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Sergipe é o estado nordestino com maior taxa de maus-tratos contra crianças. São mais de 56 casos para cada 100 mil na faixa etária de 0 a 17 anos

CRISTIAN GÓES, da Mangue Jornalismo

O amplo levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e que se materializa no Anuário 2023, revelou um quadro dramático que envolve o estado de Sergipe. Além dos dados já divulgados pela Mangue Jornalismo sobre a alta letalidade policial, existem outros índices que deixam uma série de reflexões sobre as frágeis ou quase inexistentes políticas públicas. Um dos exemplos é sobre os maus-tratos contra crianças e adolescentes.

Com base no Anuário 2023 do FBSP, a Agência Tatu fez um recorte e analisou as informações sobre o Nordeste. Neste trabalho, Sergipe aparece como o estado nordestino com a maior taxa de maus-tratos contra crianças e adolescentes: 56,69 na faixa etária de 0 a 17 anos. Para crianças de 0 a 4 anos, esse índice é de 81,8 para cada 100 mil pessoas nessa mesma idade.

De uma forma geral, o número de maus-tratos contra crianças e adolescentes aumentou no Nordeste de 2021 para 2022. Contudo, o maior salto ocorreu exatamente na primeira faixa etária, de 0 a 4 anos, com um percentual reajustado para 47%.

Sergipe aparece como o estado nordestino com a maior taxa de maus-tratos (Foto Pixabay)

De acordo com os dados, em 2021 foram registrados 821 casos de maus-tratos na faixa etária de 0 a 4 anos no Nordeste, mas em 2022 esse número aumentou para 1.207. Apesar de não ser a maior em quantidade absoluta de casos registrados por faixa etária, foi o que apresentou o maior aumento percentual entre os dois anos.

“Os números são impressionantemente altos e, como previsto nos últimos Anuários, já extrapolam as estatísticas anteriores à pandemia de Covid-19”, revelam Sofia Reinach e Betina Warmling Barros, pesquisadoras do FBSP e autoras do capítulo sobre violência contra crianças e adolescentes.


Dados de maus-tratos no Nordeste: Sergipe tem a maior taxa

Segundo dados do Anuário 2023 e analisados pela Agência Tatu, no ano passado foram oficialmente registrados 4.218 casos de maus-tratos no Nordeste. No ano anterior, esse número foi de 3.203. O estado de Sergipe lidera com a maior taxa (56,69 para cada 100 mil na faixa etária de 0 a 17 anos) registrada para os casos de maus-tratos contra crianças e adolescentes em todo o Nordeste. A Paraíba apresentou a menor (5,33).

O artigo 136 do Código Penal tipifica o crime de maus-tratos como a ação de colocar em perigo a vida de uma pessoa sob sua responsabilidade, seja para educar, tratar ou cuidar, por privá-la de refeições ou cuidados essenciais, submetê-la a trabalhos excessivos ou inadequados ou por abusar de meios de correção ou disciplina. Os maus-tratos podem ser físicos, psicológicos ou sexuais.

“A violência física contra crianças e adolescentes é majoritariamente um caso de violência intrafamiliar. Como tal, também possui alto nível de reincidência, sendo caracterizada como uma experiência de longa duração na vida da vítima”, revela as pesquisadoras do FBSP.

Sofia e Betina mostram que “dificuldades escolares, ansiedade, reprodução da violência e sequelas provenientes das lesões são algumas das consequências já mapeadas pela literatura especializada e dão conta da gravidade desses atos, apesar de muitas vezes ainda serem concebidos por muitos como instrumentos educacionais válidos e legítimos”.


Educação e cultura forjadas no patriarcado e no machismo

Lídia Anjos é assistente social, militante e mestra em Direitos Humanos. Ela lembra que Sergipe e o Brasil têm uma educação e cultura forjadas no patriarcado e no machismo em relação às mulheres de um modo geral, e em relação às crianças. “Isso se soma ao fato de termos construído a ideia de criança como um ‘ser objeto’, pois a ideia da criança enquanto sujeito de direitos é nova (aproximadamente 30 anos)”, analisa Lídia.

Ela chama atenção que as crianças eram chamadas de “menores”, o que passa a mensagem de seres incapazes, que não sentem, que não podem dizer, opinar e, portanto, têm sempre que ter um adulto para traduzir o pensamento e a vontade dessa criança, uma concepção que ainda está muito presente entre os adultos. “Assim, historicamente, crianças e adolescentes foram invisibilizadas e desacreditadas”, diz Lídia.

