No início da manhã do último sábado, 7, foi encerrado um dos mais raros, longos e aguardados julgamentos da história de Sergipe. Depois de 12 dias de vários depoimentos, debates e tensões, três ex-policiais rodoviários federais foram condenados pela tortura e morte de Genivaldo de Jesus Santos, 38 anos, ocorridas em 25 de maio de 2022, em Umbaúba, há 100 km de Aracaju. O júri popular ocorreu na cidade de Estância.
Paulo Rodolpho Lima Nascimento foi condenado por homicídio triplamente qualificado e teve a pena estabelecida em 28 anos de prisão. Kléber Nascimento Freitas e William de Barros Noia foram condenados a 23 anos, um mês e nove dias de reclusão, em razão do crime de tortura, tendo como resultado a morte de Genivaldo.
Leia a reportagem anterior desse caso publicada pela Mangue Jornalismo no primeiro dia do julgamento: Começa hoje um raro julgamento: policiais podem ser condenados pela morte de Genivaldo de Jesus.
Para esse desfecho, foram fundamentais os vídeos em que Genivaldo aparece sendo torturado e morto inalando gás numa viatura da Polícia Rodoviária Federal (PRF). As imagens ganharam o mundo, produziram uma série de manifestações e até de alterações em procedimentos na PRF, como o uso de câmeras pelos policiais rodoviários federais. Genivaldo deixou esposa e um filho de oito anos.
Esse processo judicial é tão relevante que foi incluído no Observatório de Causas de Grande Repercussão, um grupo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que acompanha situações de elevado impacto. O grupo atuou nos desastres com barragens em Mariana e Brumadinho (MG), no incêndio na Boate Kiss em Santa Maria (RS) e em vários outros.
A Mangue Jornalismo escutou acadêmicos e pessoas que enfrentaram casos envolvendo letalidade policial para perguntar: se as torturas e o homicídio de Genivaldo não tivessem sido filmadas por populares, os três então policiais rodoviários federais teriam sido condenados?
Nos últimos dias, vários crimes praticados por quem deveria produzir segurança pública colocaram para debate o uso de câmeras por policiais. A PRF, na véspera do julgamento do caso Genivaldo, informou que até o final do primeiro semestre do próximo ano finaliza sua primeira licitação de câmeras corporais. A PRF já usa 200 câmeras corporais doadas, ação que aconteceu depois da morte de Genivaldo.
Entretanto, a quase totalidade de casos de violência policial ocorre com participação das polícias civil e militar, de responsabilidade dos governos estaduais. Em Sergipe, o Governo de Fábio Mitidieri (PSD) resiste em implantar câmeras corporais. Enquanto isso, os casos de letalidade policial colocam Sergipe como o 3º estado mais violento nesse quesito no Brasil. O menor estado mata três vezes mais que a média nacional.
Em 15 de setembro do 2022, o Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público encaminhou uma recomendação para que a Secretaria de Segurança Pública de Sergipe (SSP/SE) promovesse estudos para implementar câmeras portáteis nas atividades das polícias. Foi estipulado um prazo de 30 dias para que a SSP informasse quais medidas seriam adotadas. Mais de dois anos depois, nenhuma câmera foi instalada nos uniformes dos agentes de segurança pública em Sergipe.
Vale registrar que não existem notícias em Sergipe de inquéritos sobre mortes praticadas por policiais civis e militares que tenham passado pelo Ministério Público e foram julgados no Tribunal de Justiça, com agentes de segurança no banco dos réus. Essa omissão histórica, que indica impunidade, pode sinalizar apoio do Estado às ações que naturalizam os assassinatos, pelas polícias, de mais de 1 mil suspeitos de crime nos últimos quatro anos, sempre mortos no alegado “confronto”.
“Sem as filmagens, a família teria enorme esforço para provar a tortura e morte”
O motorista por aplicativo Adalto Soares teve seu filho Alassy Fael Silva Soares, 21 anos, morto por policiais em 13 de março deste ano. A Mangue Jornalismo fez uma reportagem sobre o caso: As dores de Sandra e Adalto não saem no jornal. A história de mais um jovem da periferia de Aracaju morto pela polícia sob alegação de confronto.
