A Mangue Jornalismo começa hoje a publicar uma série de reportagens sobre a mobilidade urbana em Aracaju, mas com foco no transporte público. Esta é uma temática fundamental, cheia de cenas nebulosas que envolve desde o direito à cidade até o financiamento de campanhas eleitorais.
Greves de trabalhadores por atrasos de salário, demissões em massa, acidentes de trânsito, veículos velhos e que quebram todo hora e pegam fogo, passagem cara, dívidas e descumprimento dos direitos trabalhistas persistem como problemas crônicos no transporte público da região metropolitana de Aracaju.
Mas apesar da lista de transtornos que perduram há décadas, a Prefeitura de Aracaju segue mantendo esse serviço nas mãos de empresas que têm centenas de condenações na justiça trabalhista. Pior, a prefeitura está ofertando milhões de reais como ajuda para os empresários desse setor.
O aporte financeiro dado pelo prefeito Edvaldo Nogueira (PDT), previsto para alcançar a cifra impressionante de R$ 40 milhões neste ano de 2024, responde diretamente à reivindicação dos empresários do setor.
O montante milionário foi aprovado na Câmara Municipal no último dia de novembro e compreende: um subsídio sobre o custo das passagens de ônibus no valor de R$ 24 milhões, além do pagamento pela gratuidade para passageiros portadores de deficiência e seus acompanhantes no transporte público e da isenção do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN).

Reajuste da tarifa e falta de transparência
Os donos das empresas, no segundo semestre do ano passado, pediram um ajuste na tarifa de ônibus, elevando-a de R$4,50 para R$5,00. Vale destacar que o incremento de cinquenta centavos, equivalente a 11,18%, supera a taxa de inflação acumulada desde o último reajuste ocorrido em abril de 2022, que, conforme dados do IBGE, ficou em 6,35%.
O aumento do preço da passagem foi baseado em uma planilha de custos apresentada pelas próprias empresas à prefeitura por meio do Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros de Aracaju (Setransp).
A Mangue Jornalismo teve acesso à planilha, um documento de três páginas repassado pela Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito de Aracaju (SMTT) aos vereadores da cidade para justificar a aprovação do aumento a toque de caixa.
Sem apresentar notas fiscais e detalhar aspectos importantes relativos aos custos dos insumos – como valores discriminados, quantidades consumidas ou dados comparativos – a planilha estimou o valor total do subsídio necessário para congelar o preço da passagem durante 2024 e manter o funcionamento do serviço público essencial para a população.
Se no final de novembro a Prefeitura de Aracaju anunciasse um aumento da tarifa para R$ 5,00, a cidade teria a segunda passagem de ônibus mais cara de todo Nordeste, atrás apenas de Salvador, que aumentou sua passagem no mesmo mês para R$ 5,20. Medida impopular junto aos eleitores que vão às urnas em outubro deste ano.
Na sessão da Câmara Municipal que aprovou as reivindicações dos empresários do transporte, apenas os vereadores Sônia Meire (PSOL) e Camilo Daniel (PT) votaram contra o aumento, criticando a falta de transparência da SMTT, as inconsistências da planilha e o fato do subsídio ser concedido sem a garantia de normalização das condições de trabalho dos rodoviários e a melhoria do transporte público.

Greve por salários, empregos e dívidas trabalhistas
Em primeiro de dezembro passado, trabalhadores rodoviários do Grupo Progresso, que abrange as empresas Tropical, Paraíso e Progresso, paralisaram os trabalhos por um dia reivindicando o pagamento de salários, incluindo os 13ºs de 2022 e de 2023.
“Por parte das empresas, não há garantia de pagamento dos salários e das dívidas com os trabalhadores. Nem há garantia da renovação ou manutenção da frota de ônibus. A prefeitura não esclarece de onde este dinheiro virá, muito menos qual será a contrapartida das empresas. O aporte é um cheque em branco para os empresários”, condena Sônia.
Adão Alencar, um dos advogados que representa ex-trabalhadores rodoviários, estima mais de mil processos trabalhistas em execução contra as empresas do Grupo Bomfim e Grupo Progresso.
Segundo Alencar, ao todo, a Bomfim está em dívida com cerca de 970 trabalhadores, e a empresa Progresso em dívida com cerca de 300. “Há em torno de R$ 100 milhões de dívidas trabalhistas relativas à Bomfim. No que se refere à Progresso, na última atualização, realizada em 2022, estimava-se uma dívida de oito milhões de reais”, calcula o advogado.
“Foi construída uma narrativa de que o transporte público só funciona com subsídio. O subsídio mascara o aumento da passagem dos ônibus. O fato real é que a passagem foi aumentada em 50 centavos, e o município vai pagar. E qual o método para aumentar essa passagem? Não há transparência alguma. O aumento é decidido pela SMTT a portas fechadas, sem acesso a uma planilha verdadeira”, reclama Camilo Daniel.

