CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo
“Nós exigimos ser consultados verdadeiramente antes de qualquer ação em nosso território. Antes de qualquer coisa, tem que escutar toda a comunidade. É lei e vamos resistir para que ela seja cumprida”, disse Maria Izaltina, liderança quilombola da Comunidade Santa Cruz, Território Quilombola Brejão dos Negros, localizado no município de Brejo Grande, a 137 km de Aracaju.
As falas de Izaltina e de tantas e tantos quilombolas de Sergipe tomaram conta do plenário e das galerias da Assembleia Legislativa de Sergipe durante toda manhã de ontem, 13. Uma sessão especial foi realizada em alusão ao lançamento do Protocolo de Consulta livre, prévia, informada e de boa fé do Território Quilombola Brejo dos Negros.
Apesar de ser atividade oficial, apenas a deputada Linda Brasil (Psol), autora da propositura, esteve representando o Legislativo estadual. Lotaram o plenário e as galerias inúmeros militantes na luta quilombola em Sergipe, a exemplo do padre Isaías Nascimento, da ex-deputada Ana Lúcia, do procurador da República Ígor Miranda, do assessor regional da Cáritas NE3 Márcio Lima.
A exigência dessa escuta do povo está na Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Trata-se de uma legislação internacional sobre os povos e comunidades tradicionais, garantindo o direito a autoidentificação (Art.1); a consulta livre, prévia, informada e de boa-fé (Art.6 e 7); e a propriedade e posse de nossas terras ocupadas tradicionalmente (Art.13 e 14), assim como dos recursos naturais nele existentes (Art.15).
“Nosso território é mais que uma terra, é o nosso modo de vida, nossa identidade, história de nascença e de antepassados. É história de escravidão, mas, é também história de luta, sobrevivência, resistência e permanência”, afirma Enéas Rosa, da Comunidade da Resina.
“O protocolo nos ajuda a enfrentar a luta cotidiana contra a destruição dos nossos manguezais, contra a especulação imobiliária. Não vamos permitir isso. Somos resistência”, reforça Magno Oliveira, de Brejão dos Negros. “Ser quilombola é ser uma mulher preta porque minha mãe foi, minha avó foi, meus ancestrais foram”, disse Pastora, de Brejão dos Negros.
Uma história de lutas em Brejão dos Negros
O Território Quilombola Brejão dos Negros é composto por cinco comunidades que se autorreconhecem como quilombolas no município de Brejo Grande: Resina, Santa Cruz, Brejão dos Negros, Carapitanga e a própria Comunidade Brejo Grande.
Os anciãos dessas comunidades lembram que elas foram formadas por escravizados fugidos dos cativeiros, a se embrenhar nas matas, e por escravizados nas fazendas da região. Também para lá iam alforriados para trabalhar nas roças dos posseiros, na pesca artesanal, no mar, nos mangues e lagoas marginais.
“A luta toma corpo a partir de 2005, mas desde 1982 que o movimento sindical rural em Brejo Grande, junto com alguns pescadores artesanais, reivindicava política pública de inclusão social. A reivindicação era Reforma Agrária, que nunca atendeu o município de Brejo Grande, por causa dos poderosos daqui”, conta o padre Isaías.
Brejão dos Negros foi certificado como remanescente de quilombo em 2006 pela Fundação Cultural Palmares. Passados 17 anos do início da luta, ainda não há titulação do território. Há uma conquista do direito de usufruto exclusivo da Comunidade Resina numa parte das lagoas marginais e a concessão de uso real da Fazenda Batateiras e da Ilha da Criminosa.
“O problema é que a morosidade desse processo quilombola nos deixa vulnerável porque o nosso território está sendo invadido e destruído”, denuncia Maria Izaltina.
Desde a certificação como quilombola, foram muitos os entraves, principalmente com a ação e influência de fazendeiros e até de uma juíza de Direito. A ordem era para que muitos negros não se identificassem. A maioria deles ainda vive como empregados dos donos das fazendas. Nesse período foram registrados morte de animais domésticos, afundamento de barcos e ameaças de morte às lideranças comunitárias, até incêndios da casa paroquial.
