Opção pelos pobres do Betume feita pela Diocese de Propriá transformou bispo e religiosos em “comunistas”

OSNAR GOMES DOS SANTOS, especial para Mangue Jornalismo
(osnar.gomes@hotmail.com)

O bispo Casaldáliga (em pé), dom Brandão (de costas), as irmãs Terezinha e Francisca (em pé) e frei Enoque (sentado) conversam com moradoras do Alto da Rolinha. (Crédito CDJBC).

Este é o 6º artigo do Projeto Mangue Jornalismo História e que trata da ditadura militar e a Diocese de Propriá, no Baixo São Francisco, em Sergipe.

A modernização autoritária no caso da Fazenda Betume (Neópolis/SE) criou verdadeiros “rejeitados pelo progresso”. Em razão disso, a Diocese de Propriá repensou a sua presença no xadrez político e social. Se antes, a diocese mantinha uma relação ainda cautelosa com as autoridades, após Betume a sua relação beirou a animosidade.

As cenas de miséria, violência e exclusão dos trabalhadores da fazenda abriram os olhos do bispo, dom José Brandao de Castro, e encorajaram a diocese a participar de outras lutas sociais. Betume virou o seu motivo condutor. Com a maior penetração no tecido social, a igreja ganhou simpatia de uns e rejeição de outros.

Após Betume, boicotes, monitoramentos, invasão da catedral e operações de difamação contra o clero começaram a virar parte da rotina da instituição. Todas essas adversidades foram ampliadas após a ruptura do clero diocesano com os projetos das elites políticas.

O rompimento em definitivo com o modelo de desenvolvimento da ditadura ocorreu após os conflitos em Betume. Não havia mais espaço para titubear: a diocese pavimentou um caminho consequente para a oposição à ditadura. A sua virada comprometeu as relações amistosas com políticos e oligarquias tradicionais.

O anticomunismo se voltou contra o clero diocesano. Religiosos foram classificados como “subversivos” e o bispo foi acusado de utilizar métodos comunistas na região.

Esta é a segunda e última parte sobre o conflito em Betume. Dando continuidade à parte anterior, serão destrinchadas a projeção nacional dos conflitos, a reviravolta do caso na justiça e as acusações contra o bispo e a sua equipe missionária.

Projeção nacional dos conflitos, solidariedade e resistência dos trabalhadores de Betume

Ainda em 1976, no dia 18 do mês de novembro, o bispo dom Brandão enviou uma carta ao governador de Sergipe, José Rollemberg Leite. Na carta, um apelo:

Volto à presença de V. Exª para falar sobre o povo do Betume.

Venho acompanhando a asfixia lenta daquela população. Alguns elementos, para escaparem à morte pela fome, já se mudaram para alguma cidade, levando os cruzeiros minguados da indenização.

Outros foram para o Alto da Rolinha[,] uma povoação triste pelo aspecto de miséria. Pois as mães de família não têm nada para fazer e no local da implantação da irrigação só encontram trabalho 2 vezes por mês, não obstante a CODEVASF espalhar que só não trabalha lá quem não quer.  

O povo do Betume vivia já uma vida apertada, no regime de Casa Grande e Senzala, vigente ainda, infelizmente, em algumas fazendas importantes, da região do São Francisco, em Sergipe.

Mas agora a apertura é maior do que antes e tem-se a impressão de que o que se tem em vista é obrigar o povo a escolher entre morrer de fome ou engrossar as fileiras dos nordestinos retirantes.

Tomo a liberdade de sugerir a V. Exª que, para se inteirar melhor dessa situação que por certo não lhe foi descrita ainda por ninguém, envie uma Assistente Social ao Betume, ao Alto da Rolinha especialmente, para fazer uma pesquisa. Uma Assistente Social, bem entendida, que não se deixa embair pelas explicações da CODEVASF que, sem dúvida, lhe mostrará as novas casas que já se enfileiram no antigo Povoado. O drama[,] ou melhor[,] a tragédia da fome é vivida nas areias do Alto da Rolinha por Sergipanos que ainda têm a coragem de lutar pelos seus direitos espezinhados. Mas até quando resistirão?