As três páginas que justificam dezenas de milhões.
Durante a votação na Câmara Municipal para a aprovação do subsídio, Sônia Meire apresentou uma análise da planilha de custos alertando que o cálculo feito para justificar o aumento indica graves irregularidades em vários itens, que “corroboram para distorcer e aumentar, ilegalmente, os custos e o valor tarifário.”
Na análise ignorada pela maioria dos parlamentares, a vereadora do PSOL alertou para o fato de as despesas com combustível, óleos, lubrificantes, rodagem e aquisição veículos e peças e acessórios, que correspondem a cerca de 40% do valor do cálculo, não possuírem comprovação através de documentos como orçamentos e notas fiscais em nome das empresas de ônibus.

“É obrigação, é dever enviarem para a SMTT as notas informando o preço de quanto foi pago em cada litro de óleo, cada litro de lubrificante, de combustível, troca de peças. Para que se possa avaliar se o valor colocado ali condiz com a necessidade da empresa que justifique inclusive um aumento de tarifa ou subsídio”, critica Sônia.

Outro ponto questionado pela análise apresentada pela parlamentar se refere às despesas com funcionários. “As despesas de ‘Pessoal’ também possuem inconformidades, como o cômputo de salário e encargos sociais de cobradores (função extinta no sistema) para o cálculo de outras rubricas”, explica o documento.

Por fim, a análise apresentada por Meire aponta “o número de veículos novos e o aumento ilegal dos percentuais da taxa de remuneração da frota, também corroboram com a situação de irregularidade no cálculo tarifário.”

Não é a primeira vez que Edvaldo tenta socorrer os empresários
Em sete anos contínuos de administração, não é a primeira vez que Edvaldo Nogueira tenta socorrer financeiramente as empresas de ônibus com aporte financeiro. Em abril de 2022, em meio às reclamações dos trabalhadores rodoviários por atrasos salariais, a prefeitura já havia concedido para as empresas de transporte público a isenção de ISSQN e o pagamento pela gratuidade para passageiros portadores de deficiência.
“Este foi o primeiro passo dado por nós, como forma de tentar minimizar essa situação difícil que o sistema está enfrentando. Todas as medidas definidas são emergenciais, para um prazo de um ano, mas, com toda certeza, vão melhorar o sistema de transporte urbano da nossa cidade e, mais do que isso, impedir que o sistema entre em colapso”, afirmou na época o prefeito de Aracaju.
Desde 2015, os municípios de Aracaju, Socorro, Barra dos Coqueiros e São Cristóvão têm como meta a criação do Consórcio Metropolitano do Transporte da Grande Aracaju para gerir o serviço de mobilidade urbana na região. Sem funcionar efetivamente, o município de Aracaju tem sido responsável pela gestão do transporte na região.
Sob o argumento de que seria necessário o funcionamento do consórcio para que se faça uma licitação pública que atenda adequadamente à demanda da população, a Prefeitura de Aracaju tem mantido de forma precária, há décadas, o transporte público nas mãos das empresas Viação Progresso, Transporte Tropical, Viação Paraíso, Viação Modelo, Viação Harley, Capital Transporte e Viação Atalaia.
Não é concessão, mas apenas uma “autorização”
À reportagem da Mangue Jornalismo, a SMTT de Aracaju explicou por meio de sua assessoria de imprensa que a cidade não possui contrato de concessão com as empresas. “O que existe é uma autorização, mediante a ordem de serviço, com as empresas que fazem parte do sistema de transporte coletivo.”
A secretaria não informou quais os critérios que tem utilizado para manter a relação com as empresas prestadoras do serviço, mas destacou “que os critérios que serão adotados na licitação estão sendo analisados, mas, seguramente, serão adotadas as melhores práticas de concessão que existem no país.”
A SMTT informou ainda que “conforme divulgado pelo prefeito de Aracaju, Edvaldo Nogueira, na última reunião do Consórcio Metropolitano do Transporte da Grande Aracaju, os trabalhos estão sendo desenvolvidos para a licitação ser lançada em março de 2024.” A reportagem tentou contato com o Grupo Progresso, Grupo Bonfim e com a Setransp, mas não obteve resposta até o fechamento da matéria. A Mangue Jornalismo continua aberta para receber as explicações e atualizar a reportagem assim que os dados forem enviados.
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