“O povo quilombola é um povo de luta e consciência. A gente não escolheu, estamos aqui porque a gente sempre viveu aqui. Nós aqui somos filhos dos que vieram da África e somos filhos dos Indígenas que já viviam aqui”, conta Karla Sophia, da Comunidade Carapitanga.
Território em permanente ameaças
Embora o Território Brejão dos Negros tenha sido certificado pela Fundação Palmares e também oficialmente demarcado pelo Incra, de fato ainda não há posse definitiva. “Isso mostra o racismo que está dentro do Estado e o poder de influência dos fazendeiros. Não ter a titulação do território intensifica os conflitos internos e externos, com os grandes empreendimentos e aumenta a degradação da natureza”, disse Linda Brasil.
Uma das grandes e permanentes ameaças é a especulação imobiliária. Como o território é banhado pelo Rio São Francisco e tem inúmeras lagoas, manguezais, mata atlântica, os olhos de especuladores avançam sobre a área.
“A especulação imobiliária quer nos expulsar daqui, pois acreditam que esse lugar deve ser privado e só quem deve aproveitar são os ricos. Nossa comunidade é localizada numa região muito bonita, uma região que é muito visada pelo turismo, pela especulação imobiliária, então a gente tem que fazer enfrentamento todos os dias”, disse Enéas.
Além disso, a região sofre fortemente os impactos da crise climática e das cinco hidrelétricas espalhadas pelo Velho Chico. Isso altera a dinâmica do rio, reduz sua força e permite o avanço do mar. “Nossos pescados, típicos da água doce, foram morrendo com o aumento da salinização das águas. Há grande dificuldade em manter a cultura dos nossos ancestrais”, diz Iraneide Silva.
Outra grave ameaça no território é a expansão de tanques de carcinicultura (criação de camarões), que desmata e envenena os manguezais, berçários da natureza. É no mangue que várias espécies de peixes, caranguejos, siris, aratus, sururus, camarões nascem e se desenvolvem. Os quilombolas se alimentam do mangue e dele tiram renda.
“Eles aí brocam o mangue, fazendo a coivara, tocando fogo e depois que está tocando fogo, eles cavam e fazem o viveiro. E agora eles descobriram uma maneira que eles botam veneno no mangue e o mangue morre. Depois eles vêm fazer o que quiser em cima, porque o mangue é florestal, acabou-se. O pobre vive de pegar caranguejo, aratu, de pegar siri, de pesca dentro do mangue e aí está cercado, não tem acesso do cara entrar”, denuncia Tonho Brabo, ancião quilombola da Carapitanga.
O crime da exploração de petróleo e gás
A exploração de petróleo em Brejo Grande começou nos anos 1970 e, até hoje, ainda é possível encontrar grandes estruturas, algumas já enferrujadas, com placas da Petrobras. Faz alguns anos que a comunidade soube que o campo de petróleo e gás de Brejo Grande foi vendido para a empresa Carmo Energy.
“Jamais nos esqueceremos do desespero ao encontrar pedaços de petróleo em nossas areias, nos rios, manguezais e mar, causado pelo crime de derramamento que ocorreu em 2019, atingindo também o Velho Chico. Até hoje não sabemos os responsáveis e nem o tamanho dos impactos para a natureza e para a nossa saúde”, diz Izaltina.
Em 2021, menos de dois anos do crime, os quilombolas foram surpreendidos com uma nova tentativa de exploração de petróleo: a ExxonMobil quer perfurar ao menos 11 poços de petróleo na foz do Rio São Francisco. Já a Petrobras anunciou que pretende explorar mais sete campos de petróleo e gás na bacia Sergipe-Alagoas.
“A ExxonMobil está fazendo teste aqui, perfurando poços aqui na bacia – de frente a Foz – é mais um agravante no nosso mar, no nosso meio ambiente e quando vier um derramamento? Um vazamento de petróleo. Vai atingir diretamente a gente, principalmente a gente que está mais próximo da Foz do Rio São Francisco”, denuncia Enéas Rosa.
A importância do Protocolo de Consulta
Todas essas e muitas outras questões envolvendo o Território Quilombola Brejão dos Negros estão no Protocolo de Consulta formalmente entregue ontem na Assembleia Legislativa de Sergipe.
