Este é o terceiro artigo do Projeto Mangue Jornalismo História e que trata da ditadura militar e a Diocese de Propriá, no Baixo São Francisco, em Sergipe.
OSNAR GOMES DOS SANTOS, especial para Mangue Jornalismo
(osnar.gomes@hotmail.com)
Edição: CRISTIAN GÓES
Os anos 1970 começaram animadores para a Diocese de Propriá. De outros estados e também de outros países, religiosos e leigos chegaram para atenuar um problema antigo da instituição: o parco número de sacerdotes. A maioria deles veio sintonizada com a abertura da Igreja Católica para os dilemas do mundo contemporâneo.
Em pouco tempo, a diocese passou a contar com uma equipe missionária. Esta defendeu o “cristianismo das origens”, e a sua opção pelos pobres esteve pautada na prática da libertação do povo.

Essa equipe missionária esboçou uma ruptura com modelos ditos tradicionais de relação entre clero e sociedade. A sua aproximação com os pobres gerou estranhamento da população local, além de desencadear constantes monitoramentos da ditadura militar e uma oposição ostensiva de oligarquias sergipanas.
Apesar da chegada dos novos religiosos, o quadro clerical diocesano ainda estava muito abaixo do necessário. No ano de 1974, quase 15 anos após a fundação da diocese, o problema da falta de padres persistia. Naquele ano, a Diocese de Propriá contava com 25 municípios e 13 paróquias. A população abrangida já era de 197.688.[1]
Diante da escassez de padres, um número cada vez maior de religiosos estrangeiros aceitava o convite de atuar na região ribeirinha. Foi dito assim pelo bispo dom Brandão: “A Diocese de Propriá, por falta de padres autóctones, está servida por um grande número de padres estrangeiros”.[2]
Um desses padres foi Domingos Puljiz, que esteve à frente da Cooperativa Camurupim. Nascido na Bélgica, filho de iugoslavos, o padre Domingos foi um dos estrangeiros mais perseguidos da diocese, em razão do seu trabalho com o povo.
Residente no povoado Santa Cruz, do município de Propriá, o padre era conhecido pelos seus trabalhos de conscientização sobre a educação cooperativista, desde fins da década de 1960. Laborioso, coordenou a Cooperativa Agrícola Mista e de Colonização do Camurupim.
Contudo, desde o início dos anos 1970, a sua atuação, junto com a dos religiosos estrangeiros que compunham a Cooperativa Camurupim, foi vigiada pelos órgãos de informação e repressão da ditadura.
As pressões contra o padre seguiram num ritmo crescente, como aponta o dossiê montado sobre ele pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Foram levantadas denúncias contra a sua atuação e calúnias sobre o seu comportamento moral. Isso ocorreu por quase todos os anos em que atuou na diocese.[3]
Tanto o padre quanto a cooperativa causaram as mais variadas suspeitas da chamada “comunidade de informações” da ditadura militar. De acordo com o historiador Paulo César Gomes, a ditadura contou com um complexo sistema de informações que extrapolou as suas funções ao entrar na esfera particular da vida dos cidadãos.
Essa comunidade de informações foi “mais uma maneira de ‘caçar’ os inimigos da ‘Revolução’, isto é, mais um dos tentáculos do aparelho repressivo [da ditadura]”.[4]
As novas práticas missionárias da Diocese de Propriá colocaram a instituição na mira da comunidade de informações da ditadura. O complexo sistema de informações do regime militar apontou as suas suspeitas contra a atuação do clero diocesano, em especial o estrangeiro. O seu primeiro alvo tinha descendência iugoslava: o padre Domingos.
A chegada marcante do padre Domingos Puljiz
A equipe missionária deu maiores contornos à ruptura da diocese com o antigo estilo paternalista. Não tardou para que inconvenientes surgissem em seu caminho.
No ano de 1973, ocorreu aquilo que foi entendido pelo padre Isaías como “o primeiro enfrentamento público envolvendo a diocese”. O caso aconteceu na Cooperativa Camurupim, em agosto daquele ano.
A cooperativa estava na mira da comunidade de informações da ditadura. Esse foi o histórico da entidade traçado pelos aparelhos de espionagem. Foi colocado que:
- A Cooperativa […] Camurupim, fundada em 13 de Jan[eiro] de 1970, tendo como associados fundadores trabalhadores rurais, que, desde 1967, sob a orientação do PADRE DOMINGOS PULJIZ, foram motivados para a constituição da Cooperativa.
