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“Tem trabalho escravo em Sergipe. Um terço dos apartamentos fiscalizados não tinha trabalhadoras domésticas com carteira assinada”, afirma pesquisadora

Mangue Jornalismo entrevistou com exclusividade Shirley Silveira Andrade, autora do livro “A Mulher Negra no Mercado de Trabalho: Condições Escravistas das Trabalhadoras Domésticas”. Ela é doutora pela Universidade de Brasília, pós-doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Shirley é professora da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Sergipe nos cursos de Direito e Serviço Social. Além disso, ela é líder do grupo de pesquisa e estudos sobre trabalho escravo contemporâneo e segue com pesquisas em andamento pela Universidade de Nottingham, no Reino Unido, no centro de estudos Rights Lab sobre o enfrentamento à escravidão. Segue a entrevista exclusiva:


Mangue Jornalismo (MJ):
Muitos relatos e denúncias têm surgido em relação à escravidão moderna nos últimos anos no país, mas esse debate ainda é pouco aprofundado em diversas esferas. Como surgiu a sua inquietação para a escrita da obra?

Shirley Silveira Andrade (SSA): O Brasil começou recentemente a falar de maneira mais massiva sobre esse assunto, e o debate da escravização das trabalhadoras domésticas, na verdade, é recente. Eu estudo essa temática do trabalho escravo desde 2008, mas eu comecei com a questão do trabalho rural, que era muito comum no Brasil. Quando começamos a olhar os dados, há uns 3 anos, e principalmente com a pandemia, começamos a perceber que os dados oficiais talvez não estivessem refletindo a realidade. Quando olhamos os dados do Ministério do Trabalho, 95% das pessoas resgatadas é de homens, mais de 65% é negra e parda e esses 5% das mulheres? Isso me inquietou, pois pelos dados, as mulheres então não eram escravizadas no Brasil. Então, no meu pós-doutorado, em 2020, eu resolvi incluir o debate de gênero e raça nessa discussão, e Sergipe é sempre um estado muito difícil de ter dados. Fomos pesquisar no Ministério Público do Trabalho, em instituições, e não tinham dados, parece que as trabalhadoras domésticas não eram escravizadas em Sergipe, inclusive até 2021 Sergipe era o único estado brasileiro que não constava nos dados oficiais de escravidão. O discurso era de que aqui não tinha escravidão. Em 2015, o cenário era esse, de que não tinha escravidão e começamos a pesquisar porque geralmente onde tem pobreza, tem escravidão e Sergipe tem índices de muita desigualdade.

MJ:  A pesquisa de campo é algo fundamental, mas, neste sentido, há situações complexas e muitas vezes inacessíveis em relação aos trabalhos análogos à escravidão, sobretudo no que diz respeito às trabalhadoras domésticas. Pode nos contar sobre o processo de pesquisa, entrevistas e o que os dados encontrados através deste recorte sinalizaram para você?

SSA: Foi muito difícil porque a pesquisa foi feita durante a pandemia e eram pesquisas muito longas, até hoje eu estou entrevistando as trabalhadoras domésticas e seguimos entrevistando porque queremos fazer um mapeamento, pois não tem dados em Sergipe. Fizemos a pesquisa a partir de Aracaju, alguns interiores também. Tivemos muita ajuda do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas, até hoje temos essa parceria, e através do sindicato, entramos em contato com as mulheres para saber quem queria ser entrevistada. Eu fui na casa delas, eu já estava vacinada, elas também. As entrevistas eram muito longas, a gente fazia uma linha do tempo, a gente queria saber sobre o período da infância e sobre a vida delas após a  Lei Complementar 150/15, mais conhecida como Lei das Domésticas, se algo tinha mudado na vida delas, e aí começamos a perceber que teve mulher escravizada em Sergipe em algum momento da vida dela. Na história das mulheres, elas sempre vão contar algo que remete à escravidão e precisamos entender que escravidão não é somente o cárcere privado, porque muito se fala sobre isso, mas não é só isso. Desde 2003, escravidão também é a jornada exaustiva, e também o trabalho degradante, e pesquisar sobre o trabalho doméstico me ajudou a ampliar o que era isso.

MJ:  O livro é fruto de uma pesquisa acadêmico, voltado ao magistrado, porém, é um tema que atravessa questões sociais de nosso país. Como a pesquisa pode colaborar para aprofundar o debate sobre escravização contemporânea na sociedade?

