CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
@josecristiangoes
Apesar de ressaltar que nos dois últimos anos foi possível retirar mais de 500 mil sergipanos de situação de grave insegurança alimentar, em entrevista à Mangue Jornalismo, a professora Sílvia Voci, coordenadora do Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de Sergipe (OSANES), chama atenção sobre as causas para fome no estado persistir: “isso é reflexo, dentre outras coisas, da falta de políticas públicas específicas para esse problema e que sejam estruturantes”.
Recentemente, dados do IBGE revelaram que Sergipe é campeão nacional em insegurança alimentar, tendo 49,2% dos domicílios com pessoas nessa condição. A Mangue Jornalismo publicou reportagem com esses dados comparativos para solução do problema: “Sergipe gasta 40 vezes mais com polícia, festa e mídia do que com combate à fome. Resultado: o estado é campeão nacional em insegurança alimentar”. LEIA AQUI
A professora Sílvia lembra que Sergipe é “um dos estados com maior desigualdade na distribuição de renda, com forte influência do agronegócio, e que veio perdendo paulatinamente a soberania alimentar”. Para completar, avalia ainda que Sergipe reduziu a capacidade “de ser autossuficiente na produção de alimentos tradicionais e voltados à sua população. Classicamente, onde há mais desigualdade e perda de soberania alimentar, há mais fome”.
Além de professora no Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Sergipe (UFS),Sílvia é doutora em Ciência e mestre em Saúde Pública e foi consultora internacional do Programa Mundial de Alimentos/ ONU na Colômbia. Leia a seguir a entrevista na íntegra:
Mangue Jornalismo – O IBGE divulgou que quase metade dos domicílios em Sergipe (49,2%) têm algum grau de insegurança alimentar, fazendo com que o estado seja o campeão brasileiro nesse terrível ranking. Como você avalia isso?
Sílvia Voci – Embora infelizmente ainda tenhamos um panorama que se distancia de uma realidade justa, é importante ressaltar que nos últimos 2 anos foi possível retirar mais de 500 mil sergipanos de situação de grave insegurança alimentar. De acordo com os dados do VIGISAN [Vigilância da Segurança Alimentar e Nutricional], inquérito realizado entre 2021/2022 pela Rede PENSSAN [Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional], Sergipe apresentava mais de 70% de seus domicílios em situação de insegurança alimentar, sendo 30% em insegurança alimentar grave (ou fome). Atualmente a prevalência de insegurança alimentar grave no estado é de 5,6%.
Mangue Jornalismo – Os dados dessa pesquisa do IBGE sobre a tragédia da fome em Sergipe dialogam com os trabalhos do Observatório de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado de Sergipe (Osanes)?Sílvia Voci – Sim, totalmente. O OSANES tem sua atuação voltada para a pesquisa, mas também para ações de extensão e ensino. No campo das pesquisas, recentemente foi possível observar em estudo realizado com estudantes universitários uma prevalência importante de insegurança alimentar grave, refletindo o que se observa em nível estadual e nacional à época da realização do estudo. Quando estamos em nossas atividades de campo, esses números ganham vida e podemos ver essa realidade ao vivo e a cores e a importância de cada ação que chega até a população no âmbito das políticas públicas voltadas ao enfrentamento da insegurança alimentar e à garantia do direito humano à alimentação adequada.
Mangue Jornalismo – Temos no menor estado do Brasil 126 mil pessoas que estão na faixa de insegurança alimentar grave, passam literalmente fome. Como Sergipe chegou a esse quadro de gravidade na insegurança alimentar?
Sílvia Voci – Precisamos lembrar que a insegurança alimentar no nosso país e, consequentemente, em Sergipe também, é histórica. Ela não é um fenômeno recente. Historicamente enfrentamos fome e quadros de má nutrição, fruto de todo nosso processo de colonização, escravidão, modos de produção, por exemplo. Já na década de 1930 Josué de Castro pesquisava em seus inquéritos locais os problemas de má nutrição e na década de 40 escancarou para o Brasil e o mundo que a fome era um grave problema social, reflexo das inúmeras desigualdades socioeconômicas promovidas pelas próprias escolhas políticas e econômicas dos países. Com o passar das décadas, o Estado passa a adotar medidas voltadas ao problema da fome e desnutrição, assim como doenças carenciais, sempre restritas a públicos bastante focalizados, como o materno-infantil. Com o engajamento cada vez maior da sociedade e o compromisso político assumido no país no início do milênio no que se refere ao combate à fome e às desigualdades, constrói-se uma importante rede de proteção social no Brasil, colaborando para a saída do Mapa da Fome da FAO em 2014. No entanto, com o esfacelamento de tais políticas públicas e a conjuminância das crises política, econômica e sanitária durante a pandemia de COVID19, grandes parcelas da população entram em quadro de vulnerabilidade socioeconômica e,ou, têm tal quadro agravado, contribuindo para o dado alarmante em 2022 de mais 33 milhões de brasileiros enfrentando a fome (insegurança alimentar grave). Em Sergipe, esse número chegou a 30% da população, equivalente a mais de 700 mil sergipanos.
Mangue Jornalismo – Mas esse quadro melhorou, não foi?
