Apesar do reconhecimento oficial (Lei nº 7.320/2011), as tototós e seus barqueiros enfrentam grandes dificuldades e apagamentos. Grande parte deles teme que as históricas embarcações que fazem a travessia Aracaju-Barra dos Coqueiros estejam com os dias contados por conta da falta de atenção dos poderes públicos.
“Quem fez a Barra dos Coqueiros foram as tototós, porque foi através delas que transportavam os materiais de construção, alimentos ou qualquer outra coisa para lá” lembra o barqueiro Erick Praxedes. “Lá” é a antiga Ilha de Santa Luzia, município da Barra dos Coqueiros, uma cidade ao mesmo tempo tão perto e tão longe da capital.
As tototós são barcos de madeira motorizados, com aproximadamente três metros de largura e 15 metros de comprimento, cujo nome faz referência ao barulho emitido pelo seu motor.
Sobre a importância das tototós para a construção da Barra, o barqueiro Erick tem razão: durante muitos anos, essas embarcações foram o único meio de transporte para Aracaju, assim como a principal fonte de subsistência de pescadores, barqueiros, comerciantes e da população em geral.
O mérito das tototós foi oficialmente reconhecido em dezembro de 2011 quando a então deputada estadual Ana Lúcia (PT) apresentou um projeto que reconhecia os barcos e a atividade como patrimônio cultural e imaterial de Sergipe. A Assembleia Legislativa aprovou e o então governador Marcelo Déda (PT) sancionou a Lei nº 7.320.
Apesar do reconhecimento oficial, na prática, as tototós e seus barqueiros enfrentam grandes dificuldades, apagamentos, mas resistem como podem. Grande parte deles teme que essas embarcações estejam com os dias contados por conta da falta de atenção dos poderes públicos.
“Acho que daqui há uns dez anos as tototós vão acabar, porque não tem incentivo e nossas atividades estão cada vez mais defasadas. Para conseguir algum lucro eu tenho que conciliar as tototós com outro emprego”, afirma Erick.
O artigo 2º da Lei nº 7.320/2011 diz que as tototós sempre desempenharam importante papel no transporte de passageiros nas bacias hidrográficas do estado, “não devendo ser esquecidas da memória dos sergipanos”.
“Antigamente, se nascia e morria por aqui”
Vários pesquisadores também apontam a importância das tototós e destacam que os primeiros registros de desenvolvimento da Ilha de Santa Luzia ocorreram exatamente em razão da importância das embarcações.
Existem também relatos de tototós fazendo a travessia de Barra dos Coqueiros para Santo Amaro das Brotas; outras no município de Laranjeiras. Há muitos registros no baixo São Francisco, especialmente Neópolis, Propriá, Gararu e em vários municípios de Alagoas, a exemplo Penedo, Piaçabuçu, Porto Real do Colégio, entre outros. Na parte Sul de Sergipe é forte a tradição das tototós em Indiaroba, cortando o rio Real entre Pontal/SE e Mangue Seco/BA.
“Antigamente, se nascia e morria por aqui”, recorda Ednaldo dos Santos, 60 anos, apontando para sua embarcação. A fala engasgada dele é uma espécie de síntese do que falam os poucos barqueiros que ainda restaram no atracadouro das tototós e que fica localizado à beira do Rio Sergipe, entre o Mercado Central de Aracaju e o Porto da Barra.
Ednaldo já perdeu as contas de quantas travessias já fez levando e trazendo mercadorias, móveis, materiais de construção, pessoas doentes, mulheres grávidas, recém nascidos e até mesmo caixões para enterros.
O historiador e pesquisador Silvaney Silva defende que as memórias coletivas são essenciais para a construção e ressignificação da História. Elas permitem que o passado se manifeste no presente, embora com novos significados e utilidades. No caso das tototós, para ele, o passado deveria servir como um farol para orientar os governantes no desenvolvimento e fortalecimento das comunidades ribeirinhas e pescadoras.
