CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
Os problemas que envolvem o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Aracaju são tantos e tão graves que a Mangue Jornalismo está fazendo uma série de reportagens sobre o tema. Na semana passada, publicamos a primeira: Aracaju se expande de forma desordenada e atendendo aos interesses das construtoras. Plano Diretor da cidade tem 23 anos e nunca foi revisto.
O plano diretor de uma cidade tem importância vital na organização da vida hoje e especialmente para o futuro, objetivando o bem viver de todos. Sendo assim, é impossível – inclusive é ilegal – fazer o plano e sua revisão sem ampla participação popular.
A questão é que o plano diretor de Aracaju enfrentou, ao longo dos 23 anos sem revisão, prefeitos empenhados em deixar tudo como está. O resultado disso é uma cidade com lei atrasada e cheia de brechas para atender aos interesses imobiliários de grupos econômicos.
A realidade denuncia licenças e incentivos à perversa ação destrutiva empresarial sobre terras, águas, matas, animais e comunidades ancestrais. O reflexo disso é o espalhamento desordenado da cidade, segregação social, ataque violento ao meio ambiente, péssima mobilidade, entre outros problemas.
Nos 23 anos de “atraso”, ocorreram alguns ensaios para revisar o plano diretor da cidade (Lei Complementar 042/2000), mas o prefeito de plantão sempre buscou uma forma de não levar o trabalho adiante, o que sempre favoreceu os grandes grupos econômicos.
Em 2021, em plena pandemia e em dois meses e meio, a Prefeitura de Aracaju fez sete audiências restritivas e com gravíssimos problemas de convocação à metodologia. Por exemplo, a única audiência do bairro Industrial envolveu oito grandes comunidades.
Entre os problemas mais graves está a não consulta prévia, livre e informada às comunidades reconhecidamente protegidas pela Convenção 169 OIT (Quilombo Maloca, as Catadoras de Mangaba e outras). Pior, essas comunidades tradicionais aracajuanas sequer estão identificadas no PDDU.
“O tempo do coronelismo já passou”
“O tempo do coronelismo já passou, não existe mais senzala, a senzala acabou. Agora, a casa grande tem que aceitar o povo preto e pardo desse estado sentar à mesa e decidir juntos. É isso que impõe nosso ordenamento jurídico. Tem que respeitar a legislação”, disse o procurador da República Igor Miranda na abertura de uma audiência sobre o plano diretor de Aracaju na Justiça Federal na última sexta-feira, 25.
Em razão de graves problemas no processo de revisão do plano diretor realizado em 2021 pela Prefeitura de Aracaju, o Ministério Público Federal (MPF), o Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Sergipe (CAU/SE), o Grupo Criliber (Quilombo Maloca) e a Associação Padre Luiz Lemper (Catadores da Mangaba) ingressaram com ação na Justiça Federal.
“A casa grande tem que aceitar os quilombolas, os ribeirinhos, as mangabeiras e suas mangabas que são a alma de Sergipe, e todos que estão nessa ação. Ora, se pretende aprovar um plano diretor que só tem ouvido o grande empreendedor. Isso é retrocesso. Não pode o coronel continuar decidindo tudo. Estamos em 2023 e nosso ordenamento já tem instrumentos adequados para cuidar desse assunto”, reafirmou o procurador da República.
A juíza titular da 1ª Vara Federal de Sergipe, Telma Maria Santos Machado, concedeu liminar impedindo que a Prefeitura de Aracaju encerrasse o processo de revisão sem ter resolvido alguns dos graves problemas e enviasse o projeto para a Câmara de Vereadores.
Em sua decisão, a juíza diz que o plano diretor, sustentado na Lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), “não se legitima se não houver participação direta da população. Essa participação não se limita à criação e organização dos eventos previstos em lei (audiências públicas e debates), mas reclama sua ampla divulgação, a fim de se permitir a efetiva participação da comunidade.”
A Prefeitura de Aracaju recorreu ao Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) contra a decisão da magistrada. Alegou, em resumo, que o município tinha autonomia em tratar do plano diretor da cidade e que a Justiça Federal, nesse processo, não tinha competência porque poderia ferir a separação do poderes. O TRF5 manteve a decisão da juíza.
