CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
Deve ser votada em breve, no Senado Federal, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC), de número 03/2022, que transfere gratuitamente a propriedade de grande parte dos imóveis na zona costeira brasileira, os chamados ‘terrenos de marinha’, para os estados e municípios. Se esses terrenos estiverem “ocupados” por particulares, eles poderão se tornar proprietários, mediante pagamento.
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 20, assegura que “os terrenos de marinha e seus acrescidos” são bens da União. A PEC 03, apresentada pelo deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania/PA) no último ano do Governo Bolsonaro, quer mudar a Constituição. O projeto já foi aprovado na Câmara dos Deputados e está no Senado, onde o relator é o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
No dia 16 de agosto, a matéria estava pronta para ser votada, quando o senador Rogério Carvalho (PT-SE) conseguiu adiar a votação e aprovar um requerimento para realizar uma audiência pública sobre o tema, que ainda não tem data. São considerados terrenos de marinha as terras situadas na costa marítima às margens de rios, ilhas, manguezais e lagoas até onde chega a influência das marés, em faixa de 33 metros a partir da Linha Preamar Média de 1831 em direção ao continente. Assim, a PEC 03/2022 é uma grave ameaça ao meio ambiente, especialmente ao amplo sistema costeiro do Brasil.
A PEC 03/2022, segundo inúmeros especialistas, possibilita a privatização de quase toda a zona costeira e, consequentemente, ameaça a existência de povos que vivem e dependem dessa área. O projeto compromete praias, dunas, animais, lagoas, manguezais e comunidades ancestrais.
Ambientalistas, extrativistas, quilombolas, indígenas, pescadores e pescadoras também chamam atenção para a ameaça ao clima e à sociobiodiversidade. Com a aprovação do projeto, pode se acelerar a ocupação das zonas costeiras por grandes empreendimentos, transformando a paisagem e potencialmente excluindo povos e comunidades tradicionais.
Nitidamente, a PEC 03/2022 ampliaria os riscos de desigualdade social, exclusão e agravamento dos desequilíbrios ambientais e climáticos.
Comunidades organizadas resistem e pedem apoio de todo mundo
Inúmeras organizações da sociedade civil lutam contra a aprovação dessa PEC. Existe uma campanha pública de esclarecimento, com a possibilidade de assinar uma petição e também com os contatos de senadores para pressionar a não aprovar um crime contra o meio ambiente. Acesse a Campanha PEC 03/2022 Não.
Em Sergipe, por exemplo, nove entidades lançaram uma Carta Pública de repúdio à PEC. Movimentos como o das marisqueiras, dos pescadores e pescadoras artesanais, e do Movimento Quilombola de Sergipe afirmam que o projeto “representa ameaças e violações de direitos para nosso povo”.
Para o Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe, o Conselho Pastoral dos Pescadores e a Campanha Mar de Luta, “a relação dos povos e comunidades tradicionais com áreas costeiras e beiras de rios (…) não é de hoje. É ancestral. É dos mares, rios e mangues que nós tiramos nossa renda e sustento, alimentamos nossas famílias e realizamos nossas práticas tradicionais. Assim o é hoje, porque nossos antepassados nos ensinaram como proteger e cuidar desses espaços”.
Além dessas entidades, também assinam a carta as associações de Pescadores e Pescadoras Artesanais de Porto do Mato, a da Comunidade Tradicional dos Pescadores Artesanais da Resina, a da comunidade remanescentes de Quilombo do Brejão dos Negros.
“Historicamente sofremos com invasões constantes de capitalistas, cujo objetivo nos é conhecido: privatizar as áreas e garantir que sejam exclusivas dos poucos endinheirados. Não queiram nos enganar! Sabemos que a PEC03/2022 visa legalizar a ocupação dos grandes empreendimentos imobiliários e demais projetos do desenvolvimento em nossos territórios de vida. É permitir que a natureza que preservamos seja destruída, que nossos saberes, junto as águas, sejam silenciados e que os desastres climáticos sejam intensificados”, diz a carta.
Campanha mostra os graves riscos de aprovação da PEC
Segundo a Campanha PEC 03/2022 Não, o projeto, se aprovado, implica no aumento do racismo ambiental e desigualdade social. A PEC escancara o racismo ambiental do Brasil, pois os grupos étnico-sociais mais vulneráveis, como negros, povos tradicionais e indígenas, serão os mais afetados pelas mudanças legais propostas. A transferência da propriedade dos terrenos de marinha para estados, municípios e “ocupantes” pode levar, além do aumento dos conflitos e de injustas ambientais, à expulsão e deslocamento dessas comunidades, aprofundando a desigualdades sociais e comprometendo seus modos de vida.
Outro reflexo seria o aumento dos conflitos socioambientais, de disputa judiciais e ampliam as ameaças aos povos e comunidades tradicionais. A proposta de extinção dos terrenos de marinha permitirá a instalação e privatização de áreas costeiras por grandes empreendimentos imobiliários, de turismo e de carcinicultura, resultando não somente na transformação da paisagem e de seus impactos ambientais, mas na intensificação dos conflitos, judicializações e ameaças de expropriação de povos originários e comunidades de pescadores/as, marisqueiras, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos que ocupam e usam os ecossistemas marinhos costeiros.