“As tototós e todo o complexo patrimonial que giraram em torno do seu funcionamento podem servir para gerar renda para os pescadores, os donos dos veículos aquáticos e os comerciantes em geral. Tudo isto aliado a um projeto sustentável de turismo, história, memória, cultura, patrimônio, empreendedorismo e mídias digitais”, defende o professor e mestre em História pela Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Para Silvaney, é preciso ampliar a ideia de patrimônio para se tratar das ‘tototós’, considerando o meio de transporte de todo um complexo patrimonial, os fatos históricos que ocorreram nesse espaço de memória, o Rio Sergipe, a antiga Alfândega, a capital, a Ilha de Santa Luiza. “Não se pode desvincular, por exemplo, as tototós do mercado modelo de Aracaju, sem este talvez aquelas não tivessem sentido” destaca o professor.
Hoje, as poucas pessoas que ainda fazem a travessia Aracaju-Barra por meio das tototós são moradores antigos da Barra dos Coqueiros e alguns poucos turistas que avistam as embarcações de longe e resolvem se aproximar por curiosidade.
De acordo com os barqueiros, os turistas chegam sem nenhuma instrução do que são as tototós e atravessam somente pelo passeio em si. Não há divulgação sobre as embarcações pelas prefeituras, pelas agências de turismo e governos, elas também não estão incluídas nos roteiros turísticos de Aracaju ou da Barra dos Coqueiros. “Não vem muito turista, só alguns gatos pingados, um casal ou dois. Não tem nada para ver aqui né? Não tem lugar de embarque e desembarque decente, não tem nenhum atrativo. O Governo e a prefeitura nunca tiveram interesse em fazer nada para o canoeiro,” destaca o barqueiro Pedro dos Santos, 61 anos.
Construção da ponte e abandono das tototós
Os poucos barqueiros que ainda resistem entre Aracaju e Barra dos Coqueiros são unânimes em afirmar que o esquecimento das tototós se deu com mais força depois da inauguração da ponte que ligou os dois municípios em dezembro de 2006.
“Depois dala, não existe mais valorização, só destruição. João Alves (ex-governador) sempre trabalhou para fazer isso. O grande João Alves, entre aspas, sempre trabalhou para acabar com os barqueiros”, desabafa Pedro.
Ele reforça a reclamação da falta de apoio das Prefeituras da Barra dos Coqueiros e de Aracaju, além do Governo do Estado. Ele lembra que, no período de construção da ponte, até se falou de indenização para compensar as perdas dos barqueiros. Até hoje eles nunca receberam nada e se sentem abandonados, esquecidos.
Pedro dos Santos lembra que assim que soube da ponte, tentou chamar a atenção de alguns políticos para que as tototós não fossem deixadas de lado, mas foi completamente ignorado. Antes da ponte, eram dezenas de embarcações que faziam uma frenética travessia Aracaju-Barra, de domingo a domingo. Hoje, só quatro tototós resistem e ficam atracadas por dia no porto.
A passagem na embarcação para a travessia é apenas R$ 3,00 e os barqueiros trabalham de forma comunitária, revezando suas atividades e tototós. Quatro embarcações navegam em um dia e no outro liberam o porto para outras quatro. Essa foi a dinâmica criada por eles para que todos conseguissem trabalhar e arrecadar um valor para o sustento de suas famílias.
Ao chegar no final do dia, os donos das embarcações dividem o valor com os condutores. Com muito sacrifício, cada barqueiro consegue tirar em média um salário mínimo por mês. “Isso não dá nem para comprar meus remédios. E ainda tem o custo com a manutenção e até multas da Capitania dos Portos”, revela Pedro, que é dono de “Stars Sergipe”, uma das maiores e mais antigas tototós.
“Hoje eu devo ficar com uns R$ 100,00 ou 120,00 no final do dia, mas como a gente reveza, amanhã eu não trabalho… Eu tenho que comprar três remédios, todos são caros, o último que o médico passou pra diabetes e coração custa R$ 240,00”, disse Pedro, confessando que ainda tem três multas de R$ 950,00 pendentes junto à Marinha.