Este é um apelo de que não pode ficar calado, vendo como aqui se constrói o futuro na base do esmagamento das pessoas.[1]  

A intervenção da diocese na questão não se encerrou em conversas de bastidores com as autoridades. Nesse período, a diocese lançou o seu boletim Encontro com as Comunidades (BEC).[2]

Os boletins foram um esforço da diocese para se comunicar com os mais pobres, incluindo analfabetos que poderiam apreender o conteúdo nas comunidades eclesiais de base, onde os textos eram lidos em voz alta.

Além disso, os boletins abusavam de ilustrações com o interesse de tornar didática a assimilação do conteúdo. Nisso, se diferenciavam do jornal A Defesa, mais técnico e organizado pelo clero. 

Os boletins materializaram alguns dos objetivos dos agentes de pastoral, como o de repassar informações diretas para os trabalhadores e o de dar espaço para que esses próprios trabalhadores pudessem se expressar, inclusive em formas de cânticos e poesia.

Poeta popular Jorge Pereira Lima e agricultores no Alto da Rolinha (Crédito: CDJBC)

Funcionários da Codevasf puseram os boletins em questão. Numa conversa com o bispo, pediram que os boletins não divulgassem nada em desacordo, sem verificar a procedência. Depois, culparam os boletins e uma carta pastoral pela resistência dos meeiros de Betume. Citaram Mariinha, umas das atingidas pelo projeto Betume. Disseram que ela, ao falar, mostrava-se imbuída das ideias veiculadas por aqueles meios de comunicação da diocese.[3] Os pedidos foram desconsiderados e os boletins continuaram a ser divulgados. Mostraram-se fontes importantes para a união entre os trabalhadores.

Além dos boletins, a diocese contratou o advogado Wellington da Motta Paixão para prestar o auxílio jurídico necessário aos meeiros. Em seguida, os trabalhadores de Betume foram os primeiros no país a entrarem com processo na Justiça contra a Codevasf.

A pesquisadora Raylane Dias Navarro lembrou que a diocese disponibilizou, além da assistência jurídica, educação às famílias, ajuda com alimentação e vestuário.[4] Nas conclusões finais da diocese sobre o caso, foram listados seis pontos que deveriam ser seguidos pelos atingidos:

(1) não desanimar; (2) confiar na força da união e guardar a esperança, na certeza de que Deus não quer a exploração de ninguém; (3) ter em vista que seus direitos precisam ser respeitados; (4) insistir para que os sindicatos rurais se tornem organismos de defesa desses direitos; (5) ter coragem de se abrir para as autoridades, tornando-as cientes de seus problemas; e (6) só aceitar, quando for o caso, uma indenização realmente justa, pelas casas, terras e benfeitorias desapropriadas. Exigir também a indenização por tempo de serviço, como trabalhador rural, ou como meeiro no sistema geralmente em voga.[5]

A Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Sergipe (Fetase) também procurou auxiliar os meeiros. Contratou o advogado Antônio Jacinto. A luta ganhou novos contornos. Aos poucos, a unidade dos trabalhadores foi dando resultados.

A começar pela superação do medo. Recorreram ao sindicato de Neópolis, à Fetase e ao 28º BC. Segundo informe diocesano: “foram dialogar com os responsáveis pelo Projeto, cotizaram-se e pagaram a viagem de camponeses que foram parar em Brasília, para se avistarem com as autoridades, inclusive com a Confederação Nacional dos Trabalhadores (Contag)”.[6]  E mais:

Dois escreveram ao Ministério do Interior, reclamando contra a falta de trabalho, e tomaram, por si mesmos, outras providências, todas dentro da Lei. Sua confiança nas autoridades era grande. Afirmavam que tudo seria por certo desconhecido delas, pois, do contrário, elas não consentiriam. Indagavam aqui e ali se não lhes cabia o direito de fazer um processo contra a Codevasf ou contra quem quer que fosse, reclamando o rompimento do contrato de trabalho.[7]

Segundo informou o boletim Encontro com as Comunidades, dois trabalhadores escreveram uma carta para o presidente Geisel. Foram eles Antônio Matias dos Santos e Antônio Barbosa dos Santos. Eles pediram providências para não ficarem sem receber indenização pelo tempo de serviço em Betume. A carta foi parar nas mãos do Ministro do Interior Maurício Rangel Reis. [8]

Depois de uma das vitórias na Justiça, sete trabalhadores do Betume viajaram para Brasília com o intuito de saber se o ganho de causa já tinha sido reconhecido pelo tribunal da capital. Esses casos mostram a articulação dos trabalhadores no caso.