“A autonomia do Município não é um princípio ilimitado. Não se pode permitir, por exemplo, a violação ao direito fundamental ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado sob o argumento da autonomia municipal. Sob a mesma razão, não se justificaria a lesão ou supressão ao direito fundamental à participação popular através de audiências públicas”, disse a juíza.
Participação? Sete audiências, poucas pessoas e em plena pandemia da Covid
Em seu primeiro artigo, a lei do plano diretor é nítida: “tem por objetivo o direito à cidade, o cumprimento da função social da propriedade, a justa distribuição dos serviços públicos, da infraestrutura e dos equipamentos urbanos, a ordenação do uso e ocupação do solo e da produção do espaço urbano, inclusive das áreas de expansão e a preservação do patrimônio ambiental e cultural”.
Em agosto de 2021, em meio à pandemia da Covid, a prefeitura fez reuniões sobre o plano diretor. Segundo nota, elas ocorreram “em pontos estratégicos, contemplando todas as regiões da capital, com a participação presencial de 1.336 pessoas, que registraram 149 contribuições verbais e 48 por escrito. As audiências foram transmitidas, ainda, pelo canal do YouTube da Prefeitura, com 1.972 acessos, 489 comentários e 23 contribuições”, diz a nota. Na verdade, foram apenas sete realizadas. Em uma, grande parte da comunidade foi impedida de participar.
“Ora, fazer sete reuniões não é consulta à população. Aracaju tem 49 bairros, alguns gigantes, somos mais de 600 mil habitantes e não dá para fazer menos do que 49 audiências. Em alguns, é preciso realizar em vários pontos”, defende José Firmo, ambientalista e coordenador do Fórum em Defesa da Grande Aracaju.
Para Heloísa Diniz, presidenta do CAU/SE, revisar o plano diretor “requer compromisso e interesse político da prefeitura. Ao não fazê-lo, a cidade de Aracaju fica entregue aos interesses de quem consegue acessar de forma mais fácil as portas de negociação da cidade”, avalia Heloísa.
Ter um plano diretor “requer construção de informação técnica, tradução dessa informação para a população e capacidade de diálogo. É colocar numa mesma ‘mesa de debate’ moradores dos diferentes bairros, comerciantes, lideranças sociais, professores, estudantes, empresários, parlamentares, ambientalistas, ou seja, as pessoas que vivem a cidade, com seu interesse, em pé de igualdade para discutir e tomar decisões”, defende Heloísa.
A bióloga Myrna Landim, professora titular aposentada e voluntária da UFS, defende que “é essencial a ampla participação popular no processo de revisão do PDDU (bem como de outras leis e projetos de interesse público) para que eventuais pressões dos ‘donos do poder econômico’ sejam identificadas e refutadas”.
O coordenador do Fórum em Defesa da Grande Aracaju sugere que, além de ter audiências em todos os bairros, era importante fazer por temas e, em alguns casos, com duas rodadas, uma para escutar as sugestões e outra para trazer a sistematização. “Também não podem ser feitas reuniões em um ponto escondido, afastado do bairro. Precisa ser no centro da comunidade, aberta, ampla, dinâmica, transparente”, afirma.
José Firmo sugere que antes das audiência é preciso que a prefeitura faça ampla divulgação local, na comunidade. “Esse trabalho prévio em cada bairro é vital: carro de som, panfleto, faixas, rádio comunitária do bairro, blogs, sites e redes sociais locais. Tem que fazer tudo que puder para levar a população para s audiências”, propõe o ambientalista.
Algumas falas na audiência na Justiça Federal da sexta-feira, 25
“É inadmissível que Aracaju tenha o plano diretor mais atrasado do país. Já era para estarmos discutindo a terceira revisão e ainda não passamos nem na primeira. Aracaju perde muito com isso, poia o PDDU impacta em tudo na vida da população, principalmente em setores básicos como saúde, educação e segurança pública. Essa revisão precisa sair o quanto antes”, vereador Breno Garibalde (União Brasil).
“A cidade deve ser projetada para as pessoas. Todas estas prerrogativas precisam acontecer para dizer que a gente existe. A Justiça sabe e todo mundo sabe a quem interessa a falta de ordenamento da cidade. Esta cidade foi construída desrespeitando quem já vivia aqui há muito tempo: os pescadores”, Dalva Angélica da Graça, da Prainha, no bairro Industrial, e liderança do Movimento Organizado dos Trabalhadores Urbanos (MOTU).
