Comunidades tradicionais e manguezais de Sergipe enfrentam ameaças devido à exploração de petróleo, especulação imobiliária, carcinicultura, poluição dos rios e à contaminação dos mariscos.
O estado de Sergipe tem pouco mais de 250 km² (por volta de 1,1% de todo o território) cobertos por manguezais. Esse ecossistema é de extrema importância para a biodiversidade e para as comunidades que vivem em áreas costeiras.
O mangue abriga uma extensa variedade de espécies marinhas e são verdadeiros berços da vida, proporcionando espaço de subsistência para as comunidades tradicionais e de reprodução e desenvolvimento de peixes, crustáceos e moluscos. Além disso, os também servem de refúgio para mamíferos, aves, répteis e insetos, formando um habitat único e vital para a manutenção da vida silvestre.
“Dói no peito, rio cercado. Dói no peito, não ter pescado”. Em um coro coletivo, na manhã da sexta-feira (26), Dia Mundial de Proteção aos Manguezais, as guardiãs do mangue, representantes de diversas comunidades pesqueiras e ativistas sociais de Sergipe marcharam pelas ruas do Centro de Aracaju.
O ato “O cheiro do mangue é o cheiro da minha pele”, organizado pelo Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe em defesa dos manguezais e dos territórios de vida de homens e mulheres que vivem da pesca artesanal e da agricultura familiar, denunciou as constantes violências sofridas em territórios ancestrais de vida e trabalho.
As principais reivindicações foram relacionadas à saúde das marisqueiras, os impactos causados pelo avanço da cadeia de petróleo e gás e de outros setores da mineração, da carcinicultura e dos grandes empreendimentos imobiliários em áreas de manguezais.
Dona Gilza dos Santos, marisqueira de berço, é natural de Laranjeiras mas mudou-se para Aracaju ainda pequena. “Desde os meus 7 anos o meu pai e minha mãe levava eu e meus irmãos para catar mariscos. Eu fui criada pelo mangue e assim também criei meus dois filhos.”
Gilza descreve que a função dela e das outras mulheres marisqueiras é fazer pelo mangue o que o governo não faz. “A gente faz parte da conservação do meio ambiente, nós que cuidamos do mangue. Quando a gente vê um vaso plástico ou qualquer outra coisa no mangue, pegamos, colocamos no saco, trazemos para jogar onde os carros do lixo possam passar e pegar. Coisa que o governo não faz.”
Para Gilza e as outras marisqueiras, sua relação com o mangue é intrínseca, logo o que acontece com o Mangue as afeta diretamente.
Saúde do Mangue
A degradação ambiental, principalmente em áreas costeiras e a falta de políticas de preservação eficazes são os principais problemas que afligem as comunidades pesqueiras. Para José Raimundo, presidente da Associação Remanescente de Quilombo dos Luziense e secretário de pesca de Santa Luzia do Itaim, a poluição dos rios tem maltratado os berçários aquáticos. De acordo com ele, a cadeia de crescimento dos peixes e dos mariscos não estão seguindo seu rumo natural.
“Sem o peixe pequeno, o grande não sobrevive. O mesmo acontece com as fêmeas, elas precisam dos machos e vise versa, mas o rio está cada vez mais poluído e os nossos mariscos estão morrendo” explica Raimundo.
Para José, os pescadores e marisqueiras não são os únicos afetados com a contaminação dos mangues. De acordo com ele, os mariscos poluídos estão chegando na mesa de todos os sergipanos.
“As pessoas não sabem se os mariscos que eles estão comendo estão poluídos, elas sentam nas mesas dos restaurantes e não sabem de onde o marisco vem. Mas essa nossa luta, nosso movimento impacta os sergipanos e turistas que frequentam os bares da orla, porque o catado poluído está sendo colocado no prato deles para eles comerem.”
Com sessenta e quatro anos e mais de três décadas de envolvimento no movimento de defesa das comunidades pesqueiras, José expressa desânimo quanto à atenção governamental para com os pescadores.
Ele faz uma analogia bíblica, dizendo que, para continuar vivendo da pesca, será necessário um milagre semelhante ao descrito na história de São Pedro: “Quando São Pedro estava desacreditado após uma noite de tentativas frustradas, foi preciso Jesus Cristo chegar e mandar lançar a rede novamente. Depois de tanta luta nossa, só falta agora Jesus Cristo nos ajudar a salvar nossos manguezais e nosso território.”
Saúde laboral das Marisqueiras
Para além dos problemas envolvendo os conflitos em prol da proteção do ecossistema de manguezal, as comunidades tradicionais que vivem da pesca artesanal enfrentam a falta de assistência social e as condições de trabalho precárias no exercício de sua profissão.
De acordo Gilza, a mariscagem e a pesca artesanal, são trabalhos exaustivos com muitos riscos e perigos, que resultam em agravos à saúde das comunidades que a exercem.
A marisqueira relata diversos problemas de saúde relacionados ao trabalho no catado de mariscos, como ferimentos causados por quedas sob os galhos do manguezal, mordida de cobra, picada de abelha, corte das ostras.
Ela ainda alerta para as doenças que atingem principalmente a saúde das mulheres em decorrência do trabalho na lama quente. “Nós trabalhamos sentadas na lama, então pegamos bactéria e quando vai ver tá com o útero ferido.”