- O PADRE DOMINGOS adquiriu uma gleba de 120 ha e instalou parte dos paroquianos (agricultores que constituíram a cooperativa) e num trabalho coletivista, invocado em nome da Fundação Cooperativista, efetivou os trabalhos de desmatamento, destocamento e preparo do solo no ano de 1969, visando o ano agrícola de 1970.
- Em 13 de Jan[eiro] 1970, fundação da Cooperativa, 112 associados se comprometeram, solidariamente, a integralizar um montante de Cr$ 28.050, 00 e cotas partes valoradas em Cr$ 5,00 representadas por uma jornada diária de trabalho.
- A Cooperativa tem no INCRA […] registro de funcionamento nº 3.216 e na Superintendência da Agricultura e Produção – SUDAP através do DOAG, consentimento para funcionar nº 76 […].
- O terreno foi doado à Cooperativa pelo PADRE DOMINGOS, através da escritura pública […].[5]
Por seu turno, a versão do padre Domingos sobre o histórico da entidade foi elaborada numa conferência em Aracaju. Ao invés de números, para contar a história da cooperativa, o padre Domingos, coordenador e mentor da entidade, explorou os motivos que o levaram a criá-la.
O padre chegou em Propriá na manhã do dia 09 de junho de 1967, vindo diretamente do Rio de Janeiro. Segundo as suas palavras, foi “colocado diante de uma realidade insuportável para um cristão”. Recordou ter visitado uma mulher largada pelo marido, vivendo com cinco crianças numa casa de palha vazia. Foi a primeira família que teve contato. Disse ter ficado horrorizado.
À noite, no casarão dos padres, contou que se sentiu mal: “Fazendo a revisão do dia e tentando descobrir novos apelos do Senhor Nosso Deus, senti a revolta dentro de mim, a revolta do amor”.
Disse também que ouviu esta resposta de Deus: “Tu és lá para isso, para tornar crível, verdadeiro, o meu amor para com este mundo; mas não um amor piegas, feito de esmolas […]”. Foi assim que o padre iniciou a sua jornada. Chamou-a de “a minha loucura”. Comentou que precisava conhecer o povo a quem iria servir e para quem iria ser sacerdote. Disse não se tratar de um conhecer intelectual, mas um conhecer bíblico, experimental, vivencial. Continuou o padre:
A meu pedido, depois de 6 meses de corre-corre através da Diocese de Propriá, o meu Bispo Dom José Brandão de Castro, junto aos padres aceitaram a minha escolha: a vida junto aos mais pobres da Lagoa da Cotinguiba situada entre Propriá e Neópolis, e cercada de 12 povoados, comunidade agrícola, meeiros sofredores de um sistema ultrapassado, o sistema da meia.
Pouco a pouco entrei na mentalidade do povo, adquiri mais experiências, experiências verdadeiras porque adquiridas pela vivência cotidiana e íntima com os mais pobres e abandonados, os desesperados e desprezados. Comia de manhã numa casa, almoçava numa outra e jantava numa outra, dormia numa outra. Quando se fala de comer, se entende. Muitas vezes, fim de semana, voltava para Propriá para me alimentar melhor, tomar um bom banho e descansar.
[…] Mas vocês poderiam me perguntar, mas por que o senhor escolheu o Cooperativismo? Porque ele é o sistema […] mais democrático que eu conheço, respeita a liberdade e a independência do homem […].
Os objetivos, desde o início da preparação para conscientização sobre a realidade, como os objetivos dos projetos da cooperativa em formação, visaram tomar o homem como agente do seu desenvolvimento próprio e do desenvolvimento da comunidade […].[6]
Momento da entrega, feita pelo Banco do Brasil, a José Antônio de Bonfim, presidente da Cooperativa Camurupim, do comprovante […] referente à compra da Fazenda Cabo Verde pela Cooperativa Camurpim. (Crédito: A Defesa, 15 de julho de 1972) Governador Paulo Barreto e bispo dom Brandão visitaram a cooperativa Camurupim (Crédito: CDJBC)
Nada parecia indicar um caráter subversivo na posição e nos objetivos da Cooperativa Camurupim. Ainda assim, algo motivou a polícia federal a articular uma busca policial que atingiu até o núcleo da entidade, o Centro Social do Povoado Santa Cruz.
“Assunto de Segurança Nacional”: a busca policial na Cooperativa Camurupim
Por qual motivo uma equipe da polícia federal foi designada a fazer buscas na Cooperativa Camurupim? Qual a razão de uma operação ser montada por motivos de Segurança Nacional numa entidade agrícola com registro de funcionamento?
