o que Paulo Freire chamou de “situação sociológica”. Além de Aracaju, passaram a ser visitados os municípios de Riachuelo, Itabaiana, Estância, Lagarto e Simão Dias. Esse mesmo trabalho estava sempre realizado no interior do Rio de Janeiro.
No dia 26 de janeiro de 1964, a Gazeta de Sergipe noticiava que foi inaugurado o “Curso de Alfabetizadores Método Paulo Freire” e o evento precursor ocorreu no auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe e “cerca de mil pessoas estiveram presentes”.
“O projeto em Sergipe contaria com a atuação de jovens estudantes universitários como, Jugurta Barreto de Lima, Jackson Sá Figueiredo, Zelita Rodrigues Corrêa, Marilza Dantas Maynard, Rosa Helena Conceição dentre outros. Para essa seleção foram realizadas avaliações através de provas escritas seguidas de entrevistas para só assim iniciarem os projetos educacionais”, conta a professora e pesquisadora Ane Rose de Jesus Santos Maciel.
A aula inaugural foi proferida por Luiz Rabêlo Leite, secretário da educação do Estado no governo de Seixas Dória. O evento contou com o coordenador da Campanha Nacional de Alfabetização em Sergipe, Paulo Pacheco, que mostrou a importância da aplicação do Método para combater o subdesenvolvimento do Estado de Sergipe e romper com as velhas estruturas e privilégios.
“Toda a cidade de Aracaju será coberta essa semana […] pela pesquisa, vez que o serviço foi distribuído em vinte grandes equipes, com orientação da Equipe Central. Os pesquisadores fornecerão à Campanha dados concretos sobre o analfabetismo em nossa capital, possibilitando ainda a descoberta das condições de vida dos moradores da cidade, sobretudo das classes médias e pobres – objetos de futuros debates nos Círculos de Cultura” (Gazeta de Sergipe, 18/03/64). Entretanto, o próprio jornal publica uma charge intitulada de “Piada do Dia”, que ironizava o projeto de Paulo Freire.
Golpe de abril de 1964 e o fim do MEB
O pesquisador Wagner Teixeira diz que o PNA em Sergipe teve uma coordenação local e contou com estudantes do Rio Grande do Norte ligados a Ação Popular (AP) e que haviam participado da experiência de Angicos/RN. A AP era formada por militantes estudantis da Juventude Universitária Católica (JUC) e de outras agremiações da Ação Católica Brasileira. Entre eles estavam Marcos Guerra, José Ribamar de Aguiar e Carlos Neves Cavalcanti. Ele e vários outros membros foram presos logo no dia 1º de abril de 1964.
“A partir do golpe de 1º de abril de 1964, todos os movimentos educacionais foram afetados. A CNA e o MCP, vinculados à Secretaria de Educação, foram prontamente extintos. Seus envolvidos foram presos e processados. Participantes do Método de Paulo Freire perderam a liberdade, e aproximadamente 20 professores responderam inquéritos, junto ao serviço militar”, escreve a professora Ane Rose.
Wagner Teixeira lembra que “logo no dia 1º de abril de 1964 todas as atividades do PNA, tanto no Nordeste como no Sudeste, foram paralisadas. O ministro Júlio Sambaqui e toda a sua equipe, inclusive Paulo Freire, foram afastados do Ministério da Educação. O PNA acabou antes mesmo de ser colocado em prática. No Rio, ele parou no treinamento dos cerca de mil monitores, e em Sergipe foi paralisado na fase de seleção dos mesmos”.
Em 14 de abril de 1964, a ditadura militar baixou o Decreto 53.886, assinado pelo presidente interino Ranieri Mazzilli, colocando fim ao Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura. “A euforia das massas alfabetizadas e politizadas incomodou intensamente a elite brasileira da época, que logo providenciou uma interrupção desses projetos educacionais e culturais que tanto ‘ameaçavam’ a ordem do país”, afirma Ane Rose.
“Com a substituição do secretário de educação, Luiz Rabêlo Leite, por José Carlos de Sousa, foi revogada a portaria que instituiu os Movimentos de Cultura Popular, as portarias do Conselho Curador e membro de diversos setores do Movimento de Cultura Popular, houve o fechamento dos Centros Populares de Cultura em todo o Estado, inclusive os mantidos pelos Diretórios Acadêmicos das Faculdades de Direito, Filosofia e Ciências Econômicas e o da União Estadual dos Estudantes, além do Movimento de Cultura Popular de Propriá” (Gazeta de Sergipe, 10/04/64).
