IRACEMA CORSO, especial para Mangue Jornalismo
CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
Uma espuma de puro sal tem invadido as águas do São Francisco, e cada dia com mais força, transformando o rio em mar. Isso altera profundamente a pesca, mata plantações, provoca sede e fome em comunidades de pescadoras e pescadores tradicionais, em especial no município de Brejo Grande, a 110 km de Aracaju.
A salinização das águas do velho Chico é uma prova viva e incontestável da chamada “crise climática”. No caso do Baixo São Francisco, próximo à foz do rio, essa é uma crise que tem causas bem conhecidas e quase todas têm ação humana, do desmatamento à construção de hidroelétricas, da captação irregular à transposição.
A espuma de sal que avança rio adentro tem efeitos mais graves nos povoados Resina, Saramém e Brejão dos Negros, em Brejo Grande, mas também já pode ser sentida em comunidades ribeirinhas de Ilha das Flores, Pacatuba e Neópolis, em Sergipe, e de Piaçabuçu, em Alagoas. Menos água doce descendo, mais água salgada subindo o rio.
“A gente só consegue pescar quando terminar a maré grande. Tem muita mulher, tudo pescadora, passando necessidade. Tem mãe com cinco meninos sem ter como comprar água e dar de comer a eles”, afirmou Maria Aparecida, a tia Cida, presidenta da Associação de Pescadores e Pescadoras Ribeirinhas de Saramém/Resina.
No povoado Serrão, município de Ilha das Flores, a pescadora Zilda Sousa, presidenta da Associação de Mulheres e Homens Pescadores de Nossa Senhora Aparecida, também revela os graves problemas com a salinização do rio. “Todas nós precisamos de água boa, sem sal, sem contaminação, saindo da torneira de casa”, disse ela.
Para o biólogo Leandro Pel, mestre em geografia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), “o aumento da salinidade das águas do rio provoca desequilíbrios ambientais nos ecossistemas, comprometendo a reprodução de algumas espécies de pescados e plantas características da região da foz do rio”.
Avalia o biólogo, também colaborador do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe, que “não existe uma gestão das águas do rio São Francisco que leve em consideração os diversos usos do rio, principalmente o uso feito pelas comunidades ribeirinhas, que tem prejudicado suas atividades de pesca e de plantio”.
Além do sal, as comunidades reclamam que a água potável vendida pela Companhia de Saneamento de Sergipe (Deso) é irregular e, quando chega, tem alta concentração de cloro, quase inviabilizando o consumo. Para completar, carros-pipa também são irregulares e a água transportada por eles não é de boa qualidade.
O Velho Chico cada vez mais fraco
Tia Cida, Zilda e ambientalistas sabem os porquês da água salgada do mar medir forças e subir o rio: trata-se do aumento do nível dos oceanos, mas principalmente das ações humanas que retiram as águas do Velho Chico enfraquecendo seu destino ao mar. Para completar, muitos dos seus 168 afluentes estão assoreados e poluídos.
Pesquisadores do projeto Mapbiomas Caatinga alertam que a Bacia do Rio São Francisco já perdeu 50% do seu espelho natural de água nos últimos 35 anos. O professor Washington Rocha, coordenador do projeto, enumera quatro grandes relações de causa-efeito dessa dramática redução hídrica do Velho Chico.
“Quanto maior o desmatamento para ampliação agrícola, maior a perda de água do rio. Além disso, foram construídas no São Francisco grandes represas para geração de energia elétrica. Criar essas represas logo em um região de condições climáticas nada amenas expõe a massa de agua à evapotranspiração”, informa o professor em entrevista ao EcoSenado.
Em seus 2,8 mil quilômetros, o São Francisco é represado por oito hidrelétricas, sendo a primeira em Sobradinho e a última em Xingó. Na derradeira, seis turbinas controlam a vazão de 3 mil m³/s (metros cúbicos por segundo) de água, fazendo com que ele siga seu curso até ser encontrado pelo oceano na divisa entre Sergipe e Alagoas. “Ou seja, não se produz água na entrada, há retenções e evapotranspiração”, completa Rocha.