Adalto tem certeza que não houve “confronto”, garante que seu filho foi executado, mas ninguém filmou. “Temos perícias, laudos, provas documentais que comprovam tortura e execução, e ainda assim o inquérito aponta para legítima defesa, confronto. Isso é um absurdo”, revela o motorista.
Quando os ex-policiais rodoviários federais foram condenados pela tortura e morte de Genivaldo, Adalto lembrou do caso do seu filho. “Acredito que se não fossem as filmagens eles [policiais] não seriam condenados. E por uma questão muito simples: sem as imagens, a família tinha que fazer um grande esforço para reunir provas da tortura e morte. Além do que, em muitos casos, familiares ficam intimidados e com medo porque estariam mexendo com policiais, e são ameaçados mesmo se começar a apurar”, analisa Adalto.
O motorista tem acompanhado casos de letalidade policial em Sergipe, mas acredita que boa parte dos inquéritos não chega ao Ministério Público e nem ao Judiciário. “Só os policiais são testemunhas e pronto, versão única, e encerra tudo como ‘confronto’. Essa é uma barreira corporativista enorme, mesmo com provas, não avança”, denuncia. Adalto completa com uma questão central, segundo ele: “o Caso Genivaldo só chegou a isso por conta da Justiça Federal. Na esfera estadual, esses que abusam de autoridade, criminosos fardados, sequer são afastados e são as polícias civil e militar quem mais matam”, completou Adalto.
“Se não fosse a conjunção dos fatores, teríamos apenas mais um homem negro pobre morto pelas mãos do estado”
Para Ilzver de Matos Oliveira, professor de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e coordenador do Centro de Pesquisas Jurídicas e Estratégias Públicas e Privadas Antidiscriminação (CEPEJE), os registros da atuação das polícias por celular ou câmeras corporais, aliados à circulação maciça dessas filmagens nas redes sociais e nos meios de comunicação de massa, conseguem provocar – além do debate público – respostas do estado.
Diante das imagens, o estado “se vê obrigado a ao menos se manifestar sobre o conteúdo exposto e – quando devidamente e insistentemente tensionado, sobretudo pela sociedade civil organizada em conjunto com setores progressistas do sistema de justiça – tem que reconhecer que é o principal violador de direitos humanos e que deve realizar as devidas reparações”, analisa Ilzver Matos.
Ele lembra que Genivaldo foi torturado e morto no mesmo dia em que foi filmada a morte de George Floyd – 25 de maio – porém dois anos depois e no Brasil. “Lá nos Estados Unidos, a morte de Floyd com o joelho de um policial branco no seu pescoço enquanto gritava ‘eu não consigo respirar’ – quase pelos mesmos 11 minutos que fizeram Genivaldo morrer sem respirar – gerou uma revolução mundial contra a truculência e violência policial racista”, disse.
O professor diz que as mobilizações sobre o caso Floyd fizeram emergir movimentos como o defund the police, que defende o desfinanciamento das polícias – que recebem parte considerável do orçamento público – para direcionar a outros serviços essenciais que poderiam reduzir índices de criminalidade, como educação, moradia, infraestrutura e programas ligados à juventude. “Aqui, certamente, se não fosse a conjunção dos fatores que descrevemos, nós teríamos apenas mais um homem negro pobre morto pelas mãos do estado, sem julgamento eficaz e sem as mudanças necessárias, as quais, mesmo diante do caso Genivaldo, seguimos esperando”, ressalta Ilzver Matos.
Para além das imagens da tortura e morte: a sentença ajuda mudar a realidade?
A jurista e professora do Departamento de Direito da UFS e uma das maiores especialistas nesse campo no Brasil, Andréa Depieri, acredita que talvez os ex-policiais não fossem condenados se as torturas e morte de Genivaldo não tivessem sido filmadas.