Prisões, detenções e inquérito no 28ºBC
O pesquisador Wagner Teixeira conseguiu reconstituir os passos dos membros do grupo de Paulo Freire que estava em Aracaju. Havia rumores que o Exército estava assassinando pessoas ligadas a Paulo Freire e os estudantes resolveram deixar a capital sergipana. Pararam em Caruaru/PE para deixar Ana Maria Ferraz em casa de seus pais. Foram presos e acusados de roubar carros na cidade pernambucana porque um dos veículos com o qual estavam não tinha placa, já que as viaturas, isto é, uma delas estava sem placa.
Depois de Caruru, os presos foram enviados para Recife, onde Paulo Freire também já estava preso. “Foi dessa forma que o PNA em Sergipe acabou”, afirmou Wagner Teixeira. Em Sergipe, em junho 1964, Francisco Rodrigues da Silveira, comandante do 28º Batalhão de Caçadores (Exército) em Aracaju, abriu um Inquérito Policial Militar (Portaria Reservada nº 11 S/2 enviada ao 1º tenente José Sabino dos Santos) contra estudantes, professores e apoiadores do MEB em Sergipe. O motivo alegado para o inquérito foi que “elementos ligados à ideologia comunista vinham praticando atos que atentavam contra a Segurança Nacional”.
Várias mulheres e homens foram levados para o Quartel do Exército, no bairro 18 do Forte, em Aracaju, e lá foram interrogados por horas. Segundo relatório da Comissão Estadual da Verdade de Sergipe, foram ouvidos:
– Joaquim Accioly da Silva, jornalista paraense que residia em Aracaju, um dos responsáveis pelo setor de sindicalização do MEB;
– José Firmino Dias, natural e residente de Itaporanga D’Ajuda/SE, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura;
– Maria José de Oliveira, residente de Aracaju, professora da Escola Agrotécnica Benjamin Constant, locutora de programas do MEB;
– Gildete Santos Lisboa, natural de Maruim/SE e residente em Aracaju, professora do MEB e anteriormente das escolas radiofônicas;
– José Alves Neto, natural de Pinhão/SE e residente de Aracaju, funcionário da equipe de sindicalização rural do MEB;
– Ailton Duran, natural e residente em Estância/SE, supervisor do MEB;
– Manoel Messias Góis, natural de Ribeirópolis/SE e morador de Aracaju, supervisor de sindicalismo rural do MEB;
– José Aragão Moura, natural de Nossa Senhora das Dores/SE e morador de Aracaju, locutor do noticiário das aulas radiofônicas;
– Padre João de Deus Góis, natural de Simão Dias/ SE e residente em Aracaju, que fechou as escolas radiofônicas de Rosário do Catete/SE por conta do conteúdo das aulas, tendo este feito queixa direta a Dom Távora (após ouvir uma aula sobre hectares de terra);
– Ariosvaldo Figueiredo Santos, natural de Malhador e morador de Aracaju, responsável pela Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA) em Sergipe;
– Coronel Max Ribeiro, natural de Maruim/SE e morador de Aracaju, militar reformado e diretor substituto da Rádio Cultura de Sergipe;
– Jorge de Oliveira Netto, natural e residente em Aracaju, engenheiro civil;
– Dom José Vicente Távora, Arcebispo de Aracaju e presidente nacional do MEB, este o último interrogado sobre o MEB.
XXX
1 – O professor Silvaney Silva Santos publica um texto inédito sobre a passagem de Paulo Freire em Sergipe na sexta-feira, dia 21, na Revista Paulo Freire, produzida pela Mangue Jornalismo e editada pelo sindicato das professoras(es) de Sergipe, o Sintese. Na próxima semana a revista poderá ser baixada gratuitamente no site do Sintese e da Mangue.
2 – O pesquisador Wagner Teixeira tem sua tese publicada no endereço: https://app.uff.br/riuff;/handle/1/27623
3 – A pesquisadora Ane Rose de Jesus Santos Maciel tem seu trabalho publicado no endereço: https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/10347/8/7.pdf
Respostas de 2
Parabéns equipe da Mangue por essa excelente matéria.
Maravilhosa Pesquisa sobre o movimento “De Pés no Chão Tambem se Aprende a Ler”.
Existe um relato da visita de João Goulart para conhecer este método de alfabetização de adultos em Angico e a grata surpresa foi o discurso preparado por um aluno que escreveu uma folha de caderno, este cidadão estava no Projeto há poucos meses.