“Com esse documento, exigimos que nossas decisões sejam respeitadas. Isso significa dizer que qualquer ação ou empreendimento que o Estado – municipal, estadual ou federal – queira fazer em nosso território, assim como qualquer empresa de qualquer natureza ou quaisquer órgãos público ou privado, tem que nos consultar, de verdade, toda comunidade”, afirmou Antônio Bonfim.
“É preciso respeitar nossos territórios, os princípios e as formas de nossa organização, o patrimônio cultural, genético e arqueológico, e nossas comunidades, as nossas histórias, tradições e religiosidade”, reforça Keylanne Bispo.
“O protocolo é um documento público, entregue à sociedade, e que foi construído a partir das comunidades, com as comunidades no sentido de ser uma ferramenta de garantia e defesa de direitos de povos e comunidades tradicionais”, afirmou Márcio Lima, assessor regional da Cáritas NE 3. Ele coordena o Programa Global das Comunidades Tradicionais de Nossa América Latina, projeto que apoiou a construção e produção do protocolo de consulta de Brejão dos Negros.
“Esse documento diz para o Executivo, Legislativo, Judiciário, mas diz para a sociedade quem são os quilombolas. Ele traz um aprendizado para dentro e para fora, para uma sociedade branca, racista, homofóbica. O protocolo representa uma alternativa real para nossa sociedade”, disse Gabriela Murua, pós-doutoranda em Geografia pela UFS.
Para o procurador da República Ígor Miranda, é preciso dizer o óbvio: “é obrigação escutar as comunidades tradicionais. Na página 60 do documento está muito clara a obrigação da consulta e como deve ser essa escuta”, disse o procurador, e completou: “é preciso dizer o óbvio, o Brasil não é apenas branco, cristão católico, masculino e heterossexual, o Brasil é muito mais que isso. Este país também é negro, tem cultura de matrizes africanas. Este país é quilombola e resistência”.
Nos termos do Protocolo de Consulta de Brejão dos Negros, deve constar processos de escuta com reuniões com o conjunto das comunidades, considerando as falas dos mais velhos/anciões que têm a experiência e a memória da luta; as crianças e a juventude que têm um modo próprio de ver as coisas; as mulheres que podem dividir suas experiências e informações; os estudantes que têm informações; as associações através das assembleias, sem que nenhuma tome a decisão sozinha em se tratando das questões gerais do território; e o conselho do território que é quem repassa as informações e reúne o povo.
Acesse aqui a cartilha do Protocolo de Consultas Território Quilombola Brejão dos Negros:
A cartilha da Protocolo de Consulta foi produzida pelo Território Quilombola Brejão dos Negros: Comunidade Quilombo de Resina, Comunidade Quilombola Santa Cruz, Comunidade Quilombola Brejão dos Negros, Comunidade Quilombola de Carapitanga e Comunidade Quilombola Brejo Grande.
Equipe de Pesquisa e Assessoria: Alzení de Freitas Tomáz (Sociedade Brasileira de Ecologia Humana/ Nova Cartografia Social do Brasil Projeto Quilombos), André Luís Oliveira Pereira de Souza (Sociedade Brasileira de Ecologia Humana/ Nova Cartografia Social do Brasil Projeto Quilombos), Gabriela Murua (Pós-Doutoranda em Geografia PPGEO/UFS).
Equipe de apoio: Pe. Isaias Nascimento, Bruno Nascimento, Yule Neves, Eraldo da Silva Ramos Filho, Rogerio Sebastião Ferreira Santos, Mauro Luiz Cibulski, Kemili Rodrigues, Iris Brito, Thiago Neumann, Luiz Gustavo Nóia Araújo, Luiz Felipe Bezerra dos Santos
Revisão: Comunidades Quilombolas do Território Brejão dos Negros
Projeto gráfico e diagramação: Gilmar Santos
Fotos do protocolo: André Luís Oliveira Pereira de Souza, Arquivo Nova Cartografia Social do São Francisco, Coletivo de Juventude, João Zinclar, Gabriela Murua, Kemili Rodrigues, Foco Filmes.
Iconografias/Desenhos: Comunidades Quilombolas de Brejão dos Negros
Etnomapas: Croqui das Comunidades Quilombola de Brejão dos Negros
Mapa Geral: Alzení de Freitas Tomáz, André Luís Oliveira Pereira de Souza.