Uma terceira causa apontada pelo professor é a ausência de uma política que faça o balanço entre o uso intensivo da água em enormes projetos de agricultura irrigada e a real capacidade do rio São Francisco para suportar tamanhas retiradas.
“Além disso, tem a transposição que retira água do seu curso levando para outras bacias. A transposição precedia um processo de ampla revitalização do São Francisco, mas isso não ocorreu. As obras de transposição avançaram e as de revitalização, não”, lembra o coordenador do Mapbiomas Caatinga.
Para o biólogo Leandro Pel, o “rio São Francisco é um exemplo de como o modelo de desenvolvimento capitalista tem produzido, para sua reprodução, a destruição da natureza e a exploração do trabalho de povos e comunidades tradicionais, expropriados dos bens naturais que garantiam a sua reprodução social”.
Graves problemas sociais e solidariedade feminista
O resultado de um rio que desce sem força em direção ao oceano é o avanço catastrófico das águas do mar sobre ele. Quem mais sente isso são as mulheres. Tia Cida, que coordena a luta de 172 pescadoras em sua associação, denuncia que várias delas estão sem o Bolsa Família e passam necessidades, seja pela falta de água potável de qualidade seja por falta de comida. Nessa conta, estão 130 crianças.
“Não tem coisa mais triste do que acordar com fome, subir num barco para pescar, levando quase o dia inteiro e pescar quase nada. A comida não dá para todo mundo. Só sabe disso quem já viveu”, conta a presidenta da associação.
Ela denuncia que abre a torneira e “muitas vezes a água sai amarela porque a maré levanta a areia e a lama do fundo do rio. Não tem como lavar roupa com essa água porque a roupa fica manchada, e nem como tomar banho com água salgada”.
Na luta contra a fome e a sede, as mulheres buscam apoio de organizações não governamentais, sindicatos, movimentos sociais. Em março deste ano, foi organizada na região uma atividade de solidariedade feminista chamada “Nem bruxas nem fadas: mulheres unidas resgatando e construindo histórias”. Nela, a parteira Chica do Mops lembrou que as dificuldades devem fortalecer a luta por mudanças.
Zilda Sousa, de Ilha das Flores, disse que quanto mais a mulher mora em localidades distantes, mais necessita de apoio e de se organizar. “A mulher que sofre sozinha, que sofre de fome com seus filhos, enfrenta humilhações, ela precisa se juntar com outras mulheres em associação para voltar a acreditar que existe uma saída “, afirmou Zilda.
Carcinicultura e alto índice de vulnerabilidade socioambiental
O argumento real de crise climática, inclusive com o aumento do nível do mar, encontra outras ações bem humanas para a tragédia que vem ocorrendo na foz do rio São Francisco. Além dos grandes empreendimentos de geração de energia, também avança o negócio da carcinicultura (criação de camarões em viveiros).
“Os empreendimentos de energia e carcinicultura têm ditado o ritmo da degradação ambiental do Velho Chico e do agravamento da situação de vulnerabilidade socioambiental das comunidades tradicionais espalhadas nas margens do rio”, avalia o biólogo Leandro Pel.
O fato é que os carcinicultores comemoram a salinização das águas e isso “tem provocado a invasão predatória dos manguezais na foz do rio, colaborando para a salinização das águas, pela adição de sal nas águas dos viveiros de camarão, que depois são descartadas no estuário”, denuncia o colaborador do Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe.
O quadro é de vulnerabilidade na Bacia do Velho Chico e isso foi provado por pesquisadores que criaram um Índice de Vulnerabilidade Socioambiental (Sevi). Segundo a Agência Fapesp, foram combinados dados ambientais, físicos e socioeconômicos e os valores classificados em: muito alto; alto; moderado; baixo e muito baixo.
De acordo com o estudo, 53% da Bacia do Rio São Francisco apresentam vulnerabilidade “alta” e “muito alta”. O resultado do estudo apontou que no São Francisco os fatores de maior vulnerabilidade envolvem densidade populacional, degradação do solo, uso da terra e indicadores de clima, como temperatura e chuvas.
A Bacia do rio São Francisco apresentou maior área de exposição “alta” e “muita alta” do que a do Parnaíba – 62,8% e 30,7% respectivamente – e também de sensibilidade. Contribuíram para esses resultados a densidade populacional, a degradação e desertificação dos solos e o número de dias sem chuva, o que incide diretamente no risco de incêndios florestais durante a estação seca.
