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Sergipe gasta 40 vezes mais com polícia, festa e mídia do que com combate à fome. Resultado: o estado é campeão nacional em insegurança alimentar

CRISTIAN GÓES e CAMILA FARIAS, da Mangue Jornalismo
@josecriangoes e @camila_gabrielle

No último final de semana, dados oficiais divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) dando conta que Sergipe é o estado campeão nacional em fome deixou algumas pessoas espantadas. Até a mídia tradicional teve que repercutir essa tragédia. Entretanto, quem já acompanha a Mangue Jornalismo não ficou tão surpreso.

Faz um ano que a Mangue vem publicando reportagens com dados estarrecedores, que denunciam que Sergipe, ano a ano, empobrece, é perversamente desigual e, em especial, despreza políticas públicas básicas que atenderiam os mais pobres. “Já perdi as contas de quantas vezes fui dormir com fome e meu filhos também”, disse Eliane Santos, um diarista que vive na periferia de Aracaju. 

Um dos modos de perceber a tragédia da fome em Sergipe é enxergar como o Governo do Estado distribui os recursos públicos. Para o ano de 2024, por exemplo, estão previstas despesas com segurança pública, cultura e mídia em valores que ultrapassam R$ 1,4 bilhão. Enquanto isso, para o “combate à fome e promoção da segurança alimentar e nutricional”, somente R$ 33,8 milhões.

A Mangue Jornalismo publicou a reportagem: Sergipe lidera gastos com segurança pública no Nordeste. Contudo, parte do “investimento” levou o estado a ser o 2º na região onde a polícia mais mata. Leia em https://abre.ai/jBGg.

Ocupação do Marivan Sul, área de insegurança alimentar grave em Aracaju (Foto: Camila Farias)

Gastar 40 vezes mais com polícia, festa e mídia do que com o combate à fome, não é novidade apenas no Governo Fábio Mitidieri (PSD), mas vem se consolidando ano a ano no orçamento do Estado. E também não é apenas o Executivo. Por exemplo, a previsão de gastos para 2024 em termos de manutenção da Assembleia Legislativa, Tribunal de Contas, Tribunal de Justiça, Ministério Público e Defensoria Pública ultrapassa R$ 1 bilhão.

As discrepâncias são absurdas. Enquanto estão previstas R$ 5,7 bilhões com despesas carimbadas no orçamento geral do Estado de Sergipe para gastar somente com “coordenação e manutenção” do Poder Executivo, a pesquisa do IBGE escancara a realidade como ela é: Sergipe é o estado que lidera no Brasil o percentual de domicílios em que seus moradores vivem em insegurança alimentar.

Os dados da fome são oficiais e estão na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, realizada pelo IBGE em parceria com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome.

Os dados da fome em Sergipe, o campeão nacional

Os números revelam que, em Sergipe, 49,2% dos “domicílios particulares permanentes” no ano passado, os seus moradores estavam submetidos à insegurança alimentar leve, moderada e grave. Esse é o maior percentual do país, seguido pelo Pará (47,7%) e Maranhão (43,6%). Em números absolutos, são 425 mil domicílios sergipanos com algum tipo de insegurança alimentar, ou cerca de 1,2 milhão de moradores.

De 1,2 milhão de pessoas com insegurança alimentar em Sergipe, 766 mil pessoas apresentam insegurança alimentar leve, outras 314 mil têm insegurança alimentar moderada e 126 mil estão na faixa de insegurança alimentar grave.

O quadro é tão dramático no menor estado do Brasil que, enquanto a média nacional de insegurança alimentar mais severa (moderada e grave) foi de 9,4% dos domicílios, em Sergipe o percentual da fome chegou a 18,7%.

Importante registrar que a pesquisa do IBGE não contabiliza a fome em nenhum nível nos barracos, ocupações e em tipos de moradia “não permanentes”.

Segundo a Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar (Ebia), na insegurança alimentar “leve” há o comprometimento da qualidade da alimentação, trazendo preocupação aos moradores quanto ao acesso aos alimentos no futuro; na “moderada” ocorrem modificações e restrições nos padrões usuais da alimentação, sobretudo nos adultos; e na insegurança alimentar “grave” há redução e privação da quantidade de alimentos, podendo incluir a fome em crianças e adolescentes.

No quarto trimestre de 2023, a PNAD Contínua estimou um total de 78,3 milhões de domicílios particulares permanentes no Brasil. Dentre esses, 72,4% estavam em situação de segurança alimentar, enquanto 27,6% dos domicílios particulares permanentes restantes estavam com algum grau de fome ou insegurança alimentar. Ou seja, o percentual de 49,2% de insegurança alimentar em Sergipe é quase o dobro da média nacional.

População em situação de rua não foi objeto da pesquisa do IBGE (Foto: Cristian Góes)

A pesquisa do IBGE também trouxe como o racismo se revela quanto à insegurança alimentar. No Brasil, 42% dos responsáveis pelos domicílios são da cor ou raça branca, 12% são preta e 44,7% parda. No entanto, considerando apenas os domicílios que têm segurança alimentar, a maior parcela é nos domicílios cujo responsável é branco, 46,9%. Nos domicílios em que os responsáveis são de cor ou raça preta e parda, a segurança alimentar é de apenas 10,7% e 41,0%, respectivamente.

As vozes da fome em Aracaju

Uma das famílias que vive em situação de insegurança alimentar é a de Raquel Bonfim, de 26 anos, que mora na Ocupação do Marivan Sul, na entrada do Bairro Santa Maria. Ela tem cinco filhos, dentre eles uma bebê de dois meses de vida. Raquel relatou que sua sobrevivência depende do Bolsa Família e das atividades com reciclagem, nas quais ela consegue entre R$ 30,00 a R$ 50,00 no mês.