Com uma organização exemplar, conseguiram financiamento para as viagens e, conhecendo os seus direitos, foram tomar satisfação diretamente com as autoridades na capital federal. Sendo assim, alguns daqueles seis pontos pleiteados pela diocese foram sendo seguidos pelos trabalhadores.

O deputado federal José Carlos Teixeira, do MDB, visitou Betume. Do Alto da Rolinha, tirou fotos até dos pés das crianças, invadidos pelos bichos de porco.[9] Levou à Câmara dos Deputados, em Brasília, informações detalhadas sobre Betume, projetando-o ainda mais a nível nacional.[10]

Do Senado Federal, o senador Gilvan Rocha também se pronunciou sobre os ocorridos. Numa de suas falas, frisou: “O plano de irrigação da Codevasf não se mostrou capaz de gerar riqueza e paz social”.

Título da notícia em 05 de dezembro de 1978 (Crédito: Jornal de Sergipe)

Visitas também de sacerdotes de outros estados potencializaram a projeção nacional dos conflitos em Betume. Além disso, algumas dessas visitas, como a de dom Pedro Casaldáliga, bispo da prelazia de São Félix do Araguaia, Mato Grosso, serviram para trazer experiências de religiosos que identicamente se antagonizavam com grandes companhias em outras regiões. 

Funcionários da Codevasf criticaram duramente os agentes de pastoral da diocese de Propriá. Enfatizaram que a causa do conflito social era a existência de pessoas que orientam moradores “para que fiquem à frente dos tratores da Codevasf, e deixem que as máquinas passem sobre eles”.[11]

A surpreendente vitória dos desalojados na Justiça

Enquanto as discussões ganhavam as páginas dos jornais, avolumaram-se as audiências na Justiça Federal. Depois da quinquagésima, a sentença foi estabelecida.

Em agosto de 1977, veio a surpreendente vitória dos primeiros reclamantes de Betume contra a Codevasf. A empresa foi condenada a pagar um milhão e duzentos mil cruzeiros de indenização para os primeiros 268 trabalhadores rurais que entraram com o processo na Justiça. A decisão saiu do juiz Hércules Quasímodo da Mota Dias. Após a primeira vitória, 1.074 trabalhadores de Betume puseram em ordem documentos para também entrar na Justiça.

Somando com outros trabalhadores que já tinham em curso suas reclamações, o número saltou para 1.402 reclamantes. Considerando os dependentes envolvidos diretamente, muito se falou que provavelmente se tinha “a maior causa, o mais numeroso problema do País, produzido por desapropriação […]”.[12] Em 3 de julho de 1978, as ruas do município de Neópolis ficaram cheias.

“A partir das primeiras horas de ontem, Neópolis ficou tomada pela multidão de trabalhadores rurais”. De costas, encostado na parede, o bispo de Propriá. Ele conversa com o jornalista Fernando Sávio. (Crédito Jornal de Sergipe, 04 de julho de 1978.

Aproximadamente duas mil pessoas tomaram as ruas para acompanhar a audiência concernente aos processos envolvendo os grupos de trabalhadores. A Fetase encaminhou à Seção Jurídica Federal do Estado 690 ações trabalhistas de lavradores contra a Codevasf.

A nova audiência foi, portanto, muito maior. O otimismo pareceu, por algum momento, esfumaçar a atmosfera perturbadora que acompanhou aqueles trabalhadores por muito tempo. Os trabalhadores rurais ocuparam as cadeiras da sessão. Ganharam um protagonismo antes desconhecido. Naquele ambiente estranho, reclamaram os seus direitos para um juiz federal.

“Durante a audiência, os trabalhadores do Betume permaneceram atentos” (Crédito Jornal de Sergipe, 04 de julho de 1978)

Tomando nota de tudo, o procurador-geral da República para os Estados da Bahia e Sergipe, Evaldo Campos, pediu cópias dos depoimentos a fim de enviá-los para a Polícia Federal.[13] A intenção era fazê-la apurar as suspeitas de que, antes da Codevasf, os trabalhadores da fazenda viviam num regime análogo ao escravo. Anos antes, o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais já havia constatado o regime de semiescravidão na fazenda.