Segundo consta num relatório produzido pela diocese, o padre Domingos foi até a sede da polícia federal, em Aracaju, para saber os motivos da operação. Recebeu uma única informação: tratava-se de “assunto de Segurança Nacional”.[7]
Um importante documento de caráter confidencial e sigiloso parece oferecer as respostas. Trata-se de uma compilação de documentos confidenciais organizada pela comunidade de informações da ditadura.
Da Agência Salvador (ASV/SNI) saiu a maior parte das informações sobre a batida policial. Foram difundidas para a Agência Central daquele órgão (AC/SNI).[8] Tal compilação traz informações preciosas sobre a operação na Cooperativa Camurupim.
O primeiro documento data de abril de 1972. Nas primeiras conclusões do levantamento, os asseclas da Agência Salvador admitiram considerar a atividade cooperativista como uma das áreas estimuladas pelo governo federal para corrigir as desigualdades regionais e as disparidades socioeconômicas.
Também assumiu que o Plano de Expansão da Cooperativa Camurupim se constituía numa das contribuições necessárias para levar avante o desenvolvimento do vale do São Francisco. Porém, notavam que alguns pontos os faziam crer em seu insucesso. Eram eles: os objetivos não estariam bem definidos quanto a posse do patrimônio e, sobretudo, quanto a coordenação do bispo dom Brandão e a orientação do padre Domingos Puljiz. Ambos considerados envolvidos em “atividades subversivas”.
Em razão disso, ainda em abril daquele ano, a Agência Salvador trouxe à baila o perfil traçado pela comunidade de informações, no ano de 1970, daqueles dois religiosos que aventavam suspeitas. Sobre o padre Domingos, o levantamento não perdeu tempo em caracterizá-lo como “um subversivo da ala de D. Hélder Câmara, que continua agindo em Propriá e Neópolis”.[9]
O resumo sobre o padre Domingos enfatizou a presença de freiras estrangeiras que atuavam com o religioso. Além disso, lembrou a intervenção do padre numa questão trabalhista julgada no município de Neópolis. Foi dito que a sua impertinência a favor do reclamante fez o juiz Aloísio Braga pedir que o retirassem da sala de sessões, a fim de poder encerrar os trabalhos.
Ainda lembrou que, no dia seguinte, o padre foi à casa do fazendeiro Geraldo Gomes Freire, mandando freiras e outro padre belga exigirem dele dois mil cruzeiros para o trabalhador que havia perdido a questão na justiça.[10] A Agência Salvador tinha uma clara intenção em reforçar o perfil “inconveniente” do padre Domingos.
No tocante a dom Brandão, foi dito o seguinte:
O Bispo da cidade de Propriá […] está dando inteiro apoio a um grupo de padres belgas nas suas atividades esquerdistas, destacando-se entre eles os padres Domingos e Nestor […] Mathieu, que acompanhados das freiras belgas e uma de origem japonesa estão atuando em toda a zona rural daquela região, fazendo sessões cinematográficas com aparelho instalado numa camioneta, procurando as principais praças públicas aonde chegam, a fim de passarem filmes da Rússia e da China comunista, com propagandas educativas daqueles países.[11]
Importa reiterar que o perfil dos religiosos foi traçado anos antes, em novembro de 1970. Voltou a aparecer nos levantamentos de 1972 sobre a Cooperativa Camurupim. Como podemos notar nos perfis traçados, há uma ênfase nas atividades do clero estrangeiro. Sem dúvidas, este incomodava os quadros do serviço da ditadura.

Outros encaminhamentos confidenciais focaram na presença de estrangeiros nos povoados do município de Propriá.[12] Todas essas suspeitas culminaram na busca policial do dia 27 de agosto de 1973. A operação foi orquestrada por elementos da Delegacia da Polícia Federal de Sergipe.
Para a Agência Salvador, tudo indicava que foi uma operação mal planejada ou precipitada. Segundo o informe do órgão da ASV/SNI, a operação de busca foi efetuada por elementos da polícia civil e da polícia federal, acompanhados pelo 2º delegado de Aracaju, o bacharel José Garcez Vieira Filho.
Na apreciação feita pela ASV/SNI, os motivos que a fizeram criticar a operação ficam claros. Primeiramente, é preciso dizer que a agência regional advogou desconhecer as razões para a busca, visto que não recebeu da Delegacia da Polícia Federal em Sergipe qualquer informação sobre ela, nem antes nem depois de ser feita.
