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“A poesia brasileira costurou uma memória de horror e vergonha que segue nos ameaçando”, diz Marcelo Ferraz

No ano passado, os professores Marcelo Ferraz, Nelson Martinelli Filho e Wiberth Salgueiro organizaram e lançaram o livro “Memorial Poético dos Anos de Chumbo: uma antologia” (Editora Zouk, 2024, com 412 páginas). A obra traz 200 poemas de 90 poetas que escreveram sob o jugo da ditadura militar brasileira. Entre eles, um único sergipano, Mário Jorge Vieira, irmão da professora e ex-deputada estadual, Ana Lúcia.

A livro reúne diversos nomes consagrados da literatura nacional – como João Cabral de Melo Neto, Hilda Hilst, Ferreira Gullar, Murilo Mendes, Augusto de Campos e tantos outros – ao lado de poetas que ficaram relegados pela crítica e pelo mercado editorial após a redemocratização e cujas obras são de dificílimo acesso.

Seja pela censura, pela sensação de sufocamento, pelo exílio, pela prisão ou mesmo pela tortura e assassinato, todos estes poetas foram impactados pelo regime autoritário instaurado no país entre 1964 e 1985. O testemunho presente em seus versos produz diferentes formas de denúncia e elaboração dos traumas pessoais e coletivos decorrentes dos anos de chumbo.

Pelo rigor e amplitude da seleção dos poemas reunidos nesta antologia, a força estética dos textos atualiza o seu sentido no presente, levando a refletir sobre permanências e desafios que o Brasil ainda enfrenta na elaboração das memórias dos anos de chumbo.A Mangue Jornalismo entrevistou Marcelo Ferraz, um dos organizadores da obras. Ele é professor de Teoria Literária na Universidade Federal de Goiás (UFG). Realizou doutoramento na Universidade de São Paulo (USP) e estágio pós-doutoral na Universidade do Porto e na Brown University. É também editor-chefe da revista Texto Poético.

“Os poemas da época da ditadura ganharam uma atualidade impressionante”, Marcelo Ferraz

Mangue Jornalismo (MJ) – O livro é parte do Projeto Memorial Poético dos Anos de Chumbo. O porquê dele? Como começou? Conte sobre o projeto.

Marcelo Ferraz (MF) – Nós idealizamos o projeto no segundo semestre de 2022, em meio à tensão do processo eleitoral, e no dia 09 de janeiro de 2023 (um dia após o festival de horrores do dia 08/01) recebemos a notícia de que o CNPq aprovou o financiamento para a pesquisa. De algum modo a pesquisa responde a esse momento, ao mesmo tempo em que é impactada por ele. Essa produção poética de resistência à ditadura, que para segmentos da crítica ou mesmo para os poetas que escreveram na época, parecia datada, excessivamente amarrada ao contexto histórico, ganhou uma atualidade impressionante

O projeto reúne um grupo grande de pesquisadores e pesquisadoras de várias universidades brasileiras, pessoas que já estudavam a poesia brasileira recente e/ou a ditadura militar. Desde o início atuamos em três frentes simultâneas: realizar um levantamento o mais exaustivo possível de poemas sobre a ditadura e disponibilizar esses textos em um repositório online (o mpac.ufes.br hoje conta com cerca de 1600 poemas); elaborar uma antologia poética com uma seleção de poemas presentes no repositório; e impulsionar o debate crítico e teórico sobre essa produção, realizando eventos, dossiês e publicações, nas quais compartilhamos estudos e leituras sobre poetas do período.

“O livro mostra que a poesia participou ativamente do debate político em nosso país, fazendo isso com uma potência arrebatadora”, Marcelo Ferraz

MJ – A poesia emprega uma dimensão diferente para que a memória sobre os anos de chumbo seja mais eficaz? Ou seja, “a poesia constitui provavelmente o mais abundante e o mais vulnerável espaço simbólico de elaboração mnemônica da ditadura”. Explique.

MF – É um quadro que continua muito visível atualmente: se escreve muita poesia e se lê pouca poesia. As tiragens reduzidíssimas dos livros de poesia contrastam com a profusão de poemas que são regularmente inscritos em festivais, premiações ou exibidos em redes sociais, sem contar os que ficam restritos ao espaço íntimo de quem os produziu. Que maravilha seria se todo mundo que já escreveu um poema em algum momento da vida se tornasse também um leitor habitual de poesia! 

Durante a ditadura essa tendência vinha articulada a diversas nuances. A forma breve e condensada do poema se mostrou muitas vezes a única viável para se expressar artisticamente em situações de violência extrema, como a prisão. Muita gente sentiu essa necessidade de escrever poesia, seja para desabafar, para denunciar a violência, para debochar dos seus algozes, para afirmar a sua humanidade num contexto extremo de indignidade. E essa brevidade do poema ajudava também a driblar a censura. 

É realmente impressionante o volume de poemas que circularam em panfletos, na imprensa solidária à luta pelos direitos humanos, ou que foram enviados em cartas para familiares, compartilhados com companheiros em cópias mimeografadas, tudo isso sem perder de vista os livros de poesia, feitos por poetas de relevo e que também incorporavam sua visão dos anos de chumbo. E uma parte imensa desse repertório cultural, histórico artístico corre risco de desaparecer, pois está em livros há muito tempo esgotados ou nem chegou a ser publicada.