Além de procurar apurar os fatos antigos, as autoridades continuaram a ouvir as queixas dos meeiros sobre a situação após a entrada da Codevasf. Dentre elas, abusos de autoridade e relatos sobre o famoso quarto da Casa Grande. Outros trabalhadores afirmaram que o quarto era também usado para deter trabalhadores por displicência.[14] O quarto recebeu dos meeiros o apelido de “a prisão da Codevasf”.[15] Os meeiros não tiveram pudor em apresentar as suas queixas. Se outrora existiu o medo, este pareceu se desmanchar no ar.

Um dos depoimentos sobre o quarto da Casa Grande foi o do trabalhador Antônio Pedro, de 62 anos. Segundo matéria do Jornal de Sergipe, Antônio foi acusado de “matar o serviço” porque “caiu na desventura de acender um cigarro quando estava trabalhando, justamente na hora em que o capataz – conhecido por Rosalvo – ia passando pelo local”.

Antônio Pedro foi levado para o quarto da Casa Grande. A outra punição sofrida por ele foi a de ter dois dias cortados do seu salário semanal de 200 cruzeiros.

Antônio Pedro, trabalhador do Betume (Crédito: CDJBC)

Àquela altura, perder o medo significou expor publicamente os arbítrios praticados por uma grande companhia. Naquela sessão, selou-se uma das mais importantes reviravoltas na história do caso Betume.

No tocante a responsabilidade da companhia frente às reclamações dos trabalhadores, o juiz Hércules Quasímodo deu este depoimento:

Com a desapropriação […], a Codevasf aproveitou apenas alguns dos empregados da área, quando deveria aproveitar todos ou indenizá-los, o que não fez. Ademais, como bem observaram os reclamantes, não é crível que uma área de 5.600 hectares de terra cultivada de arroz, pudesse ser trabalhada por apenas 60 empregados.[16]

Para dinamizar os trabalhos, o juiz condensou os processos em apenas um. Antes, ele já tinha transferido de Aracaju para Neópolis a realização da audiência, por saber da impossibilidade de todos os reclamantes viajarem para a capital sergipana. No fim, o juiz lavrou nova sentença favorável aos meeiros.

É preciso destacar a importância das mulheres meeiras nesta vitória. Segundo os boletins diocesanos, foram centenas de meeiras a entrar na Justiça contra a Codevasf. O papel feminino foi ressaltado no boletim Encontro com as Comunidades.[17]

Mulheres no Alto da Rolinha. (Crédito: CDJBC)

A diocese de Propriá comemorou as vitórias em longas matérias do jornal A Defesa, em boletins do Encontro com as Comunidades e em Carta Pastoral.[18] A instituição rompia definitivamente com a modernização conservadora e autoritária da ditadura.

O presidente da Codevasf acusou bispo de usar métodos comunistas

O envolvimento da diocese incomodou o presidente da Codevasf, Nilo Peçanha. O clima de mal-estar era generalizado. Em outubro de 1977, o presidente da companhia acusou dom Brandão de empregar os mesmos métodos usados pelo comunismo. Os meeiros, para ele, eram influenciados pelo bispo. Por isso, se disse preocupado com o trabalho do clero na região.

Numa matéria do Estado de São Paulo, apareceu uma fala de Nilo Peçanha mais detalhada sobre as suas posições. Para ele, a reação da diocese contra a Codevasf significava “o novo proselitismo pastoral, a dialética que está sendo usada pelo bispo para conquistar as massas”.

“Nilo Peçanha acusa Bispo”. (Crédito: Correio Braziliense, 25 de outubro de 1977)

Segundo Nilo Peçanha, o bispo induzia os meeiros a invadir as terras desapropriadas pelo órgão, sob a alegação de que “o Evangelho prega que a terra pertence ao homem”.[19] O interesse do bispo, asseverou Nilo, era o de manter o prestígio e a liderança na região, colocando o povo contra o governo, representado pela Codevasf.