Ainda pontuou que a Delegacia da Polícia Federal em Sergipe “vem adotando, como norma, não comunicar a ASV/SNI as atividades desenvolvidas pela mesma no Estado de Sergipe”.[13]
Mesmo reconhecendo que havia informações não confirmadas sobre atividades suspeitas e tendências esquerdistas nos dirigentes da cooperativa, a ASV/SNI entendeu a operação como negativa, dando margem a diversas explorações do caso. Citaram, por exemplo, o Boletim Semanal da CNBB, publicado em 14 de setembro de 1973, onde o imbróglio foi repercutido no item “Novos Problemas do Nordeste”. Uma péssima notícia para os agentes de segurança, pois a sua malfadada operação ganhou repercussão nacional.
O outro motivo que causou a desaprovação da Agência Salvador sobre a busca policial era mais simples: nada foi encontrado na cooperativa.[14] A reação à ofensiva contra a cooperativa veio a galope. O bispo da diocese enviou em anexo o relatório sobre o ocorrido ao ministro da Justiça Alfredo Buzaid.
No relatório, o bispo defendeu que a cooperativa “tem a especialidade de ser composta por camponeses que não tinham terra e agora estão muito satisfeitos com o que já conseguiram”. Porém, desde o início das suas atividades, frisou o bispo, “essa Cooperativa esteve sempre sob a mira dos órgãos encarregados da Segurança Nacional, sem razão alguma, a não ser denúncias falsas que têm sido sempre desmentidas”.
Dom Brandão enviou o comunicado ao ministro, afirmando que ele precisava tomar conhecimento do fato. O relato acerca da operação iniciou da seguinte forma:
Estando ausente o Pe. Domingos Puljiz, Coordenador da Cooperativa Camurupim, assessorada por técnicos da SUDAP, ANCARSE e BANCO DO BRASIL, a cooperativa recebeu a visita de 8 (oito) agentes da Polícia Federal de Sergipe, acompanhados do 2º Delegado da Capital, Dr. José Garcez Vieira Filho, e do investigador, Isac Freire, todos armados, ostensivamente de revólveres e um deles com uma metralhadora, sempre em punho.
Foi no dia 27 de agosto findo. Mais ou menos, às 16 horas, dois carros com esses policiais chegaram à cancela da Fazenda Cabo Verde, sede da Cooperativa, encontrando, nesse momento, o Sr. José Rito, associado da Cooperativa, que saía com o jipe da mesma. Fizeram-no parar, tomaram-lhe as chaves do carro e lhe ordenaram que levantasse os braços, obrigando-o a entrar num dos carros deles e a acompanha-los até a sede da Cooperativa.[15]
Na continuação do relatório, o bispo explicou que entraram na sede, incluindo um dos elementos armado com uma metralhadora. Declararam ser da Polícia Federal e que estavam fazendo uma busca. Revistaram os escritórios da Superintendência de Agricultura e Produção (Sudap), da Associação Nordestina de Crédito e Assistência Rural (Ancarse) e do Banco do Brasil. Depois de pararem pessoas na garagem da cooperativa, os policiais seguiram para a residência do padre Domingos e das freiras que ajudavam nos trabalhos da entidade.
Tratavam-se das irmãs da Congregação São Vicente de Paulo de Gysegem. Também elas estavam ausentes, pois davam aula de corte e costura, catequese e artes domésticas no povoado Nussuípe.
Dirigindo-se à casa do padre Domingos e das freiras, disse o bispo: “Sempre de metralhadora apontada, exigiu do Irmão Guido [Branco], Redentorista que dirige um dos tratores da Cooperativa e que saía para buscar o seu cavalo, todos os seus documentos e que abrisse a casa para eles”.
Guido Branco foi buscar as chaves na casa do vice-presidente da cooperativa, que morava junto ao setor de vendas. Algumas pistas fizeram a diocese deduzir que a operação buscava encontrar armas. Comentou: “Puseram uma cadeira em cima de uma mesa e Isac Freire, investigador que trabalha em Propriá, foi encarregado de verificar se havia armas no forro da casa, mas nada encontrou”. E mais:
Vasculharam a casa toda, abriram malas, olharam cartas, caixotes, reviraram colchões e ficaram impressionados com a quantidade de “slides” educativos que encontraram, destinados à Escola Agrícola de Camurupim, já construída pela SUDAP graças ao apoio total do Governador Paulo Barreto, grande incentivador do cooperativismo em Sergipe.[16]
Os aposentos das freiras também foram revistados. Curioso notar que o leigo Guido Branco chegou a advertir os policiais que aquelas freiras não tinham nacionalidade estrangeira.