“As imagens têm um enorme poder sobre a opinião pública e os jurados, mas isso precisa nos levar para um outro tipo de reflexão, em termos políticos. Por exemplo, um dos pontos relativos à utilização de câmeras corporais é que seu uso precisa vir acompanhado de novas formas de governança, porque não adianta usar as imagens só para punir, as imagens precisam ser usadas para pensar estratégias racionais de controle das contingências, para fixar protocolos, protegendo a população do uso excessivo de força e os próprios policiais no exercício do seu trabalho”, defende Depieri.
Entretanto, a professora apresenta outra questão relevante para além da filmagem: “a condenação dos policiais nesse caso cumpre um papel simbólico, reforçando o quanto o uso excessivo da força é reprovável”. Ela pontua que, muitas vezes, as punições dos agentes pelo uso excessivo da força são incapazes de evitar a recorrência desse tipo de evento. “É importante que saibamos quais as consequências institucionais decorrentes dessa tragédia, o que fez a PRF como instituição?”, questiona.
Para Andréa Depieri, é preciso parar de festejar condenação porque, no fundo, tudo é uma tragédia. “A prisão dos PRFs não vai impedir que hoje mesmo outros PRFs e servidores policiais se envolvam em circunstâncias de violação de direitos da população”.
Quando Genivaldo foi torturado e morto pelos então policiais rodoviários federais em 25 de maio de 2022, a PRF estava sob responsabilidade do então ministro da Justiça Anderson Torres e do então diretor-geral Silvinei Vasques. “Ambos são acusados de transformar a instituição em uma espécie de guarda pretoriana do bolsonarismo, a ponto de ela ter sido usada na tentativa de impedir eleitores de Lula a comparecerem às urnas no segundo turno de 2022”, lembrou Leonardo Sakamoto em seu perfil nas redes sociais, jornalista, cientista político e professor.
Para ele, “o comportamento dos líderes da PRF sob Bolsonaro ajuda a explicar a sensação de tudo-pode por parte dos agentes. A mesma sensação permeia a Polícia Militar de São Paulo após o governador Tarcísio de Freitas e o secretário Guilherme Derrite, ambos do campo bolsonarista, terem colocado a letalidade policial como centro da política de Segurança Pública”, reforça Sakamoto em seu perfil nas redes.
“O julgamento mostra que a polícia não está acima da lei e não pode continuar como está”
Alexis Pedrão, professor de Direito, doutor em Educação e militante do movimento negro, além de integrante do Núcleo de Negras/os do PSOL, avalia que é “muito difícil falar do julgamento dos policiais que tiraram a vida de Genivaldo. É muito triste tudo que aconteceu. Eu queria mesmo é que ele estivesse vivo, entre nós. É muito triste ter que suportar esse quadro de violência contra a população negra. Muito mais difícil ainda para a família”.
O professor lembra que o julgamento destoou do cotidiano que tem acompanhado, pois numa situação atípica para o Judiciário, policiais foram condenados por homicídio e tortura. “Em tempos de avanço de violência policial em todo o Brasil, o julgamento mostra que a polícia não está acima da lei e não pode continuar como está. Acredito que se a população de forma espontânea não tivesse filmado a situação, talvez não tivesse a verdade prevalecido e a comoção pública”, analisa.
Esse caso reforçou a defensa de Alexis para a instalação das câmeras nos uniformes das forças de segurança. “É uma medida necessária. A luta pelas vidas negras e por repensar o modelo de polícia e de segurança pública, está entre as principais pautas da sociedade hoje”, ressalta.
Alexis lembra que o julgamento do Caso Genivaldo foi muito longo e cansativo e a família fez uma grande resistência durante 12 dias, em audiências que entraram pela noite e no final, na leitura da sentença, entrou, inclusive, pela madrugada. Desde o começo do caso, “foi fundamental o apoio da população e dos movimentos sociais, sindical, partidos de esquerda e parlamentares. Lembro aqui do Movimento Negro Unificado (MNU), do Sintese, do Coletivo Saudade, do Afronte, da Resistência/PSOL, de Sônia Meire e de Linda Brasil”, lista.