Nilo Peçanha advogou que a Codevasf estava fazendo uma reforma agrária na região. O seu interesse era o de “tirar a população do Baixo São Francisco do estágio de miséria em que vive e do sistema feudal de exploração da terra, utilizado há séculos pelos proprietários da fazenda”.[20]

De fato, o regime de meação anterior parecia mesmo com aquilo que alguns teóricos chamavam de “restos feudais”. Mas, para a diocese, nas palavras do frei Enoque, o milagre da Codevasf foi o de conseguir piorar a situação já ruim dos trabalhadores submetidos ao regime de meia.[21]

“Bispo diz que defender o povo não é comunismo”. (Crédito Jornal de Brasília, 26 de outubro de 1977)

A contenda entre o clero diocesano e a Codevasf não terminou em Betume. As ressonâncias dela no campo político foram sentidas de diversas formas. Nilo Peçanha e outros funcionários da empresa receberam o título de cidadãos da cidade de Propriá. Concessão vinda dos vereadores da ARENA e de dois do MDB.[22]

Nos boletins da diocese, os vereadores foram chamados de “coitados”, por honrar com o título de cidadão a quem a justiça condenou como culpados pelas injustiças na região.[23]

Em outro momento, o arcebispo de Salvador, dom Avelar Brandão Vilela, organizou um encontro entre Nilo Peçanha e os bispos do Regional Nordeste III. Na capital baiana, o bispo de Propriá esteve frente a frente com o presidente da Codevasf.

Surgiu a inesperada oportunidade de perguntar diretamente para o presidente da companhia quais os métodos comunistas que o clero de sua diocese utilizava. Segundo o bispo, a resposta de Nilo Peçanha espantou a todos. Teria dito que os religiosos ensinavam ao povo os Direitos Humanos.[24] Antes dessa conversa, Nilo Peçanha citou para a imprensa um exemplo de método comunista usado pelo bispo. De acordo com o Jornal de Brasília:

Nilo Peçanha classificou como exemplo do que entende por “métodos comunistas” o caso ocorrido no ano passado no Betume […] quando 50 camponeses, segundo ele orientados pelo bispo, se colocaram à frente de um trator da Codevasf que ia fazer a derrubada de sete casas do povoado, impedindo assim que houvesse a destruição.[25]

Alguns meses antes de Nilo Peçanha, como se verá no próximo capítulo, dois parlamentares da Bahia acusaram o bispo de ser comunista. Eles foram os primeiros a fazer essa acusação publicamente. A acusação gerou grande repercussão. Nilo, portanto, endossou as acusações e suspeitas contra o clero da diocese de Propriá.

Por sua vez, os serviços de espionagem da ditadura, secretamente, alegaram que os trabalhadores de Betume, no ano de 1976, estariam dispostos a uma resistência armada, devido à ação do bispo e de seus padres, que os insuflavam por meio de Carta Pastoral e panfletos.[26]

Uma acusação alarmista e sem provas, como de costume.

A aliança da diocese com as classes subalternas

A diocese de Propriá começou a conhecer as reprimendas contra as suas atividades mais diretamente a partir de Betume. As acusações de que o seu clero empregava métodos comunistas não terminou naquele conflito.

Porém, a instituição também ganhou novos aliados. Cartas encaminhadas por trabalhadores das crescentes comunidades de base revelaram o apoio ao trabalho pastoral diocesano. Uma delas saiu da comunidade de Frutuoso, no município de Canhoba. A carta lembrou que os religiosos estavam sendo classificados como comunistas. Porém, isto não impediu que os membros da comunidade manifestassem a sua confiança no bispo e nos padres. Na carta, foi dito para o bispo: “o senhor e os padres sofrem porque estão do nosso lado”.[27]

No fim de uma das visitas a Betume, o padre Nestor Mathieu ouviu de um velho: “vocês são os nossos Moisés aqui”.[28] A desconfiança inicial dos trabalhadores de Betume contra a diocese desapareceu.

Os próprios agentes de pastoral foram entendendo qual era o seu lugar por ali. A resposta do padre Mathieu àquele velho trabalhador ilustra isso. Disse ele: “Moisés tem que sair daqui do meio de vocês”.

Frei Roberto Eufrásio (de frente) conversa com trabalhadores rurais no Alto da Rolinha. (Crédito:CDJBC).

Betume acabou por ser um forte sinal de mudança do lugar político e social da diocese. A nova linha diocesana passou a questionar todo tipo de progresso e de desenvolvimento que deixasse sequelas para as classes subalternas.