No Centro Social em Santa Cruz, da cooperativa, os policiais agiram da mesma forma. Foi dito: “Eles mesmos abriram as portas, pois não havia ninguém, e entraram. Vasculharam também o quarto do irmão Guido, bem à vontade”.
Perguntas foram feitas por eles: “Por que tem um cadeado na cancela do Centro?”; “Por que as janelas têm tela?”; “Por que tem tanto dinheiro miúdo na gaveta do padre?”.[17] Perguntas estranhas, que pareciam querer forçar uma situação inexistente.
O relatório diocesano, assinado pelo bispo, ainda informou que houve a intenção por parte dos policiais em levar uma foto do padre Domingos com uma criança indígena do município alagoano de Porto Real. A criança devia ter por volta de quatro ou cinco anos de idade, segundo a informação. O presidente da cooperativa, José Antônio do Bonfim, e o agrônomo da Sudap, Alfredo Seixas, impediram que a foto fosse levada.
Fica a questão: havia algum motivo venal na intenção dos policiais? Tratava-se de uma tentativa de macular a imagem do padre na região? A pergunta pode ser feita, uma vez que, no meio das muitas ofensivas contra o padre Domingos, fabricavam-se testemunhos que tinham por objetivo atacar a sua reputação.[18]
Padre foi acusado mentirosamente de desvirginar quatro jovens mulheres
O investigador Isac Freire, lotado em Propriá, enviou à Secretaria de Segurança Pública de Sergipe (SSP/SE) informações sobre o padre Domingos e a Cooperativa Camurupim. Em uma delas, acusava o padre de desvirginar e manter relações sexuais com quatro jovens mulheres entre 18 e 20 anos de idade. A Delegacia de Polícia Federal de Sergipe (DPF/SE), junto daquela secretaria, levantou quatro testemunhos contra o padre.
As acusações foram desmentidas pelas jovens. Elas negaram ter relações com o padre e se submeteram a exames médicos, acompanhadas de testemunhas, para provar o caráter difamatório das acusações. Com atestados de exames ginecológicos, as moças procuraram atestar a virgindade, o que provaria que não mantinham relações com o padre. Uma delas disse:
“[…] sabedora da difamação feita ao meu respeito, contra a minha honra, na cidade de Propriá, peço que seja feita justiça e um processo contra os difamadores, pois que submeti a exames que comprovam minha virgindade. Atesto […] que estou providenciando pelo Instituto Médico Legal de São Paulo uma declaração da minha integridade moral”.
As declarações das mulheres foram carimbadas em maio de 1974. Isso prova que, mesmo depois da busca policial, ainda rendiam maldizeres contra a cooperativa e o padre Domingos.[19] A ampliação de informações da polícia política sobre o padre Domingos tinha o claro objetivo de minar a sua influência na região.
O autoritarismo da ditadura contra o cooperativismo do padre Domingos
Vale salientar que, antes mesmo da busca policial, o padre Domingos suscitou as mais variadas reações de órgãos de segurança. Em razão disso, o presidente da cooperativa enviou ao secretário de Segurança do Estado de Sergipe esclarecimentos sobre algumas das acusações contra aquele padre e contra a cooperativa. No que toca as visitas de estrangeiros à cooperativa, foi dito que:
As visitas que aqui recebemos são inúmeras, inclusive de estrangeiros de diversos órgãos que nos doaram valores e que simplesmente, a título de visita, pois nenhum compromisso assumiu esta Entidade a não ser a boa aplicação dos recursos vindos da Misereor, da Alemanha, da Oxfam, da Inglaterra, Entr´Aide et Fraternité, da Bélgica e outros que nos ajudaram e ajudam.[20]
O caso na Cooperativa Camurupim aclara o teor autoritário da lógica desenvolvimentista da ditadura. Como visto anteriormente, a polícia política considerou os trabalhos realizados pela cooperativa necessários para atenuar desigualdades e admitiu que não fugiam dos marcos do desenvolvimentismo. Porém, a sua autonomia, o seu trabalho de conscientização e a forma como a entidade atuava para superar o antigo sistema de meação no campo foram vistos com suspeição.