Sílvia Voci – Sim. Com o retorno das atividades após o término da pandemia e a retomada das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional, redução do desemprego, aumento real do salário mínimo, dentre outras medidas, observa-se melhora no quadro de segurança alimentar da população, embora ainda tenhamos em Sergipe 5,6% de pessoas enfrentando a fome. Sergipe se mantém em uma situação menos favorável quando comparado com demais unidades da federação e isso é reflexo, dentre outras coisas, da falta de políticas públicas específicas para esse problema e que sejam estruturantes. Sergipe ainda é um dos estados com maior desigualdade na distribuição de renda, com forte influência do agronegócio, e que veio perdendo paulatinamente a soberania alimentar e a capacidade de ser autossuficiente na produção de alimentos tradicionais e voltados à sua população. Classicamente, onde há mais desigualdade e perda de soberania alimentar, há mais fome.
Mangue Jornalismo – Quais os reflexos da insegurança alimentar para a saúde pública?
Sílvia Voci – A insegurança alimentar possui consequências nefastas para a sociedade. Especialmente quando essa mesma insegurança atinge níveis mais graves (fome), afetando as crianças dos domicílios. Para entender suas consequências, basta lembrar que a alimentação é um direito humano interdependente a outros direitos como saúde, educação, trabalho etc. Uma pessoa mal alimentada, está em grave violação de direito e possivelmente não desenvolverá todas suas potencialidades, não terá boa saúde, não terá bom desempenho escolar, não terá boas condições laborais e não conseguirá romper seu ciclo intergeracional de pobreza. Associados à insegurança alimentar estão problemas de má nutrição, tanto carenciais como anemia, por exemplo, até problemas de excesso de peso e doenças crônicas não transmissíveis, ocasionados pela alimentação de má qualidade a que estes indivíduos têm acesso com sua pouca renda.
Mangue Jornalismo – Quais as políticas públicas do Governo do Estado e de prefeituras em Sergipe que a senhora conhece e que ajudam, de fato, no combate à fome?
Sílvia Voci – No estado de Sergipe algumas iniciativas podem ser citadas, como o prato do povo, restaurante popular Padre Pedro, distribuição de cestas de alimentos. No entanto, são ações que, embora importantes, são focalizadas e de pouco alcance, não resolvendo problemas estruturais que são a causa das desigualdades sociais e da fome. É essencial investir na construção intersetorial de políticas públicas que garantam não apenas a distribuição do alimento, mas que fortaleçam a agricultura familiar camponesa, de base agroecológica; que forneçam assistência técnica apropriada, condições de produção e acesso à água, distribuição de sementes, crédito, fortalecimento de canais de venda. Importante fomentar a atividade econômica no estado para garantir emprego e renda; qualificar a alimentação escolar que atende diariamente um número importante de estudantes.
Mangue Jornalismo – Em que medida entregar uma quentinha por dia, de segunda a sexta, como faz o Governo do Estado combate a insegurança alimentar?
Sílvia Voci – Sem dúvida a distribuição emergencial de alimentos tem papel importante para aqueles indivíduos em grave insegurança alimentar. No entanto, tem um alcance pequeno e não emancipam o cidadão. Para que as pessoas tenham seu direito humano à alimentação adequada, é necessário ter acesso a alimentos de forma regular e permanente, que promovam sua saúde e respeitem sua cultura; é necessário garantir as condições para que os cidadãos tenham acesso sem afetar sua capacidade de garantir outras necessidades básicas. Garantir apenas uma refeição ao dia para quem não tem o que comer, não é suficiente para retirá-lo de grave vulnerabilidade. É necessário implementar políticas que paralelamente garantam oportunidade e renda para estas pessoas, acesso à saúde e à educação. É preciso investir em políticas de abastecimento para que estas pessoas tenham mais alimentos saudáveis disponíveis a preços justos, dentre outras medidas.
Mangue Jornalismo – Ao que parece, as prefeituras sergipanas pouco têm ações de políticas efetivas de combate à fome. O que, concretamente os municípios poderiam fazer para combater a insegurança alimentar?
Sílvia Voci – Um bom exemplo é o município de São Cristóvão que há alguns anos vem construindo uma política municipal de segurança alimentar e nutricional sólida, implementando programas que articulam a distribuição de alimentos com a agricultura familiar, ações educativas e emancipadoras. O primeiro Centro de Referência em Segurança Alimentar e Nutricional (CRESAN) no estado foi constituído em São Cristóvão, operacionalizando programas como o Tá na Mesa, o Programa de Aquisição de Alimentos Municipal, banco de alimentos, dentre outros.
Mangue Jornalismo – Como a agricultura familiar, hortas e cozinhas comunitárias e a agroecologia são elementos vitais no combate à fome?
Sílvia Voci – A agricultura familiar é responsável por abastecer grande parte do mercado interno no país. É da agricultura familiar que obtemos os alimentos de nossa cultura. Hortas urbanas e periurbanas e cozinhas comunitárias são importantes iniciativas que colaboram para a ampliação do acesso ao alimento adequado e saudável, no entanto com alcance menor em termos populacionais. As hortas são iniciativas capazes de engajar comunidades na própria produção de seu alimento, de forma saudável e podem ser boas alternativas especialmente naquelas localidades urbanas e periurbanas em que o acesso a alimentos in natura é mais dificultado seja pelo preço dos mesmos, seja pela pouca oferta. Mapear espaços públicos ociosos seria um bom começo, tais como áreas em Unidades Básicas de Saúde, escolas públicas, centros de referência de assistência social, praças. A agroecologia é o caminho para a transição do modelo de produção hegemônico que temos para sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis. Deve ser fortalecida pelo seu potencial de redução de desigualdades no campo, produção de alimentos saudáveis, socialmente e ambientalmente sustentáveis, preservação da nossa biodiversidade, fortalecimento da soberania alimentar.