Foi assim que a diocese passou a encarar os megaprojetos da ditadura. Tal fato provocou alterações nas relações de poder, como já se verificou neste capítulo e se verá nos próximos. Dom Brandão asseverou que foi a partir de Betume que houve uma mudança radical em sua postura. Argumentou:

Já no Concílio, por volta de 1964, eu tinha aderido ao grupo que optou pela Igreja dos Pobres, mas, por incrível que pareça, a expressão concreta dessa mudança de posição somente se deu mais tarde. Foi quando do início do caso do Betume. Repito, não resta dúvida que foi o caso do Betume que abriu meus olhos. Aí compreendi que a gente precisava mesmo de bandear, como disse há pouco, para a opção preferencial pelos pobres, opção que eu já havia feito no Concílio, quando surgiu o movimento, em nível internacional, conhecido também como “Igreja das Catacumbas” […].[29]

Vale lembrar que a defesa pela justiça social já acompanhava a diocese desde os anos 1960. A participação no Vaticano II, a adesão do bispo ao Pacto das Catacumbas, o entusiasmo diante de Medellín e a chegada de religiosos comprometidos com os ares de renovação.

Talvez, sem esses pontos, o despertar da diocese diante do ronco dos tratores da Gutiérrez não fosse possível.

Contudo, é preciso também considerar que um único evento, como foi o de Betume, pode ter a força de empurrar uma instituição para rincões até então desconhecidos.

Foi na dialética entre acontecimentos internos – que vinham em curso desde os anos 1960 – e externos – como o enrijecimento das lutas de classes na região – que a diocese e o seu bispo encontraram o caminho das suas mudanças.

Importante salientar que o caso Betume ficou em andamento por muitos anos. Mesmo após as vitórias dos posseiros, problemas nas indenizações – e até mesmo com os advogados do caso – persistiram.[30] A diocese de Propriá se manteve sintonizada com as demandas daqueles trabalhadores. 

Cada vez mais atento à questão da terra, dom Brandão foi escolhido pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) para discutir, numa Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), o sistema fundiário brasileiro na Câmara dos Deputados de Brasília.[31] Dom Brandão fez um pronunciamento ousado e radical.

Denunciou a existência de apossamento ilegal de terras em municípios do Nordeste, apontando nomes de empresas e latifundiários que praticavam “grilagem de terras”. O bispo foi chamado de comunista e a sua ficha no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) cresceu consideravelmente.

As denúncias do bispo produziram uma CPI sobre grilagem na Bahia. Em meio ao processo, houve perseguições, ameaças, espionagem e assassinato. É disso que falaremos no próximo artigo. Até lá!

Osnar Gomes dos Santos é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Defendeu a tese: “Os sinais da conversão: o movimento do cristianismo da libertação na diocese de Propriá-SE (1960-1991)”. O texto na íntegra pode ser baixado aqui. Osnar possui Mestrado em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), onde integrou o Laboratório Interdisciplinar de Estudo das Religiões (LIER/UFAL). Possui Graduação em História pela Universidade Tiradentes (2012) e Pós-Graduação em História do Brasil pela Faculdade Pio Décimo (2014). Atualmente, é professor efetivo da Rede Pública do Estado da Bahia.


[1] Cf. CASTRO, dom José Brandão de. [Carta] 18 de novembro de 1976, Propriá [para] José Rollemberg Leite, Aracaju, 1f.

[2] Nas palavras da coordenação diocesana, o Encontro com as Comunidades procurou ajudar os cristãos a enxergar melhor o seu caminhar e o caminhar dos cristãos de outros lugares. Ou seja, ele reproduziu informações de dentro e de fora do Estado de Sergipe que diziam respeito aos pobres e aos trabalhadores. A intenção era romper com o isolamento. O leigo Raimundo Eliete esteve à frente das primeiras edições dos boletins. Nos anos 1980, o irmão marista Hildebrando Maia ocupou esse posto. O valor do boletim era simbólico, por volta de 50 centavos. As primeiras edições tinham entre quatro e dez páginas. Com o tempo foram sendo ampliadas. Conferir a primeira edição do boletim, datada de junho de 1976.

[3] Cf. SECRETARIADO DIOCESANO DE PASTORAL. “Notas importantes”, agosto de 1976, 3f.

[4] Cf. BARRETO, Raylane. A Igreja Católica no Baixo São Francisco: o caso Betume. Monografia (Graduação em Ciências Sociais). Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão, 2000, p. 59.

[5] Conferir matéria: “Homem do campo, um problema em foco”. In: Mensageiro, 20 de junho de 1976, p. 2.

[6] Cf. CASTRO, dom José Brandão de. Resumo do caso do Betume, 09 de agosto de 1977, 5f.