Ainda no ano de 1969, outro exemplo desse teor autoritário pode ser encontrado no ofício assinado pelo delegado regional da Polícia de Propriá, Augusto Andrade de Moraes, endereçado para o coronel comandante da Polícia Militar de Sergipe. No ofício, nada se afirmou contra o cooperativismo. Foi ele novamente entendido enquanto uma “doutrina sã”. Porém, apareceram reações contrárias quanto ao fato da ideia de fundar a cooperativa na região ter vindo do padre Domingos.
Malquisto pelas suas “inconveniências” e lido no informe da delegacia de polícia como um: “sacerdote de uma perspicácia incomum, já suspeito pelas Forças Armadas, no que acreditamos haver pensamentos maléficos de subversão nesse seu intento em criar o cooperativismo”.[21]
Ainda que a busca policial tenha sido um fiasco – rendendo, de fato, uma má repercussão para a operação[22] – ela ilustrou o desencontro de uma entidade apoiada pela diocese com a sanha autoritária.
A versão dos trabalhadores da cooperativa
O ponto é que, àquela altura, só mesmo entre os asseclas da repressão à cooperativa despertou forte antagonismo. Por outro lado, entre os grupos assistidos pela entidade, não pareceu haver a crença de estarem participando de uma experiência subversiva, mas sim trabalhando para o seu sustento.
Recentes depoimentos de alguns dos antigos membros da cooperativa deixam isso claro. Foram colhidos depoimentos de trabalhadores rurais que enfrentaram os maldizeres contra a cooperativa e resolveram aceitar a proposta de lá trabalhar. Em seus testemunhos, esses trabalhadores apresentaram uma visão muito diferente daquelas compartilhadas pelos órgãos de repressão.
Para “dona Ubaldina”, o padre Domingos chegou à região feliz com a proposta de fundar a cooperativa. Recordou que, de início, nem todos aceitavam entrar na cooperativa, porque diziam que o padre era comunista. Ao lado do seu marido, “seu Cecílio”, expressou a dificuldade inicial em convencê-lo a aceitar o convite de trabalhar na cooperativa.
Cecílio confirmou a fala da esposa e lembrou que, no começo, “era uma mangação”. Populares zombavam daqueles que partiam para trabalhar na cooperativa. Segundo seu Cecílio, a situação começou a mudar quando perceberam que eles estavam com a “barriga cheia”.[23] Ou seja, quando perceberam que esse trabalho estava dando frutos. Logo, avolumou-se o número de associados.
Os testemunhos foram colhidos pelo trabalho do padre Isaías Nascimento, que buscou trazer à tona a memória dos assistidos pela cooperativa. Em todas as suas conversas, o padre procurou saber no que a cooperativa ajudou àqueles trabalhadores. As respostas se encaixaram, sem deixar dúvidas de que as suas condições de vida melhoraram. Afirmou dona Ubaldina: “Melhorou em tudo”. Complementada por Cecílio, que disse: “Ainda hoje, graças a Deus, eu tenho umas partezinhas [sic] de terra de lá mesmo”.[24] Outro associado da cooperativa, o “seu Mundinho”, ao ser perguntado se houve uma melhoria econômica do povo da região, uma libertação, respondeu:
“Muita gente se libertou porque o povo aqui vivia […] roçando pasto nessas fazendas aqui […]. Depois […] que entrou na cooperativa […], foi uma libertação geral. Ninguém trabalhou mais para ninguém. Cada um só trabalhou para si. Já era uma libertação”.[25]
Portanto, a busca policial não impediu que os trabalhos na cooperativa continuassem. Apesar disso, ela revelou a forte rejeição de órgãos da segurança pública contra setores do clero diocesano.
“Eu ouvi os clamores do meu povo”
Com base nas documentações confidenciais citadas, pode-se apontar que determinadas iniciativas no campo social vindas da diocese suscitaram suspeitas desde o início dos anos 1970. Os documentos confidenciais levantados até aqui permitem concluir também que, desde fins dos anos 1960, já era esboçado um monitoramento contra elementos do clero recém-chegado à Diocese de Propriá. Ademais, a suspeição parecia ser ainda maior contra o clero que vinha do exterior.
Aos poucos, a Diocese de Propriá foi perdendo a antiga posição confortável diante da ditadura. Para piorar a situação, no início dos anos 1970, o bispo dom Brandão assinou o polêmico “Eu ouvi os clamores do meu povo”, um documento que questionou o “milagre econômico” da ditadura e o papel da Igreja na sociedade. Um verdadeiro manifesto que clamou por mudanças estruturais de ordem social e política.