Esse quadro pode ser agravado em decorrência das mudanças climáticas. Pesquisas anteriores utilizando modelos globais mostraram que a vazão do São Francisco deverá diminuir em 46% por causa do aquecimento global. Há ainda previsão de aumento da frequência de eventos climáticos extremos, atingindo especialmente a população que vive em situação de pobreza nessas áreas.
É preciso virar esse jogo: participação da comunidade ribeirinha
O biólogo Leandro Pel não tem dúvida de que a gestão das águas do São Francisco é determinada por interesses do setor energético, que passam “por cima da qualidade de vida da população dependente do rio para sua sobrevivência”, disse o biólogo.
Ele defende que é preciso virar esse jogo, ou seja, “cobrar que a fiscalização seja garantida e seja produzida uma legislação que de fato garanta a voz das comunidades ribeirinhas tradicionais no processo de gestão das águas do Velho Chico”.
Para Leandro, é preciso trazer para o centro dos debates da gestão das águas o povo ribeirinho, quilombolas, marisqueiras, rizicultores e pescadores artesanais que foram ao longo dos anos desenvolvendo suas artes laborais somadas a outras práticas coletivas, todas responsáveis pela preservação dos ecossistemas do São Francisco.
Sobre a salinização e a melhoria da qualidade ambiental do rio São Francisco, o ambientalista acredita que uma das saídas passa pela diminuição do número de atividades econômicas no curso do rio e pela redefinição dos usos prioritários de suas águas. “Ter a geração de energia como principal uso de suas águas contribui para a sua destruição”, acredita Leandro Pel.
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Urbanitários e do Saneamento de Sergipe (Sindisan), Sílvio de Sá, prevê piora na situação do Baixo São Francisco se a Deso for privatizada, como quer o Governo do Estado. “Esta é uma região muito pobre e será duramente afetada caso se concretize a venda da Deso. Precisamos dialogar com vereadores e prefeitos da região sobre isso”, defende Sá.
O sindicalista acredita que o problema da água salinizada na região deve ser resolvido pela Deso em breve. “A Estação de Tratamento de Água (ETA) de Brejo Grande faz a captação com alto teor de salinidade a depender da maré e da vazão do São Francisco. A Deso tem projeto de fazer uma ETA nova e ampliada em Ilha das Flores, com uma adutora para distribuir água às comunidades das margens do rio”.
Trinta instituições buscam fazer fiscalização da Bacia do São Francisco
No último mês de julho, foi iniciada a 7ª Etapa da Fiscalização Preventiva Integrada da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco em Sergipe (FPI/SE). São ações que envolvem 200 profissionais de 30 instituições e que vão percorrer 14 municípios com ligação direta com o rio. A coordenação é realizada pelos Ministérios Públicos (MPSE, MPF e MPT) e pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF).
O presidente do CBHSF, Maciel Oliveira, disse que se trabalha com planejamento a fim de alcançar o objetivo de proteger o meio ambiente natural e cultural da Bacia do Rio São Francisco e melhorar a qualidade de vida das pessoas da região.
O promotor de Justiça Sandro Costa, em entrevista para a Comunicação da FPI/SE, disse que a fiscalização não tem finalidade repressiva, mas sim “promover ações de educação ambiental e instruir as pessoas para a proteção do nosso meio ambiente, indispensável para as presentes e futuras gerações”.
A procuradora da República Aldirla Albuquerque destacou que “a FPI é uma ação de conscientização, de levar a educação ambiental às pessoas do baixo São Francisco. É o rio mais importante do Nordeste, não podemos viver sem ele. Sem ele, é seca. Sem ele, é não ter vida. Sem ele, é não ter um meio ambiente equilibrado.”
Neste ano, os técnicos da FPI estão divididos em nove equipes: abate, agrotóxicos, aquática, espeleologia, fauna, flora, gestão ambiental, patrimônio cultural e comunidades tradicionais e saneamento. Ao todo são 17 órgãos federais, dez órgãos estaduais e uma instituição da sociedade civil, além de profissionais colaboradores de diversas áreas do conhecimento.
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