YÉRSIA SOUZA DE ASSIS, especial para Mangue Jornalismo
(@yersiassis)
A seção PONTO DE VISTA é um espaço que a Mangue Jornalismo abre para que pessoas convidadas expressem ideias que estimulem o interesse e o debate público sobre uma temática. O artigo deve dialogar com os princípios da Mangue (que estão na parte de transparência do site), entretanto não precisa representar necessariamente o ponto de vista da organização.
Me dirijo a você que me lê, e a primeira informação que tenho a oferecer é: neste feriado, nesse nosso primeiro feriado nacional em celebração, recuperação histórica e de justiça racial à memória de Zumbi de Palmares e, logo, a toda comunidade negra brasileira. Estamos diante de uma mudança no nosso calendário nacional que coloca em outras perspectivas o debate político que o movimento social negro tem buscado pautar.
Nosso primeiro feriado nacional se origina de uma data que é eminente reivindicativa, mas, sublinho aqui a dimensão celebrativa. No feriado conquistado pelo povo negro, mas ofertado a toda população nacional, celebremos ouvindo Anne Carol.
Considero que uma das formas de celebrar essa data é fazer uma audição ao trabalho dessa artista. Mas não fique apenas aí, temos artistas e grupos importantes que revelam e sublinham a cultura afro-sergipana, ou talvez, o que temos de afro em nossa sergipanidade.Gostaria de ter espaço para discutir essa nominação e categoria de/do afro. Não havendo, fica como sugestão leituras de textos de Beatriz Nascimento e Severo D’Acelino, para pensar a partir e através de intelectuais de Sergipe. Contudo, assinalo que faço uma escolha pelo afro, entendendo que o termo segue em disputa, seja na perspectiva política, semântica, cultural, analítica e mesmo sensorial.
Mais do que afro-brasileiro ou africano, estou considerado afro como entre lugar que produz e mobiliza diferentes sentidos quando se é acionado. E mais do que isso, o afro, enquanto categoria, não se encerra em si, segue operando em diversos contextos e situações. Para mais das vezes, nesse texto aciono afro na extensão da negritude.
Mas, bom, retornando: vá ouvir Anne Carol. E você que me lê talvez esteja se perguntando: por que ouvir Anne Carol? Anne Carol tem sido uma voz – corpo – território que desponta com uma força e uma concepção negra-quilombola das mais felizes e vigorosas da nossa Sergipe negra e feminina.
Meu último encontro, se é que posso nomear desta forma, com Anne Carol, se deu no festival Radioca, evento que acumula uma historicidade em trazer atrações que despontam na cena da música independente. Acertadamente, a curadoria do referido festival trouxe Anne para brindar o público baiano, e também sergipano e de outros lugares com seu show espetáculo. Nos contando desde o início de sua apresentação que se trata de uma cantora que é também quilombola, Anne trouxe uma – Sergipe negra, localizada e enunciada também a partir deste legado. Sem cair em clichês ou mais do mesmo, Anne, com sua voz e corpo, ofereceu um show sofisticado, bonito e com sotaque. Vou sublinhar o sotaque como sendo a expressão que nos leva às outras dimensões desse show.
Com seu sotaque afro-sergipano, Anne anunciou de onde vinha, o que fazia e por que de corpo e alma ela é uma “negra soul”. Inclusive, considero que o ponto alto dessa apresentação, que aconteceu entre um fim de tarde lindo e o início de noite com uma lua nova, foram as sequências de “Negra Soul” e a versão de “Deixa gira girar” dos Tincoãs.
Anne e sua banda cresceram no palco e reverberam em todas as pessoas que ali estavam. Me senti transportada para o solo massapê sergipano, do Vale do Cotinguiba, espaço – território que é também uma ideia das negritudes sergipanas. As camadas de Sergipe negra e feminina vão sendo reveladas, e não como nos velhos livros de história, mas resgatadas nas nossas memórias, para fazer um paralelo com a própria canção “Negra Soul”. Nesta mesma canção, Anne interpela: “mas me diga quem sou eu?” Essa que pode ser uma pergunta coletiva direcionada ao povo de Sergipe: quem somos nós? E quem somos nós, racialmente pensando, enunciando, se localizando? Somos também “Negra Soul”, e é tão evidente e explícito que somos também “Negra Soul”.
Anne Carol nos provoca, nos questiona e nos direciona a entender que “Negra Soul” significa observar o quanto de herança negra temos na vida e nas sociabilidades sergipanas. Passando pelos nossos territórios negros, especialmente os reconhecidos: sublinho assim, os quilombos – e pergunto, a você que me lê: quantos quilombos em Sergipe você conhece?
Fica como tarefa do feriado: ouvir Anne Carol e buscar informações sobre os quilombos sergipanos – até as diversas manifestações culturais afro-sergipanas: Samba de Coco, Samba de Pareia, Samba de Aboio, Parafusos, São Gonçalo, Caboclinhos e Lambe Sujo, Bacamarteiros, Taieiras, Maracatu, Cacumbi, os nossos Candomblés, os nagôs sergipanos, as Cheganças para citar algumas das celebrações negras que acontecem em nosso Estado. Celebrações que preenchem, inclusive, o que temos de contribuição ao 20 de novembro.
Ao nosso feriado nacional afirmamos com todas as forças: Sergipe é território negro, e podemos provar. Anne Carol pode nos provar com suas músicas e voz negra-quilombola. As ligações celebrativas estão postas: do quilombo, passando pelas manifestações culturais e chegando em Anne Carol, nossa sergipanidade se qualifica por meio de um lugar racialmente marcado, demarcado e sonoramente identificado, e é negro, melhor, é negra, é mulher negra.
Com seu show em Salvador, Anne, você apontou os sotaques negros da memória e do presente sergipano, e mais que isso, ecoou futuros. E ao grifar algumas das nossas manifestações afro-sergipanas, sublinho a quantidade de herança afro que Sergipe oferece ao nordeste e ao Brasil.
Quem me lê vai me perdoar, na perspectiva de não trazer elucubrações sonoras mais sofisticadas, não sou música, não sou da música. Sou uma boa ouvinte, e talvez, uma boa observadora do mundo social e de suas imbricações. Meu interesse foi esse: demonstrar, a partir de Anne Carol, as possibilidades inerentes que circulam na nossa cultura negra sergipana, nas qualificações que podemos e devemos avistar quando pensamos sobre a nossa sergipanidade.
Em dia de feriado novo no calendário, mas com um histórico de legado que ultrapassa muito mais que um século, termos um dia para celebrar este espólio é mais do que necessário, é justo. De novo, para não esquecer: vá ouvir Anne Carol. E aproveitando que vai ouvir, também dance e celebre.
Viva a cultura negra sergipana!
Bom feriado!
Yérsia Souza de Assis é doutora em Antropologia pela UFSC. Estágio pós-doutoral em História pela UFS. Professora adjunta de Educação e Relações Étnico-Raciais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Realizadora Audiovisual. Integrante do Samba de Aboio/Festa de Santa Bárbara. Ekedjí no Ilè Àsé Ìyá Ágbà L’odò Omiró . Faz parte da Rede Mulheres Negras de Sergipe e do Coletivo de Estudantes Negras e Negros Beatriz Nascimento.