A adesão de dom José Brandão de Castro ao documento multiplicou as suspeições dos aparelhos de espionagem da ditadura contra ele e contra a sua diocese. A instituição ribeirinha estava selando o seu compromisso com as classes subalternas e pavimentando o seu caminho em direção à oposição ao status quo. E é disso que falaremos no próximo artigo dessa série. Até lá!

Osnar Gomes dos Santos é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Defendeu a tese: “Os sinais da conversão: o movimento do cristianismo da libertação na diocese de Propriá-SE (1960-1991)”. O texto na íntegra pode ser baixado aqui. Osnar possui Mestrado em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde integrou o Laboratório Interdisciplinar de Estudo das Religiões (LIER/UFAL). Possui Graduação em História pela Universidade Tiradentes (2012) e Pós-Graduação em História do Brasil pela Faculdade Pio Décimo (2014). Atualmente, é professor efetivo da Rede Pública do Estado da Bahia.
[1] O quadro em anexo pode ser conferido em: SECRETARIADO DIOCESANO DE PASTORAL. Relatório da Reunião dos Padres e Religiosas de Propriá. Projeto Igrejas-Irmãs, Propriá – Belo Horizonte, 1974, 2f.
[2] Cf. SECRETARIADO DIOCESANO DE PASTORAL. Relatório da Reunião dos Padres e Religiosas de Propriá. Projeto Igrejas-Irmãs, Propriá – Belo Horizonte, 1974, 2f.
[3] Para mais detalhes, ver: Cf. DOSSIÊ do padre Domingos Puljiz. Aracaju, [19–]. Arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), nº P676/05. In: Acervo da Comissão Estadual da Verdade Paulo Barbosa de Araújo (CEV).
[4] Cf. GOMES, Paulo. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira (1971-1980): a visão da espionagem. Rio de Janeiro: Record, 2014, p. 91.
[5] A informação é oriunda da Agência Salvador (ASV/SNI). Data de 10 de abril de 1972. O assunto era mesmo dedicado a analisar a Cooperativa Agrícola do Camurupim. Foi difundida para a Agência Central do Serviço Nacional de Inteligência (AC/SNI). Os grifos que aparecem na citação são do autor da apreciação. Conferir o documento em: ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82003324_d0001de0001. Cooperativa Agrícola Mixta do Camurupim Ltda. – 1972; 10 de abril de 1972, 4f.
[6] Grifos do autor. A cópia do discurso pronunciado pelo padre Domingos apareceu, em anexo, num documento confidencial elaborado pela Agência Salvador (ASV/SNI) sobre o caso. Cf. ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82003324_d0001de0001. Cooperativa Agrícola Mixta do Camurupim Ltda. – 1972; 13 de junho de 1972, 14f.
[7] Essa informação aparece no relatório elaborado pela diocese de Propriá sobre o caso. O relatório foi enviado para Alfredo Buzaid, Ministro da Justiça do governo Médici. Ele aparece anexado no documento de informações da ASV/SNI, produzido em 27 de setembro de 1973, que avaliou a batida policial na cooperativa. Conferir o documento em: ARQUIVO NACIONAL Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82003324_d0001de0001. Batida da Polícia Federal na Cooperativa Camurupim. – 1973; 27 de setembro de 1973, 5f.
[8] O compilado não apresenta uma data precisa. Mas ele cobriu todo o imbróglio referente à busca policial que ocorreu em 1973. Cf. ARQUIVO NACIONAL Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82003324_d0001de0001. 48f.
[9] O perfil foi traçado em 11 de novembro de 1970 por um órgão de inteligência. Apareceu novamente no dia 25 de novembro daquele ano. Reapareceu no dia 26 de abril de 1972 num documento da ASV/SNI. Tinha por objetivo analisar os dois religiosos com posições de destaque na cooperativa Camurupim. Conferir os documentos de informações: ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82004599_d0001de0001. Padre Domingos. – 1972; 25 de novembro de 1972, 3f; ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82003324_d0001de0001. Padre Domingos Puljiz e Bispo José Brandão de Castro. – 1972; 26 de abril de 1972, 2f.
[10] Cf. ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82003324_d0001de0001. Padre Domingos Puljiz e Bispo José Brandão de Castro. – 1972; 26 de abril de 1972, 2f.
[11] Ibidem.
[12] Informações da 6º Região Militar foram difundidas para a Agência Salvador (ASV/SNI), para o Centro de Inteligência do Exército (CIE) e para o IV Exército. Sobre a presença de estrangeiros na cooperativa, a ASV/SNI difundiu as informações recebidas para a Agência Central (AC/SNI). Conferir: ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_aaa_73058853_d0001de0001. Presença de Estrangeiros a Povoados do Município de Propriá/SE. – 1973; 01 de março de 1973, 10f; ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82003324_d0001de0001. Visita de Estrangeiros a Povoados do Município de Propriá/SE. – 1973; 13 de fevereiro de 1973, 11f.
