Esta é a terceira e última reportagem da Mangue Jornalismo sobre a Série Infância Sem Futuro. Ela foi produzida a partir do estudo “Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil (2017-2023)”, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A pesquisa mostra dados dramáticos sobre pobreza entre crianças e adolescentes em Sergipe.
A Mangue Jornalismo encerra hoje a série de reportagens Infância Sem Futuro com o terceiro texto produzido a partir do estudo Pobreza Multidimensional na Infância e Adolescência no Brasil (2017-2023), do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Na primeira reportagem, revelou-se que sete em cada dez crianças e adolescentes em Sergipe estão em situação de pobreza. Ontem (28), foi publicada a segunda apontando que Sergipe tem maior índice do Nordeste de crianças na escola com atraso e renda abaixo da linha da pobreza. Na matéria de hoje, o foco é insegurança alimentar.
A Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar (Ebia) caracteriza o quadro como a ação que vai do comprometimento da qualidade da alimentação, modificações e restrições ao alimento até o caso grave, com a redução e privação da quantidade de alimentos, ou seja, fome.
Segundo dados do Unicef, Sergipe é o estado brasileiro onde crianças e adolescentes mais sofrem algum tipo de insegurança alimentar, com percentual de 59,8% entre as pessoas de 0 aos 17 anos. Isso significa que quase seis em cada dez crianças em Sergipe enfrentam problemas com a alimentação, desde restrição até sua completa ausência sobre longos períodos.
No Brasil, a média do percentual de crianças e adolescentes que tem privação de alimento é 36,9%. Sergipe está 22,9% acima da média nacional. O estado de menor percentual de insegurança alimentar na faixa etária de 0 aos 17 anos é Santa Catarina, com 15,7%, uma diferença para menos de Sergipe de 44,1%.
Crianças e adolescentes com insegurança alimentar, por estado, entre 2017-2023
Esta não é a primeira vez que a Mangue Jornalismo publica uma reportagem mostrando a situação da insegurança alimentar em Sergipe. Em 29 de abril do ano passado, dados do IBGE denunciavam que o estado era o campeão nacional em insegurança alimentar. Leia a reportagem Sergipe gasta 40 vezes mais com polícia, festa e mídia do que com combate à fome. Resultado: o estado é campeão nacional em insegurança alimentar.
No estudo recente do Unicef, vale destacar e comparar a redução no quadro de insegurança alimentar nos estados entre os anos de 2018 e 2023, uma queda significativa e que não foi verificada em Sergipe. Ao olhar apenas os estados nordestinos, por exemplo, o percentual caiu de 73,5% no Maranhão em 2018 para 51,3% em 2023. Em Alagoas caiu de 69,7% para 43%. Em Pernambuco, a redução foi de 60,7% para 46,2%. Nesse mesmo período, em Sergipe, a redução foi de 0,1%, de 59,9% para 59,8%.
O relatório foi elaborado com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC) e analisa dimensões básicas de direitos, como renda, educação, informação, água, saneamento, moradia e proteção contra o trabalho infantil. A dimensão de alimentação também foi avaliada a partir da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). Esta é a quarta edição desta pesquisa, realizada pelo Unicef. Leia aqui o estudo completo.
Crianças e adolescentes com insegurança alimentar no Nordeste
Estados do Nordeste | Ano 2018 (%) | Ano 2023 (%) |
Piauí | 57,2 | 51,2 |
Maranhão | 73,5 | 51,3 |
Rio Grande do Norte | 65,7 | 42,8 |
Alagoas | 69,7 | 43,0 |
Ceará | 59,2 | 42,8 |
Paraíba | 63,3 | 44,1 |
Sergipe | 59,9 | 59,8 |
Bahia | 58,7 | 49,7 |
Pernambuco | 60,7 | 46,2 |
Tabela elaborada pela Mangue Jornalismo com dados da Unicef.
Para Milena Barroso, assistente social e professora na Universidade Federal de Sergipe (UFS), uma das possíveis explicações da não alteração da situação de pobreza multidimensional em Sergipe pode ser apreendida exatamente pela insegurança alimentar. “Segundo dados da PNAD de 2023, Sergipe é o estado que mais apresenta insegurança alimentar no país, em média 50% dos domicílios enfrentam a insegurança alimentar em algum nível, o que incide, em grande medida na situação das crianças e adolescentes”, reforça.
Os dados do Unicef acabam revelando a ausência de políticas públicas que atendam às reais necessidades das famílias sem ou com renda de até um salário mínimo, que estão na informalidade e vivenciam diversas formas de desproteção.
“Existe uma incapacidade e ineficácia das políticas municipais e da política estadual de garantir uma proteção econômica e social que enfrente a insegurança alimentar. A descentralização dessa responsabilidade é condição para avançarmos na proteção às crianças, especialmente nos municípios onde uma parcela da população tem renda familiar inferior a meio salário mínimo”, aponta Milena Barroso.
