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Sergipe é o estado nordestino com maior crescimento de pedidos de medidas protetivas de urgência para mulheres. Em um ano, o número quase dobrou

PRISCILA VIANA, da Mangue Jornalismo

Entre os anos de 2021 e 2022, o número de medidas protetivas de urgência concedidas para as sergipanas praticamente dobrou – de 1.261 em 2021 para 2.503 no ano seguinte. O crescimento de 98% no número de medidas concedidas coloca Sergipe no topo de um ranking perverso e violento: o estado nordestino com o maior aumento quando o assunto é concessão de medidas protetivas de urgência para as mulheres vítimas de violência.

Esses dados são do Tribunal de Justiça de Sergipe (TJ/SE) e foram divulgados pela Agência Tatu, em reportagem especial sobre o tema. Ainda segundo o levantamento, quando se trata da região Nordeste como um todo, os números de medidas protetivas crescem 15% em média. Foram quase 80 mil medidas concedidas em sete estados nordestinos: Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Sergipe. Os TJs da Paraíba e do Piauí não divulgaram os respectivos dados. Ou seja, embora os números sejam bastante altos, ainda é preciso levar em consideração que há uma subnotificação no número total dos casos.

Mais que números, estamos falando de vidas. De mulheres que têm sua integridade, saúde e o direito de ir e vir, entre outros direitos fundamentais, ameaçados e violados pela misoginia que ainda está impregnada em nossa cultura. Os números mostram também a vulnerabilidade a que milhares de mulheres estiveram sujeitas no período da pandemia da Covid-19 – muitas ainda estão.

Segundo números oficiais da Secretaria da Segurança Pública, a que a Mangue Jornalismo teve acesso, o número de feminicídios nos últimos três anos revela a gravidade dessa violência. Em 2020 foram registrados 14 assassinatos em Sergipe de mulheres apenas por serem mulheres. Naquele ano, os municípios com mais casos foram Itabaiana, com três, e Nossa Senhora do Socorro, com duas. No ano seguinte, esse número pulou de 14 para 20 feminicídios em Sergipe, sendo cinco em Aracaju e três em Nossa Senhora do Socorro. Foram quase duas mulheres mortas por mês. No ano passado, o número se manteve alto, sendo registrados 19 casos de feminicídio, com quatro em Aracaju e três em Itabaiana.

Para ajudar a compreender o que está por trás desses números assustadores, a Mangue Jornalismo conversou com as advogadas Brisa Xavier e Cindy Barbosa, sócias da Jus Feminina, uma consultoria jurídica especializada em direitos das mulheres.

Advogadas Cindy Barbosa (em pé) e Brisa Xavier: sócias na Jus Feminina

Mangue Jornalismo (MJ) –Os altos números de medidas protetivas de urgência em Sergipe refletem a realidade dos casos?

JusFeminina – Ainda que o aumento pareça alarmante, é necessário pensarmos que ainda assim existe uma subnotificação. Muitas mulheres são desencorajadas por familiares, por amigos e até pelo próprio sistema de segurança pública no ato da denúncia. Apesar de muitos avanços, quem atua na linha de frente compreende que o acolhimento das vítimas deixa muito a desejar, inclusive se pensarmos no interior do estado, tendo em vista que em Sergipe existem apenas 11 delegacias da mulher, um estado com 75 municípios. Além do mais, essas delegacias do interior do estado (Nossa Senhora do Socorro, São Cristóvão, Barra dos Coqueiros, Itabaiana, Estância, Nossa Senhora da Glória, Propriá, Cristinápolis, Tobias Barreto e Lagarto) funcionam das 8h às 18h, sendo a de Aracaju a única que funciona 24 horas. São rotineiros os casos em que as vítimas no interior do estado sofrem agressões e ameaças, mas não tem como se dirigir a uma delegacia plantonista para registrar a ocorrência e nem todas têm acesso a internet para registro de ocorrência online.

MJ – A que pode ser atribuído um aumento tão alarmante de medidas protetivas concedidas em Sergipe? A um possível aumento dos casos ou a um possível aumento das denúncias?

JusFeminina – Mesmo considerando as falhas no sistema de proteção dessas mulheres, da denúncia até a concessão da Medida Protetiva, nós atribuímos esse aumento às campanhas de conscientização e informação da necessidade de denúncias. Afinal, mulher bem informada é rachadura no patriarcado e a Lei Maria da Penha se popularizou de forma que as mulheres vítimas de violência, em sua maioria, buscam proteção, afastamento do agressor, e seus direitos de reparação.

MJ – No ano de 2022, foram concedidas 2.503 medidas em Sergipe. Mas, segundo dados do TJ/SE, foram 2.705 medidas solicitadas. Isso significa que 202 pedidos não foram atendidos. Quais os critérios para que um pedido de medida protetiva seja atendido e por que o número tão alto de medidas negadas? Há algum tipo de acompanhamento que é sugerido às mulheres que solicitam as medidas, mesmo sendo negadas?