“O processo de revisão do plano diretor não levou em consideração a necessária participação popular. Sabemos bem que Edvaldo Nogueira não valoriza a participação popular e, pior ainda, nega esse direito à população. O plano diretor só deve ser aprovado a partir da ampla escuta e participação da população. A prefeitura não pode simplesmente seguir infringindo a legislação que protege as comunidades tradicionais para privilegiar empresários da especulação imobiliária”, vereadora professora Sônia Meire (PSOL).
“A situação é muito grave em toda a área de expansão: enchentes, ruas sem calçamento, problemas na saúde, educação, falta de creche, transporte. Somos uma região visada por construtoras para implantar condomínios. Tem a questão do meio ambiente que é muito séria, tudo sendo resolvido sem a participação da população. Os condomínios têm lagoas particulares e quando teve a enchente, eles abriram os muros para as águas e alagaram a comunidade”, Leonardo Silva, morador e liderança no povoado Areia Branca.
“Todas as áreas de preservação ambientais de Aracaju, seja manguezais, lagoas, dunas, etc., não têm mapeamento georeferenciado e é por isso que a gente vê o avanço de condomínios. O plano diretor não foi revisado em 2010. Pois bem, de 2010 a 2015 foram morar no Jabotiana cerca de 10 mil pessoas. Hoje, a região alaga, mas isso é o curso natural do rio Poxim, que foi aterrado. O que nós cobramos é o cumprimento da Constituição Federal, que determina que a revisão do plano tem que ser por etapas, tem que ter escuta, leitura e pactuação”, arquiteto Ricardo Mascarello, conselheiro federal do CAU/SE.
“Quando o vereador Emanuel Nascimento era presidente da Câmara, ele assumiu a tarefa de fazer a escuta da população. Foram 42 audiências. Infelizmente, o prefeito Edvaldo retirou o projeto da Câmara. Na gestão João Alves, também foram feitas mais de 30 audiências e na hora de votar, o prefeito retirou o projeto. Em 2021, acompanhei através da vereadora Ângela Melo (PT) e a metodologia de revisão do plano era horrível, um absurdo. O tratamento que se dava às comunidades era colocar a Guarda Municipal. Tinha repressão, medo e conflito”, professora Ana Lúcia, ex-deputada estadual (PT).
“Acompanhei todas as sete audiências em 2021 sobre revisão do plano diretor e todas elas eram antidemocráticas, um processo horrível, com o mesmo material da minuta para todos os bairros, com os mesmo dados, sem observar a situação da comunidade, os problemas de cada lugar. Quem não gosta de diálogo nem com a Câmara nem com a sociedade organizada é o prefeito de Aracaju. Ele tem uma postura autoritária e antidemocrática, não só com o povo, mas com o poder Legislativo”, deputada estadual Linda Brasil (PSOL).
“Essa audiência alimenta a nossa esperança de que a prefeitura vai ter que ouvir, de verdade, o povo de Aracaju na revisão do plano diretor. O fato é que não houve o cumprimento do regramento legal e as comunidades não foram ouvidas. As falhas são grosseiras e tudo está nessa ação. O MPF, as organizações, a comunidade e a Justiça Federal, todas estão chamando o feito à ordem. Aracaju está sendo construída de forma desornada porque estamos há 23 anos sem revisar o plano diretor e isso não está favorecendo a maioria da população”, vereadora Emília Corrêa (Patriotas).
Principais problemas sobre a tentativa de revisão plano diretor
De forma resumida, a Mangue Jornalismo, apresenta alguns dos principais problemas detectados pelas organizações da sociedade civil e MPF/SE sobre os procedimentos da Prefeitura de Aracaju em revisar o plano diretor de Aracaju, no ano de 2021. Esses problemas estão na Ação Civil Pública (0801588-72.2022.4.05.8500) e são objeto de análise na Justiça Federal.