MJ – Como vocês chegaram aos 200 poemas dos 90 poetas que escreveram sob o jugo da ditadura militar brasileira? Que critérios utilizam?

MF – De certa forma, diferentes critérios se sobrepõem e se complementam. Nós queríamos fazer um bom livro de poesia, então, antes de mais nada, selecionamos poemas de que gostamos. Entre os mais de 1500 poemas reunidos durante a pesquisa e publicados no repositório online, queríamos na antologia aqueles que, a nosso ver, poderiam tocar mais fundo nos leitores, pois tocam fundo em nós. A partir daí, definimos que haveria na antologia no máximo cinco poemas de um mesmo autor ou autora. 

Quando optamos por organizar a antologia em seções, com grandes núcleos temáticos/expressivos (humor/sátira, medo, luta, tortura, morte, metalinguagem e memória), julgamos importante não haver grande discrepância no número de poemas em cada uma delas, e isso também influenciou na seleção. Também quisemos abarcar a diversidade de estilos e de vozes da produção do período, fazendo justiça à pluralidade que marca a poesia brasileira recente.


MJ – O livro tem poetas consagrados, mas também muitos desconhecidos que ficaram invisíveis mesmo depois da redemocratização. Essa invisibilização revela o quê?

MF – Há diversas situações e cada caso guarda as suas particularidades. Alguns ficaram invisíveis porque nunca quiseram seguir uma carreira de poeta: escreveram poemas notáveis, comoventes, em um momento de prisão, de exílio ou durante a militância, mas sem qualquer pretensão de ser um “poeta profissional”. O notável Alex Polari ilustra de modo bem extremo esse grupo: após a redemocratização tornou-se líder espiritual na região amazônica e, até onde se saiba, não nutre qualquer interesse em republicar seus livros, que hoje são disputados em sebos. 

O escritor capixaba Maciel de Aguiar publicou o monumental Os anos de chumbo, com mais de 600 poemas escritos durante a ditadura, mas afirma que depois daqueles anos jamais voltou a produzir um verso sequer. Há um outro grupo de poetas engajados que alcançaram notoriedade durante a ditadura e seguiram publicando regularmente depois, mas recebendo grande desconfiança da crítica, como Thiago de Mello e Moacyr Félix. 

Outros poetas importantes seguiram recebendo destaque, mas com uma produção poética que buscava outros caminhos, buscando romper com a imagem de poetas com forte carga política. Enfim, são várias histórias e o que vejo de comum em todas elas é o desinteresse da crítica literária, das editoras e das políticas públicas em impulsionar a leitura dessa poesia ancorada em uma experiência histórica concreta, seja por preconceitos estéticos, seja por conveniência política.

Apreensão de livro na Universidade de Brasília pela ditadura (Crédito IVH)

MJ – Que contribuições você espera que o livro produza para uma geração que parece pouco afeita aos poemas?

MF – O livro mostra que a poesia participou ativamente do debate político em nosso país, fazendo isso com uma potência arrebatadora. Isso quebra um pouco aquela falsa visão caricatural da poesia como algo anódino e hermético, desconectado dos problemas do mundo, e que tanto afugenta os leitores mais jovens. A meu ver, os poemas do livro se comunicam muito bem com a geração atual e podem contribuir para ampliar o nosso conhecimento histórico, mas também atuam nessa educação sentimental que necessitamos em nossas lutas coletivas. 



MJ – Temos aí a temática de uma parte da ditadura trazida pelo cinema, com o aclamado filme Ainda Estou Aqui. Temos uma tentativa de golpe de estado no Brasil que ocorreria com assassinato do presidente da República, agora em 2022. Temos a constante tentativa dos militares na tutela do estado brasileiro. Ou seja, os anos de chumbo parecem sempre em suspense, é isso?

MF – Como disse antes, a atualidade dos poemas nos remetia constantemente a essa zona incômoda de persistência da ditadura. Quando encontrávamos um poema esquecido dos anos 1970 falando de um militar medíocre e perverso, ou de um juiz prolixo e vaidoso, ou do medo de sair na rua em dia de passeata, ou o peso da mentira como deturpação da esfera pública… tudo isso ecoava de imediato na experiência que vivemos agora, em tempos de obscurantismo no Brasil e no mundo. Esse trabalho de memória precisa ser feito, é um passo importante para sairmos dessa espiral de equívocos. A antologia tem, assim, esse propósito: de mostrar como a poesia brasileira costurou essa memória de horror e vergonha que segue nos ameaçando.


MJO que mais é essencial falar sobre o livro e o projeto que não tratamos aqui e como ter acesso ao livro?

MF – Vale dizer que a publicação da antologia coroa uma etapa importante do projeto, mas a pesquisa continua. Nosso repositório segue sendo alimentado conforme a pesquisa avança e esperamos chegar em breve a 2 mil poemas disponíveis para leitura em nossa página. E se alguém sentir falta de algum poema lá, no próprio site há a opção de enviar poemas que possam integrar esse grande arquivo de poemas sobre a ditadura. 

No momento, o livro pode ser adquirido no site da editora (editorazouk.com.br) e na Amazon. Esperamos que em breve ele chegue também às livrarias físicas. Lembrando que todos os poemas da antologia estão também disponíveis para leitura gratuita no site mpac.ufes.br.

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