Para os organizadores da campanha, aprovar a PEC significa a privatização de espaços públicos e gerar injustiça ambiental. A proposta de transferência de propriedade pode levar à privatização de áreas litorâneas que atualmente são consideradas espaços públicos, constituídos de bens de uso comum, prejudicando o acesso equitativo à costa e aos seus ecossistemas como manguezais que são essenciais para sustentabilidade de povos e comunidades tradicionais que dependem da pesca e da cata/coleta de bens naturais para sua subsistência.
Uma outra consequência de se aprovar o projeto é produzir a piora nos danos ambientais e na injustiça climática. A extinção dos terrenos de marinha pode aumentar os riscos de erosão e de inundações nas áreas costeiras, que já enfrentam problemas com o avanço do mar. Como são áreas que atuam como zona de amortecimento natural contra o avanço do mar e de outros impactos climático, compromete a mitigação climática agravando ainda mais a crise climática e as injustiças socioambientais.
Tem-se ainda a fragilização da defesa ambiental. A privatização das terras de marinha pode minar a proteção ambiental e dificultar a preservação dos ecossistemas costeiros, como manguezais e áreas de preservação permanente, comprometendo a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos. Coloca em cheque a proteção das áreas costeiras como Áreas de Preservação Permanentes, aumentando o risco de degradação e destruição desses ecossistemas.
Por último, mas não menos importante, aprovar a PEC produz o aumento da especulação imobiliária e a degradação ambiental. A PEC 3/2022 pode favorecer o aumento da especulação imobiliária levando ao aumento da degradação e desequilíbrio ambiental, pois as áreas costeiras desempenham um papel importante na proteção contra eventos climáticos extremos, como tempestades e inundações.
A Campanha PEC 03/2022 Não lembra que se os terrenos de marinha inicialmente foram instituídos visando a defesa nacional frente a eventuais invasões e ameaças externas, hoje sua manutenção sob o domínio da União é fundamental para:
1) preservação da biodiversidade e dos ecossistemas marinhos costeiros;
2) absorção de carbono e proteção da costa contra os impactos das mudanças climáticas;
3) redução da vulnerabilidade da zona costeira frente a eventos externos, como o aumento do nível do mar, erosão costeira e risco de degradação dos ecossistemas marinhos costeiros;
4) sustentabilidade de povos e comunidades tradicionais que dependem da pesca e da coleta de bens da natureza para sua segurança alimentar, assim como do fornecimento de pescado para população da cidade.
Carta do Seminário de Sergipe sobre a Convenção 169 da OIT
e Protocolos de Consulta, em repúdio a PEC 03/2022
Somos Povos e Comunidades Tradicionais, homens, mulheres e LGBTQIAPN+. Somos anciões, jovens e crianças das terras férteis e das águas maternais, guardiãs de sementes, de histórias, de margens, de fazeres, de saberes, de sabores, de poderes. Em Sergipe, somos pescadoras e pescadores artesanais, ribeirinhos, quilombolas, marisqueiras, catadoras de mangaba, camponesas e camponeses, povos e religiões de matriz africana, povos indígenas e povos ciganos.
Reunidos em São Cristóvão, Sergipe, nos dias 17 e 18 de agosto de 2023, para refletir sobre a Convenção 169 da OIT, protocolo de consulta e os direitos das comunidades tradicionais, viemos a público manifestar nosso repúdio a PEC 03/2022, pelo que ela representa de ameaças e violações de direitos para nosso povo.
A relação dos Povos e Comunidades Tradicionais com áreas costeiras e beiras de rios, que no ordenamento jurídico brasileiro são chamados de terrenos de marinha, não é de hoje. É ancestral. É dos mares, rios e mangues que nós tiramos nossa renda e sustento, alimentamos nossas famílias e realizamos nossas práticas tradicionais. Assim o é hoje, porque nossos antepassados nos ensinaram como proteger e cuidar desses espaços.
Historicamente sofremos com invasões constantes de capitalistas, cujo objetivo nos é conhecido: privatizar as áreas e garantir que sejam exclusivas dos poucos endinheirados. Não queiram nos enganar! Sabemos que a PEC03/2022 visa legalizar a ocupação dos grandes empreendimentos imobiliários e demais projetos do desenvolvimento em nossos territórios de vida. É permitir que a natureza que preservamos seja destruída, que nossos saberes, junto as águas, sejam silenciados e que os desastres climáticos sejam intensificados.
Diante disso, exigimos que seja realizada a Consulta e Consentimento Livre, Prévio e Informado junto aos povos tradicionais, pesqueiros, caiçaras, costeiros, ribeirinhos e marisqueiras, tal como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A PEC03/2022 impactará nossos territórios, colocando em risco a nossa existência, de modo que é fundamental nossa participação nas tomadas de decisão sobre tais áreas.
18 de agosto de 2023, São Cristóvão, Sergipe
Assinam essa carta:
Movimento das Marisqueiras de Sergipe
Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil
Fórum de Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe
Associação do Pescadores e Pescadoras Artesanais de Porto do Mato
Associação da Comunidade Tradicional dos Pescadores Artesanais da Resina
Conselho Pastoral dos Pescadores
Campanha Mar de Luta
Associação da comunidade remanescentes de Quilombo do Brejao dos Negros
Movimento Estadual Quilombola de Sergipe
Assine também a Petição no Change.org que é contra a PEC 03/2022. Clique aqui!
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