“Passamos dificuldade porque nem sempre temos o que comer. Aí eu vou para a reciclagem tentar conseguir algum dinheiro e comprar algo para os meus filhos comerem. Quando eu abro a geladeira e meus filhos pedem alguma coisa, fico muito triste por não ter. Infelizmente é muita dificuldade, tanto minha como das pessoas que moram aqui”, explica Raquel. Além de alimentos, ela não consegue outros produtos básicos como sabão em pó para lavar a roupa das crianças, xampu e fralda.

Eliane Santos tem 32 anos, três filhos menores e vivem numa vila de quatro no Capucho. Ela ganha vida como diarista e o filho mais velho, de 14 anos, toma conta dos demais. “Vou ser sincera, eu me alimento nas casas onde faço faxina. Alguns patrões ainda me dão as sobras e eu levo para a casa, guardo para o sábado e domingo. Meus filhos comem na escola. Graças a Deus que tem merenda. Ruim é quando começam as férias”, conta Eliane.

Além das férias escolares, a diarista teme muito ficar doente porque não terá atendimento rápido no posto de saúde, vai ficar sem a diária do trabalho e a alimentação (e a sobra) na casa dos patrões. “Já passei por isso e não tenho o que fazer…. é pedir a um, pedi a um filho de Deus e se tiver bem, se não tiver, fazer o quê? Já perdi as contas de quantas vezes fui dormir com fome e meus filhos também”, disse Eliane.

O Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) em Sergipe participa de uma campanha intitulada de Trabalhadores Contra a Fome! “A carestia dos alimentos, o desemprego massacra os trabalhadores, principalmente os desempregados e os sem teto!”, disse Alana Nascimento, uma das coordenadoras do MLB em Sergipe.

Na semana passada, famílias da Ocupação João Mulungu, do Recanto dos Pássaros e do Coqueiral ocuparam a Secretaria Municipal da Família e da Assistência Social para cobrar alimentos. “Estamos exigindo cestas básicas para as famílias do movimento!”, disse Alana.

Ela divulga que qualquer pessoa pode doar um Pix para a Campanha Trabalhadores Contra a Fome! “Estamos pedindo doações em nosso endereço, Rua Maruim 726, Ocupação João Mulungu, e doações em nosso Pix: ocupacaojoaomulungumlb@gmail.com”.

Segurança alimentar cresceu no Brasil, mas Sergipe lidera o ranking da fome (Foto: Daiane Mendonça/SECOM-RO- IBGE)

Outros dados revelam a pobreza em Sergipe

Os dados da insegurança alimentar podem refletir outros índices dramáticos que estão sendo vivenciados em Sergipe. Por exemplo, a taxa de desemprego no estado foi de 11,2%, segundo dados da PNAD do IBGE, divulgados no mês passado. Com esse percentual, Sergipe obteve a 4ª maior taxa de desemprego no país. Os dados são referentes ao quarto trimestre de 2023.

Além disso, entre o terceiro e quarto trimestre de 2023, o nível da ocupação reduziu de 52% para 50,8%. Em Sergipe, 51,9% das pessoas ocupadas em 2023 eram informais. Esse dado coloca o estado com a 7° maior taxa de informalidade do país. Em Sergipe, o percentual de empregados com carteira assinada foi de 56,6%, o que representa o 7° menor percentual do Brasil.

Faz um ano que a Mangue Jornalismo vem divulgando reportagens com dados alarmantes do ponto de vista social em Sergipe, mas sem qualquer reação de órgãos públicos que tinham a obrigação de agir. Veja algumas reportagens publicadas na Mangue:

Sergipe tem 76,6% de suas crianças e adolescentes vivendo na pobreza e na extrema pobreza. Precarização dos serviços públicos é fator determinante. Leia em https://abre.ai/jBFZ

Sergipe lidera no Nordeste e é o 5º no Brasil em mortalidade infantil. Dados de 2023 revelam que crianças morreram de causas evitáveis antes de um ano. Leia em https://abre.ai/jBF4

Violência contra população em situação de rua em Sergipe cresceu 580%. Em Aracaju, movimentos sociais cobram da prefeitura a realização do censo dessa população. Leia em https://abre.ai/jBF6

“Tem trabalho escravo em Sergipe. Um terço dos apartamentos fiscalizados não tinha trabalhadoras domésticas com carteira assinada”, afirma a pesquisadora. Leia em https://abre.ai/jBF8

Quase todos os dias em Sergipe uma menina de 10 a 14 anos é violentada e fica grávida. O estado tem a 2ª pior redução na taxa de fecundidade no Nordeste nessa faixa etária. Leia em https://abre.ai/jBGc

É negra a maioria das 215 mil pessoas em Sergipe que não sabem ler nem escrever. O racismo se revela na alta taxa de analfabetismo e na baixa escolaridade. Leia em https://abre.ai/jBGe


ERRATA:
Às 9h40 do dia 29 de abril, data desta publicação, foi percebido um ERRO GRAVE no título e no texto da reportagem. Assim foi publicado no título: “Sergipe gasta quatro vezes mais com polícia, festa e mídia…”. O correto é, e foi imediatamente corrigido: “Sergipe gasta 40 vezes mais com polícia, festa e mídia…”.
No 5º parágrafo da reportagem estava escrito: “Gastar quatro vezes mais com polícia, festa e mídia do que com o combate à fome…”. O correto é, e foi imediatamente corrigido: “Gastar 40 vezes mais com polícia, festa e mídia do que com o combate à fome”.

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