Os barqueiros reclamam a ação da Capitania dos Portos na medida em que não presta nenhum tipo de assistência, tendo como única preocupação a aplicação de multas. A Mangue Jornalismo entrou em contato com a Capitania dos Portos de Sergipe (CPSE) para entender como funcionam as ações da organização junto ao atracadouro das tototós, mas não recebeu nenhuma resposta até a publicação da reportagem.
Herança familiar
Pedro e Ednaldo são os barqueiros mais velhos em atuação no porto das tototós em Aracaju e ambos começaram suas vidas como navegante do Rio Sergipe aos 15 anos de idade. De acordo com eles, antigamente só existiam duas possibilidades na Barra dos Coqueiros: ser canoeiro/barqueiro ou agricultor.
Apesar da existência de novas possibilidades para a nova geração de jovens da Barra, os saberes e fazeres dos barqueiros da região são heranças familiares. Pablo Gabriel, de 19 anos, o mais novo entre os barqueiros, terminou o ensino médio há dois anos e desde então tem trabalhado nas embarcações da família. “Meu pai completou os estudos, é concursado, então os barcos sempre foram uma precaução caso chegasse a ter alguma queda de renda. E eu estou trabalhando aqui para quebrar um galho”, disse Gabriel.
Ele lembra que as tototós sempre fizeram parte do lazer de sua família. “A gente usa o barco para fazer passeios, sempre tivemos esse ponto para ficar indo de um lado para o outro. É também nosso meio de transporte”. Assim como Gabriel, Erick tem as tototós como uma herança familiar. Ele acompanhava os trabalhos ainda criança. “Eu sou a terceira geração da minha família a trabalhar com essas embarcações. Tudo começou com meu avô, que passou para meu pai, que passou para mim. Estou nessa vida aqui desde os 7 e 8 anos”, recorda Erick.
Prefeitura da Barra não presta suporte efetivo aos canoeiros
Sobre o descaso com a atividade das tototós, o secretário de Turismo da Prefeitura da Barra dos Coqueiros, Ícaro Carvalho, alegou que Governo do Estado não cumpriu o Relatório de Impacto de Vizinhança (RIV), quando da construção da ponte, que consistia na avaliação dos pontos positivos e negativos da obra e dos impactos na região e nas comunidades locais. O secretário afirma que esse relatório seria o responsável por identificar os problemas e indicar a solução que os canoeiros teriam.
“Entendemos a ponte como um grande ‘divisor de águas’ para os envolvidos, haja vista a grande negligência do Governo do Estado de Sergipe em nunca ter cumprido o proposto no RIV deste equipamento que tem uma importância ímpar para o Estado, mas que, por não ter a contrapartida aos canoeiros, acabou tendo um impacto bastante negativo na atividade de travessia entre as margens do Rio Sergipe”, disse Ícaro.
A Prefeitura da Barra também não realizou atividades para valorização das embarcações e dos canoeiros. Ícaro afirma que isso acontece porque não existe uma compatibilidade entre os planos da secretaria de turismo local e os barqueiros, a respeito do futuro das atividades das embarcações. “As propostas apresentadas pela Secretaria de Turismo local, infelizmente não foram acatadas por aqueles que deveriam ser os maiores interessados”.
De acordo com ele, o plano era fazer com que a travessia deixasse de ser o foco no transporte de passageiros das tototós, dando lugar à atividade turística. “Ora, é necessário empreender por novas alternativas de captação de renda, já que a tradicional não mais atende aos lucros esperados. Para isso, é preciso primeiro haver uma mudança de pensamento, a qual em coletivo acaba esbarrando em grandes gargalos.”
Segundo informações da secretaria, um Plano Municipal de Turismo, o qual deve contemplar os canoeiros, ainda está em desenvolvimento.