Não existem notícias em Sergipe de inquéritos policiais sobre mortes praticadas por agentes da segurança pública que tenham passado pelo Ministério Público e foram julgados no Tribunal de Justiça. Essa omissão histórica que indica impunidade pode sinalizar apoio do Estado às ações que resultam em letalidade policial. Talvez isso explique o porquê de Sergipe ser o 3º estado brasileiro onde a polícia mais mata, sempre alegando “confronto”.
Entretanto, o dia de hoje, 26 de novembro de 2024, entra para a história por se iniciar um raro julgamento. Três policiais rodoviários federais estarão no bancos dos réus e serão julgados pela tortura e morte de Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, ocorridas em uma abordagem no dia 25 de maio de 2022, em Umbaúba, 100 km de Aracaju. O caso ganhou repercussão internacional. Imagens de Genivaldo sendo morto inalando gás numa viatura da PRF ganharam o mundo. Ele deixou esposa e um filho de oito anos.
Maria Fabiana dos Santos, mulher de Genivaldo, acredita que “a justiça será feita, apesar de não devolver mais a vida dele, não é? Nenhum ser humano merece morrer daquele jeito e quem matou não pode ficar livre, como se nada tivesse ocorrido, precisa pagar. Foi muito cruel o que fizeram com ele e com toda família. Perdemos o marido, o pai, o filho, o irmão, um ser humano que não fazia mal a ninguém”.
Apesar de não envolver o Ministério Público Estadual e nem o Tribunal de Justiça, esse julgamento poderia servir de freio aos altíssimos números de execuções praticadas pela polícia em Sergipe (810 pessoas foram mortas por policiais militares e civis no estado entre 2020 a 2023). A tortura e o homicídio triplamente qualificado de Genivaldo de Jesus são de alçada do MPF/SE e da Justiça Federal porque os policiais implicados são agentes federais.
O júri popular será realizado no fórum da cidade de Estância e a previsão é que dure entre seis e oito dias corridos. No banco dos réus estarão os hoje ex-policiais rodoviários federais Paulo Rodolpho Lima Nascimento, Kléber Nascimento Freitas e William de Barros Noia. O julgamento começará às 8 horas, será presidido pelo juiz federal Rafael Soares Souza, da 7ª Vara Federal em Sergipe, e terá um esquema específico de acompanhamento e segurança.
O Conselho de Sentença do júri será formado por sete pessoas. Na acusação estarão cinco procuradores da República. Três são uma unidade nacional do MPF: Alfredo Carlos Gonzaga Falcão Júnior e Polireda Madaly Bezerra de Medeiros, de Pernambuco, e Henrique Hahn Martins de Menezes, de Santa Catarina. Eles atuam em casos de grande complexidade. De Sergipe, estarão no júri os procuradores Rômulo Almeida, titular do processo, e Eunice Dantas.
Além da raridade de policiais serem julgados pelo assassinato em serviço, esse será o primeiro realizado na Justiça Federal em Sergipe em 21 anos. O último julgamento deste tipo ocorreu em outubro de 2003, quando um homem foi condenado por tentativa de homicídio contra um médico-perito do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), após ter tido um benefício negado pela instituição.
Relembre o caso Genivaldo de Jesus
Uma quarta-feira, 25 de maio, três policiais rodoviários federais faziam patrulhamento de rotina na BR-101, no município de Umbaúba, Sul de Sergipe. Por volta das 11 horas, eles mandaram que um homem sem capacete numa motocicleta encostasse o veículo. O homem era Genivaldo de Jesus Santos. Ele parou, desceu da moto e recebeu a ordem dos policiais para que colocasse as mãos na cabeça e abrisse as pernas para uma revista.
Wallison de Jesus, sobrinho de Genivaldo, estava bem próximo e informou aos policiais que o tio tinha problemas de saúde mental e tomava remédio controlado. Os agentes da PRF não levaram em conta essas informações e Wallison começou a gravar com um aparelho celular a abordagem. Outras pessoas também começaram a registrar a cena.
Nas imagens, os policiais pedem novamente que Genivaldo coloque as mãos na cabeça e abra as pernas. Na revista, os agentes teriam encontrado uma cartela de um medicamento controlado no bolso da vítima, a Quetiapina 25mg. Genivaldo fazia tratamento para esquizofrenia há quase 20 anos, condição que tinha gerado a sua aposentadoria por incapacidade.