Para Gilza, a desassistência do sistema de saúde pública contribui para o agravamento das doenças que afligem as mulheres do mangue. “Quando marcamos as consultas, levam no mínimo dois ou três meses para fazer algum tratamento. Por isso, já perdemos muitas companheiras de câncer, porque não temos condições de pagar um plano médico. Então quando descobrimos algum problema de saúde, a doença já avançou e não temos mais como cuidar.”
Nice Vieira dos Santos, coordenadora do Fórum de Povos e Comandante Tradicionais e do Movimento de Marisqueira de Sergipe acredita que as doenças que afligem as marisqueiras são em decorrência da contaminação das águas.
“A poluição causada pelo petróleo, pelos esgotos que os donos de condomínio jogam nos rios e no mangue se misturam com a lama quente e prejudica a gente, porque a saúde íntima feminina é muito sensível, então causa coceira, corrimento porque ficamos o dia todo sentadas na lama catando sururu”.
A marisqueira também denuncia as negligências médicas ao buscar atendimento. “Quando vão nos examinar, os médicos negam que nossos problemas de saúde vem da mariscagem, da lama. Quando reclamamos das fortes dores nos braços ou nas pernas devido ao trabalho repetitivo para tirar as ostras e o maçunim, eles também desacreditam.Aí passam uma dipirona e mandam a gente para casa.”
Para Caroline Coelho, pesquisadora do Programa de Educação Ambiental com Comunidades Costeiras (PEAC) e assessora no projeto de organização e fortalecimento sócio-político das marisqueiras de Sergipe, os problemas envolvendo a saúde das mulheres do mangue vão além dos problemas físicos.
“Os problemas que envolvem a saúde das marisqueiras são amplos, porque a ligação que elas têm com os manguezais, vão além da forma de sustento, da alimentação. É também uma relação de identidade e de cultura.”
Segundo a pesquisadora, com a devastação e invasão dos mangues pela especulação imobiliária e carcinicultura, e com a diminuição e contaminação dos mariscos, as marisqueiras também são afetadas. Isso resulta em impactos significativos na sua saúde física e mental. “Muitas lideranças estão vivendo ameaças de vida, e essas ameaças têm limitado ainda mais o espaço delas e com os riscos de vida, ninguém vive em paz”, lamenta Caroline.
Comunidades pesqueiras vivem sob incerteza do futuro dos manguezais
Moradora do bairro industrial, Gilza Santos também reclama que devido o avanço desordenado da urbanização e da especulação imobiliária, garantir o sustento de sua casa a partir da atividade que moldou toda a sua vida tem sido um desafio.
“Na minha comunidade não existe mais mangue, porque fizeram casas dentro dos manguezais, então para catar o marisco e sustentar minha família eu saio daqui e vou para as comunidades das companheiras, em Muculanduba, Estância, Porto do Mato”, reclama Gilza
A marisqueira Graziela dos Passos teme que o mesmo aconteça com a sua comunidade. Ela é moradora do Mosqueiro e denuncia que a prefeitura de Aracaju iniciou a construção de uma via entremeada de um sistema de dutos de esgoto no em seu bairro, na Zona Sul da capital, que pode colocar em risco a saúde dos mariscos.
De acordo Graziela, os dutos direcionam ao Vaza-Barris as tubulações de esgoto dos bairros Santa Maria, Aruana e Robalo.
“Esses dutos vão trazer esgoto para nosso Rio… Eles alegam que é esgoto tratado, mas sabemos que não existe rede de tratamento de esgoto aqui em Aracaju… Nós vimos o que aconteceu com a Praia do Bairro industrial, antigamente as pessoas tinham que ir cedo para conseguir um lugar para tomar banho, mas hoje em dia ninguém pode sequer tomar banho lá.” alerta Graziela.
Para Graziela, esse é o terceiro embate que ela e as comunidades pesqueiras enfrentam juntamente com o Vaza-Barris. De acordo com ela, entre 2013 e 2014 um tanque de carcinicultura de São Cristóvão estourou e causou uma mortalidade muito grande de mariscos, principalmente caranguejos.
Ela também recorda as manchas de óleo que atingiram 156 localidades dos nove estados do Nordeste em 2019. Na época, o juiz federal Fábio Cordeiro de Lima determinou que o governo federal e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) fizessem barreiras de proteção em cinco rios de Sergipe, dentre eles o Vaza-Barris. Mas segundo Graziella, mesmo a rede de proteção, o óleo vazou e os pescadores e marisqueiras ficaram impedidos de vender seus pescados.
Degradação histórica
Em Aracaju, a história da urbanização confunde-se com a devastação dos mangues. De acordo com dados obtidos em 2013 pela Administração Estadual do Meio Ambiente (ADEMA), a capital sergipana, detinha de uma faixa de 11% do seu território ocupada por manguezais.
Segundo o artigo “Degradação dos manguezais em Aracaju/SE (Brasil): impactos socioeconômicos na atividade de catador do caranguejo-uçá” da Revista Brasileira de Meio Ambiente, publicado em 2019, durante o processo de urbanização, especialmente na década de 1960, o ecossistema litorâneo sofreu uma significativa degradação causada por desmatamentos, acúmulo de lixo, despejo de esgotos, especulação imobiliária e práticas de pesca predatória.
Ainda de acordo com a revista, nos anos 1980, reportagens jornalísticas apontam que no bairro Coroa do Meio, por exemplo, 40% do mangue já havia sido afetado pela ocupação desordenada com palafitas e lançamento de resíduos. Outros bairros, como Lamarão, Bugio, Santos Dumont, Porto Dantas, Augusto Franco, Farolândia e Jardins, também enfrentavam problemas semelhantes.
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