SSA: O livro foi feito para as trabalhadoras domésticas, é um livro de denúncias devido a falta de dados em Sergipe. Para mim, pesquisa tem que ser um instrumento de implementação de política pública. Então, quando eu cheguei em Sergipe, eu percebi que a primeira coisa que eu tinha que fazer era dizer que tem trabalho escravo em Sergipe. Nós temos uma relação muito boa com o Ministério Público do Trabalho, que é um órgão que tem mudado o seu posicionamento em relação a isso, inclusive estamos com um projeto junto ao MPT que é para construir uma Rede de Atendimento às pessoas escravizadas em Sergipe. O livro é um depoimento de que existe subnotificação da escravidão em Sergipe. O problema aqui é tão invisível que se o trabalhador ou a trabalhadora não se reconhece como escravizado e se você também não tem um aporte público para que eles denunciem, eles não vão denunciar. Em Sergipe, precisamos melhorar os canais de denúncia, temos hoje o disque 100 que é uma ferramenta muito importante, temos o Ministério Público, temos o nosso grupo de pesquisa, o Getec, que pelo Instagram está como @trabalhoescravo_hoje, em que as pessoas podem denunciar por lá e nós encaminhamos a denúncia aos órgãos responsáveis.

MJ:  Há um recorte de gênero e raça nos dados encontrados. O que esse recorte efetivamente simboliza?

SSA: No Brasil e no mundo, o trabalho doméstico remunerado em sua maioria é feito por mulher. A questão da raça ou etnia, trabalhamos especificamente com Lélia Gonzalez que pontua que esse é o lugar social da mulher negra, ou seja, que a mulher negra teria duas funções: a do trabalho doméstico e a da sensualidade. Eu li o livro de Preta Rara, ‘Eu, empregada doméstica’, que foi um soco pra mim, e ela trabalha com depoimentos, inclusive o dela, quando ela coloca que ela se formou, não conseguia emprego em lugar algum, mas de babá e empregada, chovia oportunidades, e eu entrevistei várias mulheres que falaram que acontece o mesmo com elas, e é nítido o recorte de raça que existe. No Brasil, depois das cotas raciais, estamos vivendo o envelhecimento das trabalhadoras domésticas, porque estamos vivendo a primeira geração das filhas das trabalhadoras domésticas que estão nas universidades, não são mais trabalhadoras domésticas e buscam outras oportunidades, o que é um avanço enorme e simboliza também uma mudança.

MJ:  De que forma você acha que o poder público deve ampliar o debate sobre a garantia de direitos e especificidades do trabalho doméstico e quais políticas públicas ainda precisam ser pensadas ou repensadas a respeito do ofício?

SSA: Estamos começando a caminhar. Por exemplo, há 15 dias, tivemos a primeira fiscalização nacional sobre o trabalho doméstico e o objetivo era o de analisar se os direitos trabalhistas estavam sendo cumpridos. Em Sergipe, um terço dos apartamentos fiscalizados não tinha trabalhadoras domésticas com carteira assinada. Então, tem que ter mais iniciativas como essas, precisa mudar a Lei, diarista tem que ter direito trabalhista também. Outra coisa que percebo é que o Governo Federal precisa debater melhor sobre o bolsa família, pois tem muitas mulheres que pedem que os patrões não assinem a carteira para que elas não percam o bolsa família. Além disso, é muito baixo o que se paga no Brasil às trabalhadoras domésticas. O Nordeste, por exemplo, é a região que paga o salário mais baixo às trabalhadoras domésticas e se for para o interior, piora. Precisamos dar outras alternativas através do estudo, da valorização do trabalho. Temos que ter mais políticas públicas sobre a publicização do que é escravização doméstica, sobre as fiscalizações, precisamos fazer formações, como elas podem negociar com o patrão e a patroa. Precisamos também impulsionar a política de cotas, isso tem feito toda a diferença para que as trabalhadoras estudem e mudem de vida.

MJ:  Como está o panorama do trabalho doméstico em Sergipe, as condições gerais nas quais essas trabalhadoras estão inseridas e o que tem sido feito no âmbito de políticas públicas de enfretamento à escravização?

SSA: Temos uma questão da invisibilidade da questão do trabalho doméstico infantil. Não há uma denúncia formal em Sergipe, mas se você for às cidades do interior, é o que mais tem. As trabalhadoras que eu entrevistei, todas começaram com 10, 12 anos no trabalho doméstico. As instituições em Sergipe, algumas delas, começaram a perceber que aqui tem escravidão. Desde 2015 eu escrevo e envio para os órgãos. Estamos num processo, mas precisa de politicas públicas para que elas mudem suas possibilidades. Do Governo do Estado, não conheço nada, precisamos cobrar. Em Sergipe, eles dizem que não chega denúncia, mas porque não chega? Porque você não tem informação, formação sobre isso, não confia nos órgãos, não acredita que a denúncia será eficaz. É necessário lutar para mudanças na lei, mudanças na formação e no comportamento.

DÍJNA TORRES

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