Diante da ordem de colocar a mão na cabeça e abrir as pernas, Genivaldo teria ficado nervoso e só perguntava porque estava sendo abordado daquele jeito. No Boletim de Ocorrência, os policiais alegaram que a vítima ficava passando a mão pela cintura e pelos bolsos, que não obedecia a ordem e, por isso, precisaram contê-lo. E essa contenção ocorreu com uso de spray de pimenta e gás lacrimogêneo.
Os vídeos do sobrinho e de populares mostram que os policiais partem contra Genivaldo, derrubaram e tentam imobilizá-lo com braços e pernas, inclusive com joelhos no pescoço e tórax. Também há relatos de que ele foi alvo de xingamentos, rasteira e chutes.
No chão, ele é algemado e tem os pés amarrados. Na sequência, é levado para o camburão da PRF, jogado no porta-malas junto com gás lacrimogêneo. Genivaldo se bate sem condições de respirar enquanto os policiais tentam fechar a porta, pressionam, mas não conseguem porque as pernas da vítima ficam para fora do veículo. Os gritos da vítima e os gritos de populares (“vai matar o cara”) não sensibilizaram os policiais para encerrar a tortura, ao contrário, há relatos que deboche dos agentes aos pedidos de parar.
Na polícia, os agentes informaram que Genivaldo teria tido um “mal súbito” entre o local da abordagem e a delegacia. Percebendo o “mal súbito”, os policiais o levaram para o Hospital José Nailson Moura, ainda em Umbaúba. Por volta das 13 horas foi constatado que Genivaldo estava morto. O laudo do Instituto Médico-Legal de Sergipe informou que ele morreu por asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda.
“Por todas as circunstâncias, diante dos delitos de desobediência e resistência, após ter sido empregado legitimamente o uso diferenciado da força, tem-se por ocorrida uma fatalidade, desvinculada da ação policial legítima”, afirmaram os policiais em boletim na delegacia.
Pela noite do mesmo dia, a PRF informou que havia aberto um procedimento para apurar o caso. No dia seguinte, logo após o sepultamento de Genivaldo de Jesus e a grande repercussão, a Polícia Rodoviária noticiou o afastamento dos agentes envolvidos.
Depois de afastados, os agentes Kleber Nascimento, Paulo Rodolpho e William Noia foram presos e levados ao Presídio Militar, em Aracaju. Hoje, eles serão levados ao Fórum da cidade de Estância para o julgamento. Se condenados, podem pegar penas que chegam aos 40 anos de prisão.
Demissão, indenização e uso de câmaras corporais
Em julho do ano passado, a PRF decidiu pela demissão dos três agentes envolvidos na morte de Genivaldo de Jesus. O processo administrativo e disciplinar, comandado pela Corregedoria-Geral da Polícia Rodoviária Federal, teve 13 mil páginas e foi encaminhado para o Ministério da Justiça. Além dos três, a PRF sugeriu a suspensão de até 40 dias de outros dois agentes. O ministro da Justiça, Flávio Dino, concordou com as demissões dos agentes.
Em junho deste ano, um dos envolvidos, o agente Kléber Nascimento Freitas moveu um recurso contra a demissão, mas o atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, decidiu manter a penalidade. Em maio deste ano, a Justiça Federal de Sergipe também já tinha negado recurso da defesa dos três ex-policiais rodoviários acusados pela morte de Genivaldo.
Também por decisão da Justiça Federal, a família de Genivaldo deve ser indenizada pela União em mais de R$ 1 milhão por danos morais. O juiz Pedro Esperanza Sudário, que assinou a sentença, escreveu que, nesse tipo de ação, a responsabilidade civil do Estado é objetiva e que a União é responsável pelo dano causado independentemente de intenção ou culpa dos agentes envolvidos. Devem receber indenizações os irmãos, o sobrinho de Genivaldo (que presenciou o assassinato), a mãe e o filho da vítima.
Nas vésperas do julgamento do caso Genivaldo, a PRF informou que está finalizando o processo para sua primeira licitação de câmeras corporais, que só deve ser finalizada no primeiro semestre do próximo ano. Essa ação só está sendo realizada em razão da tortura e do homicídio de Genivaldo por agentes da PRF e do acatamento de recomendação do MPF. Segundo a corporação, em 2023, depois do caso, 200 câmeras corporais doadas pelos Estados Unidos passaram a ser usadas pelos agentes da PRF.
Com informações da Justiça Federal, do Ministério Público Federal e da Polícia Rodoviária Federal