JusFeminina – Existem vários fatores que contribuem para a recusa das Medidas Protetivas. Um dos principais obstáculos é a descrença e a desvalorização da palavra da mulher, algo que infelizmente é frequentemente perpetuado pelo próprio sistema de segurança e justiça. Tal situação é algo que combatemos veementemente, afinal, a descrença nas vítimas não pode ser uma tendência e devemos garantir que suas vozes sejam ouvidas. Principalmente das mães de crianças e adolescentes, que ainda sofrem com estereótipos de vingativas e loucas. Por isso, é necessário sensibilizar e capacitar os profissionais que atuam na linha de frente desses atendimentos, com a finalidade de acolher sem desacreditar das mulheres, ainda que as provas que elas apresentem não demonstrem a materialidade explícita da violência perpetuada no ambiente doméstico e familiar. Além disso, existem questões de ordem burocrática que terminam desempenhando um papel significativo em relação a esse problema. Muitas vezes, os encaminhamentos necessários para solicitar e implementar uma medida não é realizado de forma eficiente, seguindo o trâmite legal estabelecido na Lei Maria da Penha

MJ – Qual seria o trâmite legal estabelecido pela Lei Maria da Penha?

JusFeminina – Após o registro da ocorrência, primeiramente é preciso ouvir a mulher ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentando em seguida, se faz necessário colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e de suas circunstâncias, remeter, no prazo de 48 horas, o pedido da mulher para a concessão de medida protetiva de urgência e determinar que se proceda ao exame de corpo de delito da ofendida e requisitar outros exames periciais necessários. Por fim, remeter, no prazo legal, os autos do inquérito policial ao juiz e ao Ministério Público. Recebido o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 horas, decidir sobre as medidas protetivas de urgência.

MJ – Com relação à aplicabilidade dessas medidas protetivas, qual o cenário que temos? Elas realmente protegem as mulheres?

JusFeminina – Em relação à forma como a justiça aplica as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha, visualizamos como essa norma, reconhecidamente importante e inovadora, sofre restrições e é descaracterizada pelo modo tradicional e engessado por um judiciário fechado para as inovações propostas pela própria lei. A vida real e cotidiana dos equipamentos de segurança e do judiciário não acompanham o texto da lei.

MJ – Quais as medidas e/ou políticas públicas que a Jus Feminina entende serem necessárias por parte do Poder Público para prevenir as violências contra a mulher que geram os pedidos de medidas protetivas e para acompanhar as mulheres que solicitam essas medidas?

JusFeminina – A principal ferramenta sempre será a educação. A Lei Maria da Penha e todos os aspectos da violência contra a mulheres devem ser debatidos nas escolas, nas indústrias, junto aos servidores públicos, e demais espaços coletivos. Educar a população é o instrumento principal para prevenir qualquer forma de violência, é preciso que as pessoas, desde crianças até idosos, conheçam as formas de violência para conseguir identificá-las, preveni-las e combatê-las ao proceder com as denúncias. Políticas públicas afirmativas são também uma importante forma de pensar os eixos para diminuir a violência contra as mulheres, mas pra isso é importante que o estado de Sergipe passe a divulgar dados e mapear onde há uma maior incidência dessas violências, pensando em perspectivas de feminicídio, da maior letalidade estatística das mulheres negras, nos crimes sexuais com foco não apenas na Capital, da capacitação com perspectiva de gênero dos profissionais da Segurança Pública e do Judiciário, na ampliação de abrigos de mulheres. É necessário também o fortalecimento dos equipamentos de assistência social e psicologia, pois, além de um número pequeno de profissionais e de estruturas precarizadas, existem locais em que as vítimas são atendidas no mesmo endereço dos agressores, além da necessidade de ampliar a estrutura dos grupos reflexivos para os homens.

MJ – Também temos observado uma intensificação das violências cometidas no ambiente virtual contra as mulheres. Há relação com as violências registradas no âmbito privado da vida cotidiana?

JusFeminina – Sim, a internet tem sido palco para formação de novos protagonistas retroalimentados pelo ódio às mulheres, que vem criando e monetizando “redpills”, “incels”, “machos alpha” e “sigma”, protegidos sob a ótica da liberdade de expressão, mas ferindo diretamente um arcabouço de direitos humanos e das mulheres. O combate aos conteúdos misóginos das plataformas digitais deve ser feito por todos.

MJ – A presença de mulheres nos espaços de poder contribui com essas mudanças necessárias?

JusFeminina – Não podemos ignorar os dados dos últimos anos a respeito da inserção de mulheres na política, assim como nos demais segmentos da sociedade. Sem representação feminina (e feminista) na política e em espaços de poder institucional, definindo políticas públicas e orçamentárias, comprometidas verdadeiramente com as pautas democráticas e plurais, todos os outros acessos e garantias aos direitos ficam prejudicados. É preciso pensar em quem votar nas eleições, também é preciso votar em mulheres.

MJ – De que maneira a sociedade, de forma geral (família, escola etc.), pode contribuir com a redução desses índices?

JusFeminina – A sociedade precisa compreender que a violência doméstica e familiar, apesar de ocorrer no espaço privado das residências, são um problema coletivo e estrutural. É fundamental promover uma cultura de confiança nas palavras das mulheres e desconstruir estereótipos de gênero arraigados, por meio de campanhas de conscientização geral. É importante acreditar e apoiar as mulheres que denunciam e passam por um processo de violência, a fim de criar um ambiente seguro e acolhedor, com a consciência de que existe um Ciclo da Violência, e é por causa disso que muitas mulheres acabam voltando para essa realidade, não porque “gosta de apanhar”, como popularmente se fala. É essencial fortalecer a rede de proteção às vítimas, integrando diferentes setores, como polícia, justiça, serviços sociais e organizações da sociedade civil. A resposta em relação à violência contra a mulher deve ser efetiva e abrangente. É preciso também um combate intensivo à cultura do estupro, que vende e engaja e hiperssexualiza os corpos.

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