[13] Cf. ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82003324_d0001de0001. Batida da Polícia Federal na Cooperativa Camurupim. – 1973; 27 de setembro de 1973, 5f.
[14] Ibidem. Contudo, vale dizer que continuaram a circular, entre aparelhos de segurança, informações que levantavam outras suspeitas contra a cooperativa. Acusaram-na de possuir um helicóptero e de existir trabalho forçado de crianças. Todas essas acusações foram rebatidas pela entidade, como pode ser visto no dossiê do padre Domingos montado pelo Dops. Cf. DOSSIÊ do padre Domingos Puljiz. Aracaju, [19–]. Arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), nº P676/05. In: Acervo da Comissão Estadual da Verdade Paulo Barbosa de Araújo (CEV).
[15] O relatório aparece, em anexo, no documento da ASV/SNI de 27 de setembro de 1973. Cf. ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82003324_d0001de0001. Batida da Polícia Federal na Cooperativa Camurupim. – 1973; 27 de setembro de 1973, 5f.
[16] Ibidem.
[17] Ibidem.
[18] Cf. DOSSIÊ do padre Domingos Puljiz. Aracaju, [19–]. Arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), nº P676/05. In: Acervo da Comissão Estadual da Verdade Paulo Barbosa de Araújo (CEV).
[19] Ibidem.
[20] A resposta da Cooperativa Camurupim foi encaminhada para a Secretaria de Segurança Pública do Estado de Sergipe (SSP/SE) no dia 21 de maio de 1974. Pode ser lida na íntegra em: DOSSIÊ do padre Domingos Puljiz. Aracaju, [19–]. Arquivo do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), nº P676/05. In: Acervo da Comissão Estadual da Verdade Paulo Barbosa de Araújo (CEV).
[21] O ofício data de 19 de julho de 1969. Pode ser conferido num documento da ASV/SNI que compilou uma série de informações sobre a cooperativa. Ver: ARQUIVO NACIONAL. Doc. nº br_dfanbsb_v8_mic_gnc_ppp_82004599_d0001de0001. – 1972; 25 de novembro de 1972, 2f.
[22] Pode-se encontrar na pesquisa do padre Isaías Nascimento cartas de solidariedade que foram enviadas ao bispo dom Brandão. Os bispos dom Waldir Calheiros, da diocese de Volta Redonda, dom Pedro Casaldáliga, da prelazia de São Félix do Araguaia, e o arcebispo dom José Maria Pires, da arquidiocese de João Pessoa, enviaram cartas que descreviam “a atmosfera de medo” suscitada pela desconfiança dos aparelhos coercitivos do Estado. Não custa notar que os três bispos que enviaram notas de comunhão para dom Brandão também se confrontavam, em suas respectivas dioceses, com a suspeição das forças repressivas. Para ficar num exemplo, escreveu o bispo Casaldáliga: “Vocês dizem muito bem que ‘estas visitas fazem parte do esquema montado’. Sabemos disto. Ainda estes dias, com a escusa de um Aciso, temos a área da Prelazia sob controle de armas e revistas. Eu mesmo fui revistado, por duas vezes, numa só viagem esta semana. Foram também revistados dois Padres, e tiraram de um deles uma carta e vários documentos eclesiais […]”. Cf. NASCIMENTO FILHO, Isaías. Dom Brandão – um pastor com cheiro de ovelhas. Belo Horizonte: O Lutador, 2017, p. 122-124.
[23] Cf. SEU Cecílio e Dona Ubaldina – Cooperativa Camurupim. 1 vídeo (10min38seg). Publicado pelo canal Rádio e TV Camurupim. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_XTzGlgSWHk>. Acesso em 17 de setembro de 2021. A entrevista foi realizada no dia 29 de maio de 2018. Publicada no canal no dia 13 de maio de 2020.
[24] Ibidem.
[25] Cf. ENTREVISTA Seu Mundinho e Dona Marili – Cooperativa Camurupim – Propriá. 1 vídeo (31min22seg). Publicado pelo canal Rádio e TV Camurupim. Entrevista realizada em Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=tJSlakIaroQ>. Acessado em 17 de setembro de 2021. Entrevista foi publicada no canal no dia 19 de junho de 2020.