[7] Ibidem.

[8] Cf. “Como vai a nossa Diocese”. In: Encontro com as Comunidades, agosto de 1976, p. 7; “Notícias de cá e lá”. In: Encontro com as Comunidades, maio de 1978, p. 6.

[9] Cf. BETUME, 31 de agosto a 28 de setembro de 1976, 2f.

[10] Cf. BRASIL. Diário do Congresso Nacional. José Carlos Teixeira – Acusações a D. José Brandão de Castro. Brasília, 01 de novembro de 1977. Câmara dos Deputados.

[11] Cf. “Codevasf acusa bispo de adotar método comunista”. In: Estado de São Paulo, 23 de outubro de 1977, p. 38. Ver também: “Nilo Peçanha acusa Bispo”. In: Correio Braziliense, 25 de outubro de 1977.

[12] Cf. CASTRO, dom José Brandão de. Resumo do caso do Betume, 09 de agosto de 1977, 5f.

[13] Cf. “Durante a audiência, os trabalhadores do Betume permaneceram atentos”. In: Jornal de Sergipe, 04 de julho de 1978. Ver também: “Inquérito vai apurar descaso da CODEVASF”. In: Jornal de Sergipe, 12de outubro de 1978.

[14] Cf. “Durante a audiência, os trabalhadores do Betume permaneceram atentos”. In: Jornal de Sergipe, 04 de julho de 1978.

[15] Ibidem.

[16] Cf. “Trabalhadores na Justiça contra a CODEVASF”. In: Jornal de Sergipe, julho de 1978.

[17] Cf. “Para a gente pensar”. In: Encontro com as Comunidades, julho de 1978, p. 2 e 4.

[18] Conferir a Carta Pastoral de dom Brandão sobre a primeira vitória do Betume. Nela, o bispo comenta sobre o envolvimento da equipe missionária, as acusações contra ela e a importância da união entre os trabalhadores rurais. Ver: CASTRO, dom José Brandão de. Carta Pastoral, 15 de agosto de 1977. In: A Defesa, 15 de setembro de 1977, p. 3.

[19] Cf. “Nilo Peçanha acusa Bispo”. In: Correio Braziliense, 25 de outubro de 1977.

[20] Ibidem. Ver também: “Codevasf acusa bispo de adotar método comunista”. In: Estado de São Paulo, 23 de outubro de 1977, p. 38.

[21] Conferir matéria: “Ato público de apoio a D. Brandão”. In: Jornal de Sergipe, 15 de agosto de 1980, p. 3.

[22] Segundo o boletim, foram os vereadores emedebistas Bernardo e Dudica. Cf. “Para a gente pensar”. In: Encontro com as Comunidades, julho de 1978, p. 4.

[23] Ibidem

[24] Cf. CASTRO, dom José Brandão de. Camponeses do Baixo São Francisco confiam no Superior Tribunal de Recursos, 31 de janeiro de 1978, 1f; Ver também: CASTRO, dom José Brandão de. Relatório Quinquenal apresentado à Santa Sé na visita “Ad Limina” em 1985. In: Perfis Redentoristas nº 13. Juiz de Fora, novembro de 2000, p. 42.

[25] Cf. “Bispo diz que defender o povo não é comunismo”. In: Jornal do Brasil, 26 de outubro de 1977.

[26] DOSSIÊ de dom José Brandão de Castro […]. Arquivo do Dops.

[27] Cf. “Carta vai, carta vem”. In: Encontro com as Comunidades, junho de 1978, p. 6-7.

[28] Cf. VISITA ao Betume, 18 de junho de 1976, 5f.

[29] Cf. “Depoimento de um profeta”. In: A Defesa, dezembro de 1987, p. 1.

[30] TRABALHADORES de Betume. [Carta] 03 de julho de 1987, Betume [para] dom José Brandão de Castro, Propriá, 1f.

[31] A CPT foi fundada em Sergipe no ano de 1976, em meio aos conflitos em Betume. Dom Brandão foi um dos escolhidos a fazer parte da primeira diretoria da Regional Nordeste III da entidade. Ver: ACADEMIA SERGIPANA DE LETRAS. Retalhos de uma vida. Homenagem póstuma proferida na sessão solene da Academia Sergipana de Letras, 28 de fevereiro de 2000, 3f.

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