A insegurança alimentar infantil é a insegurança de famílias e mulheres
Milena Barroso, assistente social e professora na Universidade Federal de Sergipe (UFS), analisa que ao se considerar os dados da vulnerabilidade de crianças e adolescentes, “estamos também tratando de desigualdades e ausências enfrentadas por famílias, especialmente de mulheres responsabilizadas pelo cuidado, que estão em situação de pobreza”.
A professora chama atenção para a condição da mulher quando se trata da insegurança alimentar de crianças e adolescentes. “É indispensável pensarmos na responsabilização indevida que recai sobre as mulheres, mães, avós, tias, especialmente negras, historicamente responsabilizadas pelo cuidado das crianças. A pobreza não é responsabilidade das mulheres e/ou das famílias, resulta, por outro lado, das desigualdades econômicas e sociais, da concentração de renda, da ausência de proteção das instituições e de políticas que favorecem ‘os grandes’ e contribuem para a permanência dessa situação”.
No Brasil, segundo os dados do Unicef, a pobreza multidimensional entre crianças e adolescentes negros permanece consistentemente mais alta em comparação com adolescentes brancos. Enquanto entre meninas e meninos brancos 45,2% estão em pobreza multidimensional, entre negros o percentual é de 63,6%.
Milena Barroso defende que para uma melhor qualidade de vida das crianças e adolescentes em Sergipe, é preciso garantir a proteção das mulheres, a autonomia econômica por meio de políticas de acesso à renda, implementar uma política de cuidado, e ampliar os investimento para a prevenção e o enfrentamento à violência contra as mulheres e meninas, que considere as desigualdades raciais e de classe.
Governo reafirma compromisso com erradicação da pobreza infantil
Republicamos parte da nota enviada para Mangue Jornalismo pelo Governo do Estado de Sergipe, através da Secretaria de Estado da Assistência Social, Inclusão e Cidadania (Seasic), sobre a temática.
O governo “reafirmar seu compromisso com a erradicação da pobreza infantil e a inclusão social, por meio de ações concretas e investimentos contínuos que garantam proteção e dignidade às famílias sergipanas”.
Segundo a nota, “os dados do Unicef refletem um cenário herdado de um contexto de crise sanitária global e desafios estruturais, que vêm sendo enfrentados com determinação pela atual gestão desde 2023”.
Para a Seasic, “a pobreza multidimensional infantil em Sergipe é influenciada por diversos fatores históricos e conjunturais, como desigualdades regionais persistentes e os impactos econômicos da pandemia de Covid-19. O Governo do Estado tem atuado com compromisso e determinação para mitigar esses desafios, com ações e programas que já demonstram impactos positivos na vida das famílias sergipanas”, garante.
Na nota, o governo relacionou ações implementadas em 2023 e 2024: “Cofinanciamento Estadual: Repasse total de R$ 43 milhões aos municípios, garantindo a sustentabilidade dos serviços socioassistenciais e fortalecendo os serviços de Proteção Social Básica e Especial. Cartão Mais Inclusão (CMais): Beneficiou 320 mil sergipanos, com investimentos totais de R$ 82 milhões, assegurando alimentação e suporte financeiro para famílias em situação de vulnerabilidade. Segurança Alimentar: Distribuição de 1,4 milhão de refeições pelo programa Prato do Povo e aquisição de 3.000 toneladas de alimentos pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), beneficiando 500 agricultores familiares e 157 entidades assistenciais. Inclusão Social: Expansão do programa Ciranda Sergipe para 37 municípios, atendendo 1.917 cidadãos com serviços essenciais e apoio técnico. Política Estadual da Primeira Infância: Lançamento do Plano Estadual da Primeira Infância, abrangendo os 75 municípios e fortalecendo as políticas intersetoriais para o desenvolvimento infantil”.
Para o Governo de Sergipe, “de acordo com os dados oficiais do IBGE, a taxa de pobreza reduziu de 45,6% em 2023 para 43,2% em 2024, refletindo os impactos das ações implementadas”.
Para este ano (2025), Seasic informou que estão previstas ações estratégicas, como: “Expansão do Cofinanciamento Estadual: Totalizando R$ 34 milhões, garantindo maior suporte aos municípios e ampliação da cobertura dos serviços assistenciais. Cartão Mais Inclusão (CMais): Ampliação para 350 mil beneficiários, com investimento de R$ 60 milhões, garantindo maior segurança alimentar e suporte financeiro às famílias sergipanas. Segurança Alimentar: Distribuição de 1,2 milhão de refeições pelo programa Prato do Povo, expandindo o acesso à alimentação saudável. Infraestrutura: Construção de mais 50 creches-escolas pelo Programa Amei, assegurando espaços adequados para o desenvolvimento infantil. Inclusão Social: Fortalecimento dos programas de apoio às famílias em situação de vulnerabilidade, com ampliação da cobertura e melhoria dos serviços prestados”.
A nota conclui informando que “o Governo de Sergipe reafirma seu compromisso com a promoção da dignidade e do bem-estar da população, por meio de políticas eficazes, planejamento estratégico e ações de impacto que asseguram direitos e oportunidades para todos”.