1. Ausência de consultas prévias, livres e informadas às comunidades reconhecidamente protegidas pela Convenção 169 OIT (Comunidade Quilombola Maloca e a Comunidade Catadora de Mangaba) e demais comunidades tradicionais aracajuanas eventualmente existentes, as quais, inclusive, nem foram identificadas no PDDU. O Município de Aracaju, por não garantir a participação da Secretaria de Inclusão Social no processo de formulação do PDDU, deixou de realizar qualquer levantamento sobre as comunidades tradicionais presentes na área; |
2. O mapeamento das áreas de proteção ambiental (APPs, APAS, Áreas de Risco) está desatualizado. Os mapas se contradizem e não houve qualquer mapeamento da fauna e da flora do município; |
3. Os dados técnicos (tabelas, quadros e mapas) que subsidiaram a minuta da lei de revisão do PDDU são datados de 2018 e não foram tornados públicos para análise e sugestões na fase de consulta pública. Ademais, por estarem desatualizados, não levaram em consideração os impactos da COVID-19 para a cidade de Aracaju; |
4. Os cidadãos não conheceram e não tiveram acesso à documentação necessária para participar da formulação do Plano Diretor. O “Diagnóstico” feito pelo Município não estava em linguagem acessível à população, dificultando-lhe o direito à informação e, consequentemente, sua participação efetiva. A Minuta do Plano e seus anexos somente, como estão disponibilizados, não garantem a compreensão da problemática e não permitem a adequada participação para aqueles que não detém o conhecimento específico; |
5. As contribuições feitas pela população no contexto das consultas públicas não foram efetivamente levadas em consideração; |
6. As poucas audiências públicas aconteceram de forma apressada (poucos meses) e num contexto pandêmico, com restrição de número de participantes e em poucos bairros; |
7. Da forma como ocorreu o procedimento, foi ínfima a participação popular nas audiências públicas; |
8. A participação virtual também foi limitada visto que as sugestões só poderiam ser apresentadas em apenas 500 caracteres. Não houve adequação da participação digital para as pessoas com deficiência; |
9. Não foram observadas as regras e a competência no tocante à responsabilidade técnica do planejamento urbano. A coordenação da revisão do Plano Diretor de Aracaju não foi feita por profissional legalmente qualificado; |
10. Houve falta de transparência em toda a tramitação da revisão do PDDU. |
11. Prazo muito curto para análise do material disponibilizado; |
12. Baixo acesso à maioria da população quanto ao meio virtual de consulta pública; |
13. As audiências públicas aconteceram em poucos locais e em formatos presenciais limitados de modo que não proporcionaram uma escuta e debate construtivos; |
14. Prazos curtos entre uma etapa e outra; |
15. “A questão não é apenas quanto à quantidade de audiências e divulgação, é necessário que a população entenda como, de fato, está Aracaju”; |
16. Houve prejuízo na publicidade dos atos administrativos. |
Prefeitura de Aracaju diz que seguiu todos os procedimentos legais
A Prefeitura de Aracaju, por meio da Secretaria Municipal da Infraestrutura, informa que “dedicou parte do ano de 2021 à discussão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU), quando realizou consultas e audiências públicas para estimular o debate sobre a cidade e difundir a relevância do tema para a população”.
Segundo a nota, “apesar de ter seguido todo os procedimentos previstos na legislação para implementar o novo PDDU, a continuidade do processo foi sustada por decisão judicial ajuizada pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Sergipe na 1ª Vara Federal que, em caráter liminar, suspendeu o processo de revisão do Plano Diretor”.
A Procuradoria-Geral de Aracaju representou o município na audiência pública da Justiça Federal. Esteve lá o procurador municipal Jacson Farias. Ele fez uso da fala em defesa da democracia, defendeu o respeito à legislação pelo município por meio da realização das audiências públicas e destacou o desejo e empenho da administração pública, juntamente à sociedade, na construção de uma cidade o mais próxima possível do ideal que contemple os anseios das comunidades e o desenvolvimento saudável da capital sergipana.
O procurador-geral de Aracaju, Sidney Cardoso, espera com otimismo que o Judiciário restabeleça o processo democrático devolvendo ao Executivo a condução do anteprojeto do novo Plano Diretor. “Esse foi o processo de discussão mais democrático da história da cidade com a participação popular na construção do Plano Diretor diante das audiências presenciais e consulta pública online. Foram oito audiências públicas, transmitidas via plataforma de streaming YouTube, com mais de duas mil visualizações”, disse ele.