A mestra em Direitos Humanos, e atualmente doutoranda na Universidade Federal de Sergipe (UFS), avalia que há um conjunto de fatores que corrobora para o aumento da violência contra crianças e adolescentes em Sergipe. “Temos uma crise econômica que aumentou os índices de desemprego, subemprego, trabalho informal, enfim, uma precarização gigante das relações de trabalho e renda e também a falta dela, motivando violências diversas como o abandono, negligência e maus tratos em geral”, ressalta.

No entender de Lídia, aliada à dura realidade econômica, há pouco investimento em políticas públicas que priorizem crianças e adolescentes. “Na educação por exemplo, a ausência de creches públicas no Estado, que possibilitem o trabalho das mães no sentido delas terem onde deixar suas crianças, em especial com idades entre 0 a 6, colocam em risco constante a primeira infância, pois esta mãe acaba tendo que escolher entre trabalhar e deixar as crianças desprotegidas em casa ou o desemprego”, diz Lídia.

Lídia: “há pouco investimento em políticas públicas que priorizem crianças e adolescentes”. (Foto Jadilson Simões/Alese)

Outros dados de maus-tratos: violência sexual, raça e proximidade

Segundo as pesquisadoras, em relação ao sexo das vítimas, os dados de perfil dos registros de maus-tratos de 2022 confirmam o que já havia sido identificado antes. “Nas faixas etárias de 0 a 4 anos e 5 a 9 anos, a maior parte das vítimas é do sexo masculino. A partir dos dez anos, esse perfil se inverte e as vítimas do sexo feminino passam a ser maioria”, informam Sofia e Betina.

Segundo dados do FBSP, as vítimas de maus-tratos também mudam de perfil racial à medida que muda o perfil etário. “A desigualdade racial é quase inexistente nas faixas de 0 a 4 anos e 5 a 9 anos. Aos poucos, ocorre uma transição para um perfil cuja maior parte das vítimas é negra, especialmente na faixa de 14 a 17 anos em que 54,9% das vítimas são pretas ou pardas”, destacam as pesquisadoras.

Considerando todas as faixas etárias, em 2022, 50,6% das vítimas crianças e adolescentes são de raça negra, enquanto em 2021 esse valor foi bem mais baixo, em torno de 40%. Além disso, está provado que a maior parte dos agressores é conhecida das vítimas (em todas as faixas etárias o percentual é maior que 90%).

Lídia Anjos afirma que parte da sociedade segue afirmando que crianças mentem e fantasiam o tempo inteiro. “Muitas vezes isso é reafirmado pelo próprio abusador da criança, que tem alguma relação de afeto com este e por isso se sente culpada ou mesmo é incapaz de perceber a violência sofrida”. Para ela, a criança precisa que um adulto entenda e traduza essa violência em sinais que são dados principalmente na escola.

Para Lídia, todo esse cenário corrobora para uma realidade de produção e reprodução de complexas violências, que se iniciam no campo do simbólico e se materializam no corpo e alma da criança. “E desse modo, de uma forma muito mais agressiva se traduz uma sociedade desumana, doentia. Campanhas educativas, debates que visibilizem essas situações, creches públicas seriam um bom começo de enfrentamento a esse cenário”, propõe Lídia.

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Uma resposta

  1. Confesso que essa matéria me provocou sofrimento. Tudo que afeta negativamente as infâncias me faz sofrer. É inaceitável que sendo o menor Estado do país, Sergipe seja tão atrasado e descompromissado com políticas públicas para melhorar a vida das crianças, para respeitar os seus direitos garantidos na ampla legislação vigente. O que será de uma sociedade que não cuida devidamente das suas crianças? Que futuro teremos? Falando da Capital, Aracaju, é outro desastre. A gestão do Prefeito Edvaldo Nogueira manda DEMOLIR 03 escolas que atendem crianças em um mesmo bairro e no mesmo semestre letivo 2023/1. Será que todas as crianças tiveram o seu direito de permanência na escola garantido?. A demolição das escolas provocou impactos negativos na vida das crianças e das suas famílias: deslocamento de ônibus para outros bairros, nos quais as escolas foram instaladas em prédios improvisados, alugados pela SEMED. Isso também é um tipo de violência contra as crianças.

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